Volume 1
Capítulo 22: Memórias de uma Biblioteca
587 DB · Palácio de Nocturna, subsolo oitavo
A história mal contada do Império dorme onde a luz não chega
– inscrição lascada na viga do corredor Norte
O ar de enfermaria carregava resina azul, perfume que lembrava campanhas distantes. Atheron IV — pele pálida, olhos como brasas contidas — repousava em almofadas altas. Três tubos de vidro drenavam fluido escuro para um relicário pulsante ao lado da cama. Nada nele sugeria fraqueza; apenas aço guardado.
Zalameu Karlai, imóvel ao lado, sustentava a própria presença como se sustentasse o teto. Hécate entrou, firme, fechando a porta sem olhar para o pai. Os dois se alinharam diante do leito — duas estátuas de aço.
— Lembro-me da primeira vez que te vi manejar lança — disse Atheron, a voz rouca mas sem falha. — Tínhamos acabado de selar a paz de Wintercross. Você mal passava da cintura de seu pai e já perfurava fardos de palha como quem procura coração em pedra.
Hécate manteve-se mudo. O imperador levantou um dedo, pedindo silêncio antes que qualquer saudação surgisse.
— Wintercross foi vencida com tratados — continuou. — Mas na noite seguinte, quando as tochas se apagaram, duzentos guerreiros cortaram as gargantas dos diplomatas enquanto dormiam. Cassius diz que foi exceção; eu digo que foi lembrete. Ele prefere parlamentos. Que assim seja. Mas toda palavra precisa de um muro que não trema quando o vento resolve mentir.
Apontou para a mesa lateral, onde repousava uma faixa de seda manchada: carmesim seco sobre branco.
— Esse sangue é de nove emissários mortos há duas luas, na Bastilha de Nerath. Cassius tentou diálogo antes de cercar a fortaleza. Boa intenção. Más vísceras alheias. Quero que ele continue tentando — porque o Império está cansado de gritar. Mas preciso de alguém que aguente o grito quando ele voltar.
A mão trêmula indicou Hécate.
— Muro, espada e razão: três nomes para a mesma responsabilidade. O muro segura. A espada resolve. A razão escolhe quando cada qual deve aparecer. A partir de hoje, carregarás as três máscaras. Em público, verás meu filho construir pontes; em silêncio, sustentarás o peso das pedras que podem derrubá-las.
Hécate avançou um passo, mas Zalameu interceptou-o com o antebraço, duro como barra. O velho Karlai falou pela primeira vez:
— Espada que sente vira corrente quebrada.
Atheron não discordou; apenas fez um leve aceno.
— Por isso te escolhi, Zalameu. Não há emoção em ti, apenas dever — e encontrei o mesmo nos olhos de teu filho. Mesmo aço, novo fôlego. Ensina-o a não buscar glória no brilho; o corte certo acontece longe da luz.
O imperador puxou o lençol limpo sobre o colo e com esforço ergueu um estilete de punho curto. Picou o polegar. Uma gota grossa caiu e se espalhou na seda.
— Este vermelho se chama confiança. É a cor que Cassius ainda não entende por completo. — Entregou o estilete a Hécate. — Faz o mesmo. Marca teu compromisso onde eu marquei o meu.
Hécate fincou a lâmina sobre a própria palma. O sangue encontrou o sangue do imperador. As manchas uniram-se num desenho irregular, como dois rios formando delta.
— Agora — prosseguiu Atheron — dobra esse tecido e guarda sobre o coração enquanto bater. Se Cassius falhar, o lençol lembrará quem deve assumir a dor. Se tiver sucesso, lembrará quanto custou sustentá-lo.
Zalameu deu meio passo, avaliando o filho com frieza calculada.
— Sem glória — repetiu, o tom firme. — Sem hesitação. Quando a voz de Cassius não bastar, tua lâmina decide. Quando a lâmina não bastar, teu muro segura. Quando o muro não bastar, a razão ordena que tombes — mas tombes de pé.
Os olhos de Atheron brilharam, não de ternura, mas de certeza.
— Fardo aceito?
— Fardo aceito — respondeu Hécate, dobra formal da cabeça. Nenhum tremor.
O imperador relaxou os ombros, como se aquela frase lhe devolvesse minutos de vida.
— Então vai. O Império respira por tubos frágeis; troquem o ar antes que ele azede. E lembra: quem carrega sangue alheio jamais dorme leve — mas mantém o resto de nós capaz de sonhar.
Zalameu tocou o ombro do filho — toque breve, quase mecânico.
— O caminho te espera.
As botas dos dois Karlai soaram duras sobre o mármore. Quando a porta se fechou, Atheron permitiu-se tossir, e no som da tosse vibrou algo próximo de alívio: o peso, enfim, tinha um novo portador.
— Chegou a hora — anunciou Zalameu sem alterar o tom, girando nos calcanhares.
O corredor que descia do quartel imperial parecia cavado no próprio passado. A cada lance, colunas mostravam animais míticos — leões alados, cervos sem olhos, serpentes de duas cabeças. Hécate notou que, quanto mais avançavam, menores ficavam as criaturas, como se o túnel quisesse encolher o Império até caber numa caixa de arrependimentos. O ritmo das botas projetava um eco metálico que lembrava martelo em bigorna.
Zalameu caminhava sem pressa nem espada, apenas o punho fechado sobre um anel de ouro que ainda não entregara ao filho. As lanternas pendiam em ganchos torcidos; delas escorriam fios de cera secos como teias. O cheiro anterior de mirra sumira, trocado por umidade de pergaminho e pó de pedra antiga.
Detiveram-se diante de uma laje de ferro, lisa como gelo. O velho Messor quebrou o silêncio:
— Sabes o que há atrás desta porta?
— Lendas — respondeu Hécate, o tilintar do sabre vibrando na bainha. — Nunca confiei nelas.
— Pois ouvirás a mais teimosa. Toda lenda precisa de chave. — Zalameu ergueu o sinete: o dragão mordendo a cauda. Quando o brasão tocou o metal, a superfície bebeu luz e devolveu runas incandescentes. Nenhuma dobradiça rangeu; a laje correu para o lado como pele desprendida de osso.
Atrás dela, o ar queimava de frio. Quatro vultos ajoelhavam-se na soleira: túnicas cinzentas, cabeças raspadas, vendas brancas sobre órbitas vazias, bocas costuradas por fio de prata. Respiravam num compasso tão lento que pareciam estátuas de carne.
— Sirr — soprou Zalameu. — Livros Vivos. Juraram lembrar tudo, falar nada. Entregaram línguas a Marthius II e olhos ao filho dele, para provar lealdade.
Um Sirr levantou-se, tateou o peito de Hécate — gesto de quase reverência. Dedos ásperos desenharam linhas na couraça. Quando recuou, letras vermelhas ardiam no metal:
MEMÓRIA NÃO SE MATA.
QUEM A GUARDA VIVE.
As palavras evaporaram como orvalho. Hécate conteve o ímpeto de tocar a inscrição.
— Eles gravaram a Guerra das Três Sombras sem emitir som — comentou Zalameu, braços cruzados.
— E por que confiar segredos a quem não vê nem fala? — indagou Hécate, sem erguer a voz.
— Porque ninguém teme o silêncio — respondeu o pai, sem sorriso. — E o que não grita fica fácil de ignorar.
Os Sirr formaram um corredor vivo. As tochas altas deformavam as sombras em arcos tão grandes que morcegos brancos riscavam o teto como giz inquieto. No fim, três portas semicirculares aguardavam — cada qual forjada em matéria diferente e ligada à memória de um Primeiro Messor.
Bronze corroído — Crônica da Expansão,
Madeira petrificada — Levante da Cinza.
Vidro vulcânico fosco — Noite da Sétima Lua.
Zalameu indicou-as com um gesto mínimo.
— Desde a fundação do título, houve quatro Primeiros Messores — disse, voz impessoal. — Cada um deixou um pergaminho: uma única frase para o sucessor. Três estão selados nestas portas; o último ouvirás de mim. Ouve e decide qual legado vestirás.
Hécate tocou o bronze primeiro. O metal vibrou, e um sussurro antigo — voz de Magnus Virgil, o Fundador — soprou pela fenda:
“Vence antes que o combate comece; disciplina na sombra economiza o sangue à luz.”
O jovem recuou, sentindo o peso marcial da lição. Adiantou-se para a madeira; ao roçar a superfície carbonizada, lenços de fuligem ergueram-se como memória de cinzas. A voz de Cassiane Kalista, a Silenciosa, irrompeu rouca:
“Quem desconhece as correntes que o movem acaba arrastado pelos próprios fantasmas.”
Hécate cerrou os dentes, lembrando-se de relatórios queimados por ordem sua na academia. Finalmente, pousou a mão no vidro. O silêncio ali não era vazio; era pressão contra o crânio. Quando empurrou, o material dissolveu-se em pó negro que lhe cobriu os ombros. A penumbra liberou o terceiro ensinamento, gravado pela voz firme de Artaxes Karlai, ancestral:
“Nada é fixo — tudo pode ser moldado. Mas quem molda deve pagar com o próprio peso.”
Zalameu aproximou-se do filho envolto na poeira de vidro.
O velho arrancou o anel do punho fechado, ergueu-o entre as chamas azuis.
— Quarto ensinamento, Zalameu Karlai, presente. Lembra-te:
“Um exército de cervos liderado por um leão faz tremer muralhas de pedra.”
Colocou o anel na mão ferida de Hécate; o ouro esquentou sobre a carne ainda úmida de sangue.
— Sê o leão que sustenta a diplomacia do cervo — concluiu o pai. — Muro, espada e razão reunidos. Sem fraqueza. Sem glória.
O corredor silenciou; até os morcegos pousaram, como se aceitassem o novo peso que agora repousava sobre um único par de ombros.
Assim revelou-se um aposento estreito, flanqueado apenas por um pedestal onde repousava uma bacia de obsidiana — a água, escura e lisa como espelho polido, refletia as chamas azuis sem tremular. O Sirr mais velho ergueu a mão enfaixada e fez sinal.
Zalameu traduziu, sem emoção:
— Ele pressente inquietação no teu sangue. Aproxima-te.
Hécate avançou. Ao tocar a borda da bacia, o ancião indicou que pousasse a mão na superfície. Dos punhos do Livros Vivo deslizou uma lâmina fina; num gesto limpo, abriu o antebraço do jovem. O sangue caiu em pingos compassados, espalhando círculos rubros. Depois, o Sirr mergulhou a mão, descrevendo espirais lentas. A água turvou-se, depois coagiu linhas carmesim que se uniram em símbolos vibrantes — língua que Hécate não conhecia.
— Lê. — ele ordenou, dirigindo-se ao pai.
Zalameu inclinou-se, olhos semicerrados:
— “Glória e respeito” — e logo abaixo — “Dor do próprio sangue”.
O anel no punho de Zalameu latejou; veios negros serpentearam sob a pele de Hécate, febre súbita que roçou o osso, mas o rosto dele permaneceu de pedra.
— Eis o preço — sentenciou o Primeiro Messor. — Glória não te pertence; respeito não se pede, impõe-se. A dor… acompanha-te.
O Sirr retirou a mão: a água voltou a ser espelho morto. Atrás, os demais Livros Vivos ajoelharam-se em silêncio, como se aceitassem a inscrição que agora andaria pelo Império.
No centro da sala erguia-se um altar de basalto negro — pequeno para sacrifício, grande para conforto. Sobre ele, um punhal de cristal rubro aguardava dentro de uma tigela de bronze.
Zalameu pegou a arma.
— Dois cortes unem duas vidas: um quarto de sangue, um quarto de alma. Se quebrares o juramento, sangrarás de dentro para fora; se fores fiel, viverás com a dor — mas viverás.
Hécate ofereceu a palma aberta. O primeiro talho foi rápido; sangue borbulhou. O segundo abriu a mão calejada de Zalameu. As gotas desceram, chiaram no basalto e se fundiram em veios vermelhos que fumegaram antes de se fixar, lembrando a forma do dragão ouroboros.
Pai e filho uniram os punhos — não gesto de afeto, mas de pacto.
— Pelo sangue dos Karlai, selamos memória e destino — disse o velho.
— Mentira morre em nós; verdade vive, mesmo que mate — completou Hécate, sem vacilar.
O punhal trincou em dezenas de microfissuras, mas não quebrou. Zalameu retirou o anel dourado, símbolo do ofício, e depositou-o na mão ferida do filho: o metal pulsava quente sobre a carne.
— Agora és Primeiro Messor. O trono respira por tubos frágeis; cabe a ti, e aos teus segredos, trocar o ar antes que ele apodreça.
Os Sirr curvaram levemente as cabeças. Na penumbra, algo escorregou sobre o dorso da mão de Hécate: letras incandescentes que logo se esvaneceram:
NÃO HÁ MUROS SUFICIENTES
PARA O PESO DA MEMÓRIA.
CARREGA-A.
Do alto das escadas, o toque distante de trombetas celebrava vitórias desconhecendo o que fora selado nas entranhas do palácio. Hécate sentiu o anel latejar como um coração recém-desperto.
— Memória não se mata — murmurou, subindo. — Mas às vezes mata quem a guarda.
Atrás dele, a Biblioteca de Ténèbris fechou-se com um sussurro metálico; as runas apagaram-se, tornando-se cicatriz no ferro — à espera de outro juramento, outra verdade a ser enterrada. Nas sombras, os Sirr respiraram em uníssono, devolvendo à escuridão o segredo recém-nascido.
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