Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 1

Capítulo 4: Abalo

Atrair goblins era uma tarefa muito fácil com as comidas certas. Eles possuíam um olfato sensível, logo, se você usasse uma coisa barata e com odor forte, logo atrairia eles.

Lucas escolheu uma lata de sardinha para o trabalho, primeiro porque era muito fedorento, segundo porque ele odiava sardinha e sua mãe às vezes inventava de colocar na janta.

Bastava colocar uma sardinha no caminho que logo os grupos de goblins vinham, sempre reunidos em três.

Enquanto um saboreava o peixe fedorento, a espada de Lucas acabava matando dois e deixando somente um para terminar o trabalho. A estratégia se provou bastante eficiente.

Isso também serviu para reforçar sua teoria de que o mundo de Crônicas do Rei havia de alguma forma se encontrado com o mundo real, já que na história era contado que os homenzinhos-verdes se atraiam por coisas de cheiro forte.

A katana de Lucas rasgou a garganta do 38° goblin, enquanto o último restante lambuzava os dedos sujos de óleo. Um corte limpo arrancou sua cabeça.

Respirou fundo, a katana estava ensanguentada e seus olhos vagueavam entre os corpos mortos e o céu arroxeado. Faltavam 11, porém não poderia terminar o serviço.

— Preciso voltar pra casa e descansar… se eu não fizer isso, vou ter que gastar outra poção. Tenho que lembrar de sempre guardá-las.

Lucas retornou ao apartamento, mesmo que frustrado por não bater a meta de 50 goblins. Depois de tomar um banho, ele entrou no quarto e resgatou a recompensa.

Era uma espada igual à que recebeu na primeira vez. Colocou-a na mesa ao lado da original.

"Eu sei que tem como fundir equipamentos, mas como eu faço isso?"

A função de fundir itens em Crônicas do Rei era somente uma função para divertimento do jogador.

Na gameplay era somente necessário ir a um ferreiro e dá-lo duas cópias iguais da mesma arma para produzir uma de melhor qualidade.

Sendo assim, Lucas decidiu imaginar que era igual ao jogo e aproximou as duas espadas. 

 

Deseja fundir itens?

→ Sim | Não

 

Clicou na opção selecionada. As katanas se transformaram em pequenos pontos luminosos que se reagruparam numa esfera branca.

Lucas tocou a esfera, que se dissipou e deu origem a mesma arma, porém sem os arranhões e com um reflexo bonito na lâmina.

 

Katana Comum+1 criada

 

— Pensei que ia precisar de outra coisa, mas se for só isso vai facilitar muito minha vida.

Ele escondeu a katana em cima do armário e esvaziou os bolsos. Os dois lados estavam cheios de espólios, frutos do Dom de Ladino. 

Variavam entre planta, dentes e ossos. As plantas possuíam algo interessante, eram chamadas Ervas da Manhã e serviam para criar medicamentos simples.

À primeira vista essas plantas não pareciam tão úteis, porém o site da Scarlet Witch Bazar dizia o oposto.

Ervas da Manhã eram um dos itens mais comprados do site e quase sempre estavam em falta.

Lucas não se concentrava apenas em treinar, ele continuava investigando mais sobre o mundo, por isso descobriu cedo a importância daquela planta para a medicina atual.

Só tinha um problema… um grande problema.

"Como diabos eu vou falar com o pessoal da loja? Eu não… eu não sei nem como começar uma conversa!"

Socializar, seu nêmesis desde a infância. Ele nunca se deu bem conversando, mesmo com a possibilidade de descolar uma grana preta, o problema não desaparecia.

“Eu posso acabar só parecendo um retardado enquanto falo com o pessoal de lá…”

Seu sono veio antes de adquirir uma solução para o problema.

 O despertador acordou sua cabeça antes de poder sonhar, forçando-o a tomar seu café da manhã. Ao menos, teve um tempo para mexer no celular.

Abriu o Zop, um aplicativo de mensagens, e pesquisou pelo contato de Viviane. A foto de perfil era uma cobrinha branca com a língua para fora.

Lucas hesitou em mandar mensagem, mas tomou vergonha na cara e discou:

 

[Oi é o Lucas]

[Mandei mensagem como vc pediu]

[Oiiiii Lulucas, tudo bom?]

[Tava esperando muito ce mandar algo. Pq demorou?]

[Eu tive uns imprevistos e n deu tempo sabe?]

[Mas agora posso falar cntg]

 

A conversa se desenrolou numa troca de mensagens rápida. Chegou a um ponto que era um esforço colossal enviar uma resposta em meio aos exercícios no quarto.

Não tinha como durar para sempre, então no final dos treinos em casa Lucas se despediu e foi à praça. Fez sua corrida rotineira, no meio dela encontrou Viviane e a sobrancelhuda.

Não teve coragem de cumprimentá-las, ao invés disso seguiu como se não tivesse visto nada. Quando ia saindo, uma mão segurou seu ombro.

Ele virou a cabeça para trás, seu coração quase pulou pela boca. Era a própria Viviane que veio atrás dele.

— Lulucas, já vai embora?

— É que… é que já terminei a corrida.

— Poxa, não vai ainda! Vem comigo, é melhor você descansar um pouco e comer alguma coisa antes de ir!

Lucas foi levado a um carro branco ali perto, enquanto era fuzilado pelo olhar de uma baixinha sobrancelhuda cheia de raiva.

Por um momento temeu por sua vida, porém Viviane dava certa segurança por conseguir espantar a anã. Ela o entregou uma barra de cereal e uma garrafa d'água.

O rapaz se sentou num banco. Era desconfortável que alguém que mal conhecia fosse gentil daquela forma, criava um medo por tanta gentileza.

Como se quisesse assustá-lo de propósito, Viviane sentou ao seu lado e jogou as costas para trás.

— Entããoo… Lulucas, vai fazer algo pela noite?

Ele travou. Era a primeira vez que uma garota mandava uma pergunta como aquela.

— Não tenho…

— Sério? — Ela abriu um sorrisinho. — Eu tava pensando se você poderia vir comigo pra um lugar. 

Sua mente estava por um fio. Não entendia nenhum motivo para que uma mulher bonita igual a ela chamá-lo para sair em plena luz do dia.

O que tinha a oferecer? Não era bonito, nem rico e muito menos carismático, mas de algum jeito Viviane o convidou. Tinha algo de errado.

"Ela quer alguma coisa, tenho certeza."

Lucas sentiu um nó na garganta, sabia o que estava por vir. Talvez fosse roubado ou pagaria uma conta gigantesca no encontro.

 Mesmo que soubesse disso, era inevitável com sua mente antissocial não fazer a pior escolha possível.

— E-eu po-posso ir. Aonde é?

— Sério?! Caramba, Lulucas, você é demais! É no Café Jardim Bonaparte, aqui perto, chega lá às dezoito!

Viviane saiu saltitante, o que só piorou a situação do rapaz. Mesmo depois de descansar e se arrumar dentro de casa, o pressentimento ruim preso em sua cabeça não desapareceu.

O tempo voou, nem o trabalho ou o barulho infernal dentro dos ônibus o acalmaram. A paranóia atacou sua mente e criou diversas ilusões do pior cenário possível.

"O que eu devo fazer? Com certeza tem algo estranho nisso tudo… mas e se não tiver?"

Era uma dúvida mortal, tão mortal que por volta das 17:30 estava arrumado e pronto para sair. A aparência esquisita permanecia, reforçando o sentimento de medo.

Assim que amarrou o sapato, a dona da casa passou pela porta. 

Vendo-o bonitinho daquele jeito, que era uma grande raridade, perguntou: — Vai pá onde, Luquinhas?

— Vou num canto com uns amigos.

— É mesmo? Então vê se passa no mercadinho na volta e traz pra mim azeite, filho?

— Trago, mãe. — Ele foi em direção a porta, beijou a mãe na bochecha e seguiu rumo a saída. — Volto logo.

Lucas desceu as escadarias do condomínio e logo caminhou pelas ruas. Decorou de cor o endereço e a rota, levando só alguns minutos para chegar.

Pegou uma mesa perto da janela e virada para a entrada, assim não seria surpreendido por uma pegadinha. 

Um nervosismo o incomodava, seus dedos tremiam por baixo da mesa e seus olhos não paravam quietos.

Viviane apareceu um pouco depois, indo direto onde ele estava. Ela usava uma maquiagem no rosto, em especial um batom verde-claro que caia bem com a pele morena.

— Você é pontual que nem eu. Gostei disso, Lulucas.

— Po-pode parar de me chamar assim…?

— Oi? — Ela esticou o corpo para frente, o cheiro do perfume voou em direção ao desajeitado rapaz à sua frente. — Desculpa, você falou bem baixinho e eu não ouvi. 

— Não era nada…

Lucas queria ser engolido pelo chão. Era vergonhoso nem conseguir falar direito, sentia que alguém ria pelas suas costas por tamanha estupidez.

Os dois fizeram seus pedidos, no entanto o silêncio que se instaurou depois disso se tornou um problema. 

Mesmo que fosse sua culpa pela timidez, precisava descobrir de uma vez se aquilo era sério ou não.

— Ei, Viviane, isso é uma pegadinha, né?

— O que é uma pegadinha? — Bateu no prato com o garfo. — A panqueca?

— Não, eu tô falando desse encontro. Tem uma câmera escondida por aqui, né?

— Tem não, acredite. — Com a boca cheia por um pedaço de panqueca, ela continuou: — Euw xó ti cunvidei mexmo.

A mente dele não compreendia, não havia motivo certo ou preciso para o encontro ocorrer.

Viviane reparou no rosto tristonho e na expressão desconcertada do rapaz, e por isso decidiu matar logo sua preocupação de uma vez.

— Pra falar a verdade, tem um motivo pra eu te chamar aqui… Você já viu uma telinha azul flutuante?

Ele se engasgou com o café. Como diabos Viviane sabia? Será que outras pessoas também sabiam ou até mesmo interagiam com o sistema? 

Lucas limpou a boca e a roupa com um lenço, mal conseguia vê-la nos olhos direito. Uma pena que deixou óbvia demais a resposta que ela queria.

— Então você consegue… — Suspirou, erguendo a cabeça para o teto. — Tive um amigo que tinha essa mesma habilidade. Ele me falou que era um estimulante viciante, que sempre fazia ele ir atrás de mais e mais… 

— Por-por que está me contando isso? 

— Porque ele morreu por conta dessa coisa.

Essa sentença foi o martelo para o clima estranho no café. A atmosfera ficou sombria, que se somado ao silêncio, piorava o tom macabro de Viviane.

Lucas ficou quieto, um peso recaiu sobre sua cabeça. Uma pessoa morreu pelo sistema que agora andava com ele, quase como uma história sobre uma maldição.

— Eu não sei porque ainda as vejo, mas sei que elas são muito traiçoeiras. — A mulher encarava o próprio reflexo na xícara, enquanto seus olhos mostravam uma melancolia pela memória. — Com certeza você fez algo perigoso nos últimos dias por conta delas, não é?

Mais uma vez foi pego. Apertou o tecido da calça, suas mãos tremeram de tanta força. Tinha realmente feito algumas coisas perigosas, como entrar no portal e enfrentar os goblins.

Logo alcançaria a marca dos 50, e por mais impressionante que pudesse ser não mudava o fato do tanto de vezes que precisou se arriscar.

O motivo de estar vivo não era sua força física. Era por causa de estratégia e sorte, por isso não havia morrido.

Viviane reparou que atingiu um ponto fraco a julgar pela face dele. 

— Escute, eu vou te dar um aviso não corra atrás de mais do que aguenta, se não vai ter o mesmo destino que ele. — Levantou-se da cadeira e apoiou a mão na mesa. — Desculpa ter te feito pensar que tinha outra coisa por trás… é só que eu não quero que o que aconteceu se repita.

O clima passou a ser estranho. Viviane ainda permaneceu por um pouco mais, no entanto, uma ligação no celular a fez retornar mais cedo.

Lucas ficou lá dentro por mais tempo e ponderou sobre aquelas palavras, um pouco mal por escutar que uma pessoa teve um fim infeliz por causa do sistema.

Imaginou se o mesmo pudesse ocorrer a ele. Sua mãe ficaria sozinha lamentando pela morte do filho e passaria o resto dos dias dentro de casa sem ter paz, um pesadelo que não queria imaginar.

A imagem dela chorando na sala atormentava suas memórias. Isso não podia acontecer de nenhuma forma, não depois de tudo o que os dois aguentaram juntos.

Lucas não ligou se teve que pagar a conta do café, sua cabeça estava presa na estranha conversa. 

Era curiosa a maneira que uma complexa estranha conseguiu abalar seu mundo com um exemplo tão simples.

No entanto, ele aprendeu uma importante lição: não ir atrás de mais do que aguentava. Ou seja, precisava ter certeza de que podia lidar com o desafio.

Assim que batesse a meta enfrentaria uma grande barreira. Não estava pronto para combatê-la no estado atual.

Vendo a katana escondida debaixo da cama, suspirou. Pegou-a e olhou o fio, tinha uma coisa que o levaria a certeza absoluta de superar o desafio.

Para alcançá-la, ele só precisava fazer uma simples tarefa: balançar a espada até que seus braços não suportassem mais.



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