Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 1

Capítulo 9: Orgulho

as acordou com o corpo pesando mais do que deveria. Seus olhos foram se abrindo lentamente e pararam no morcego pendurado de ponta cabeça na lâmpada do teto.

Na primeira vez tomou um susto, até que de repente lembrou quem era aquela criatura. Noite passada a invocou e os dois passaram um breve tempo caçando goblins.

O mais estranho foi o breve esquecimento de que aquilo aconteceu. Sua memória estava meio nublada, talvez fruto do cansaço ganho do treino excessivo de Amora.

Falando no diabo, o gatinho esperava sentado na porta do quarto.

— Levante, dorminhoco! Você tem treino para fazer! 

— Por favor, me deixa dormir um pouco mais… ainda é 4:30. 

O gato saltou para cima da cama e deu tapinhas fortes no rosto do rapaz, deixando marcas vermelhas de patinhas no lugar.

— Levante, levante! 

— Tá, tá, já entendi!

O rapaz saiu da cama e lavou o rosto amassado, enquanto o som de algo fritando ecoou na cozinha.

Ele deu uma breve olhada pela fresta do corredor. Amora estava na cozinha com um chapéu de chef na cabeça e uma panela nas patinhas. Aquilo deixou Lucas com uma expressão plena… plena de choque.

— Tá olhando o que? — O gato fez uma careta e se armou com uma faca. — Arrume essa sua cara feia antes que eu jogue isso em você!

Lucas conteve a vontade de xingar e se sentou à mesa, recebendo uma banana e um café bem quentinho como refeição.

— Só isso…? Você não tava fazendo outra coisa?

— É pra depois do seu treino. Coma logo. 

Suspirou e atacou logo a comida, sendo levado para o espaço de treinamento assim que terminou. 

Estranhamente o lugar estava meio diferente, havia mesas, barras de ferro cravadas no piso, tijolos espalhados em uma pilha, vários halteres de concreto e pneus separados num canto. 

Amora subiu no capô do mesmo carro da última vez e o encarou.

— Descanse por mais trinta minutos e faça dez de alongamento. Hoje você terá de fazer outros exercícios. 

— Sério? Por que?

— Você precisa de força e criar músculos. Só há como ganhá-las ao mesmo tempo com exercício pesado e uma alimentação correta, porém os treinos vão exigir muito do seu corpo. 

— Mas força e músculo não é a mesma coisa?

— Não são. Força física vem do peso que você consegue levantar, o músculo é a resistência a tensão a uma determinada atividade. 

Amora explicou que a força física podia ser consequência do ganho de músculo e vice-versa. O ganho de músculo podia ser adquirido por meio de várias repetições com pouco peso, porém não se ganharia tanta força dessa forma. 

Como exemplo, usou os competidores do Mr Olympia, homens gigantes com músculos do tamanho da cabeça de alguém, mas que na hora da competição se encontravam em seu estado mais fraco.

A família não era rica como esses bombados que competiam a nível internacional, então tinham que improvisar de alguma forma. Nesse caso seria com qualquer coisa que encontrassem. 

O novo treino consistia em supinos, agachamentos, exercícios de braço e de ombro. Lucas não lembrou dos nomes direito, apenas se concentrou em realizá-los da melhor maneira possível.

No entanto, o que ferrou seu dia foi a maneira como Amora os introduziu. 

— E-eu não posso parar de fazer nenhum?

— Não pode. Faça até não conseguir mexer mais.

Aquele último fator foi o que destruiu o corpo dele junto da carga alta. Os minutos passaram muito devagar, piorando mais e mais a dor muscular da sessão de tortura.

Ao final, Lucas desabou no chão. Era quase uma punição vinda do impiedoso gato, que insistia em fazê-lo continuar mesmo quando não suportava mais. 

Isso atiçou um pouco sua curiosidade. Primeiro, por que diabos Amora era daquele jeito? E segundo, como ele sabia dessas coisas? 

Querendo saber a resposta, o rapaz fez as mesmas perguntas para ele, e a resposta deu um baita choque.

— É porque eu sou um monstro.

— Co-como é?! Então os raiders devem bem te caçar!

— Hah… não, claro que não. Já viu as pessoas na rua falando com seus próprios bichos ou falando com o ar? Elas estão conversando com seus familiares, e eu era um do seu pai.

Um familiar era o protetor de uma pessoa, um animal ou espírito guardião que tratava de proteger seu mestre. 

Eles apareceram junto dos portais e auxiliaram as pessoas a se manterem vivas por um longo tempo, até que houvesse estabilização no mundo.

No entanto, eles não surgiam de maneira esporádica. A maioria era mantida por meio de uma série de mecanismos legislativos como animais domésticos.

Ou seja, Amora era um monstro, mas sua posição social, mesmo sendo consciente, era de um gatinho qualquer.

— Então como você consegue falar comigo?

— Porque seu pai me ensinou, e quando percebeu que eu era mais inteligente que a maioria, me repassou a obrigação de cuidar  da sua mãe, me fazendo “pet” dela. Todo o meu conhecimento veio dele… 

Amora entrou no carro por um momento e saiu de lá com um livro surrado e com as páginas carcomidas. Na capa estava escrito "O Guia Fundamental para Ficar Forte".

— O idiota do Ronaldo era viciado em artes marciais e nessas coisas. Eu acabei absorvendo grande parte do que ele sabia por meio desse livro que ele escreveu. 

— Caramba… — Folheou as páginas, cada uma era detalhada com o que fazer, um tipo de passo-a-passo. — Aqui tem realmente tudo o que a gente fez até agora. Nossa, até os negócios de boxe!

— Sim, realmente… É uma pena que ele não esteja mais aqui para ver seu progresso.

Uma expressão tristonha surgiu no rosto do gato. Lucas afagou a cabeça dele e deu um sorriso, amenizando um pouco o clima.

— Amora, pode ser meio triste que ele não tenha sido o maior do mundo, mas ele foi muito mais que isso. Ele foi um herói.

Tudo ficou silencioso de repente. Amora suspirou e deu um leve pulinho, atingindo a nuca do rapaz com um golpe.

— Não seja sentimental comigo! Volte a treinar agora!

— Ai, ai! Tá, eu tô indo!

Depois de receber alguns cascudos, o rapaz retornou ao seu treino. O gatinho ficou deitado, observando-o se esforçar e muitas vezes errar as coisas.

Sorriu, fazia muito tempo desde que suas expectativas estavam grandes assim, como se de repente se sentisse vivo novamente.

“Quem dera se você pudesse ver o que ele está se tornando, Ronaldo…”

 

*****

 

Lucas tinha dificuldade em andar. Seu peito, braços e coxas pulsavam de dor, iam explodir a qualquer momento ou se desconectar do corpo. 

O que tornou tudo pior foi ir em pé num ônibus lotado, sem que suas pernas tivessem um espacinho para relaxarem nem que fosse um segundinho. 

Desceu na parada e seguiu rumo ao restaurante, indo direto para onde devia e se armando com o equipamento básico de faxineiro. 

Escolheu um podcast e tocou. O esfregão ia e vinha pelo chão, o cheiro de detergente subia e a única coisa que captou sua pouca atenção era a conversa rolando nos fones de ouvido. 

"Aliás, cês souberam o que aconteceu lá no Texas essa semana?"

"A gente não tá sabendo não, que que rolou lá?"

"Tão dizendo que abriu um portal de classe A no meio do nada. São só uns rumores, mas disseram que viram uns monstros cabulosos saindo lá de dentro."

"Que tipo de monstro?"

"Hmmm… uns igual gente mesmo, só que com a pele muito pálida. Eles também aparentavam ter algum tipo de poder hipnótico, porque depois de um tempo os raiders atacaram uns aos outros."

"Cacete, sinistro. E como tu soube isso daí?"

"Saiu no jornal um dia antes de eu vir pra cá. Acho que foi até uma boa escolha, já que um país fica em risco até contra um portal de classe B."

Lucas ia de lá pra cá sem ligar muito no assunto, porém com base nas suas pesquisas entendia do que se tratava.

Portais possuíam um ranking que variava de acordo com a quantia de energia que despejavam no ambiente para permanecerem abertos, e baseado nessa quantia recebiam a classificação de F a A.  

Internamente os raiders usavam um sistema semelhante. Não era baseado em força bruta, e sim em "feitos" que aquela pessoa fez.

Lembrando melhor, ele viu aquilo no mesmo dia que pesquisava sobre o mundo, mas não considerou tão relevante assim. 

"Qual deve ter sido a classificação do pai…?" Um certo incômodo pegou sua cabeça, era estranho falar aquilo. "Ele é tecnicamente meu pai, eu acho. Ainda é esquisito pensar nisso, porque eu não tenho uma memória exata de como ele era nesse mundo."

Um dos funcionários se aproximou durante os devaneios dele. Era um sujeito alto, forte, de rosto simpático e possuía uma cicatriz abaixo do olho. 

Lucas tirou o fone de ouvido e o olhou, tendo que inclinar o queixo para cima. Na verdade, teve até um medo de tão bombado que o cara era. 

— Você… é o Lucas? 

— So-sou eu sim. — Acenou freneticamente com a cabeça. — Eu não tenho dinheiro, tá?

— Não é… isso que eu queria… saber…

O rapaz começou a estranhar. Primeiro que a maneira travada e lenta era muito esquisita, meio pausada e ofegante.

O gigante sacou algo do bolso, fazendo-o dar um passo para trás. No entanto, não precisava de alarde, era só uma bombinha de ar. 

Após usá-la, o grandalhão respirou fundo e disse: — Desculpe, tenho asma e estava com um pouco de vergonha de te perguntar uma coisa.

— Perguntar o que?

— Eu queria saber se você tá livre no final de semana. — Coçou a nuca. — Tão precisando de gente pra um serviço comunitário no bairro. Eu vou participar, mas tá com falta de pessoal… 

— E vo-você quer que eu vá?

— É… eu-eu sei que é meio estranho pedir isso, mas é porque ninguém quis mesmo…

Lucas o observou gesticular e desviar o olhar. Por mais que os musculosos dissessem o contrário, era mais que óbvio como aquele cara era um baita introvertido.

"Porra… eu simpatizo com ele."

— Que dia é?

— A-ah! — Ficou espantado, um pouco sem jeito para responder. — É-é no final de semana, na praça Leopoldo às sete da manhã.

— Beleza, eu vou. — Deu um tapinha no ombro dele. — Pode contar comigo. 

— Sério…? — Ele abriu um grande sorriso e apertou a mão de Lucas. — Muito obrigado mesmo, eu terei certeza de te pagar o favor qualquer dia!

O rapaz deu uma risada para disfarçar, mas achava melhor não receber esse favor de volta nunca. Assim que os dois se resolveram, cada um foi para seu lado.

Um problema que atiçou sua cabeça após o expediente foi tentar lembrar do nome daquele cara. 

Nada vinha à mente, na verdade quando pensava mais a fundo sequer sabia quais eram os nomes dos outros colegas de trabalho.

Foi no caminho do ônibus que reparou num detalhe inconveniente, ele continuava com certos problemas de comunicação. 

Ao invés de conversar com alguém, passava o resto do tempo escutando podcasts ou música e vivia num mundo seu. 

Era desconfortável pelo simples motivo de mesmo que lentamente mudando e querendo matar sua própria timidez, ainda não tinha conseguido nem conversar direito com gente do seu lado. 

Lucas mais uma vez chegou em casa e se afundou para dentro do quarto. As horas passaram rápido, e antes de sequer perceber já era o horário de caçar goblins.

Equipou-se apropriadamente e foi para o lado de fora junto de Mila. Não pretendia ficar tanto tempo caçando, apenas cumpriria a missão e iria embora.

Só que, antes disso, resolveu checar o menu de Artes Especiais. A janela era um grande plano com um círculo no centro e com diversos espaços redondos vazios.

Um deles estava ocupado, o ícone era de uma lâmina azul.

 

Corte Relâmpago

Requisito: Qualquer magia do elemento Relâmpago + Arma cortante. 

Aumenta a velocidade do usuário e imbuí a arma com eletricidade por um breve momento. 

Quanto maior o nível da magia, maior a duração do efeito e do número de cortes feitos com essa Arte.

 

≈ Uma luz ofuscante varre a escuridão num piscar de olhos. ≈

 

— Hm…? Essa frase é meio estranha. — Deu um breve zoom nas palavras. — As artes no jogo também tinham frases como essas, normalmente se referindo aos criadores originais. Será que então houve alguém que já criou isso antes de mim?

Lucas ficou cheio de dúvidas na mesma hora. Para comprovar sua tese, clicou num ícone de "+" no canto da tela. 

 

Crie sua Arte

Nome:

Requisitos:

Efeito:

Inscrição:

 

Artes gastam Inspiração para serem criadas. 

Você possui 1 inspiração atualmente.

 

— Se é possível que eu crie, e se há supostamente outra pessoa com o sistema, então realmente teve alguém! Quem terá sido? Podem ter sido os desenvolvedores, talvez…

Enquanto a dúvida permeava pelo seu cérebro, preencheu os blocos com as informações necessárias. Tinha uma técnica que queria criar há bastante tempo.

— Postura relâmpago… heh, esse nome é bom.

A única coisa que faltava era um boneco de teste. Um goblin qualquer serviria, porém ele realmente queria usar contra um certo gato.

Uma ansiedade o pegou. Mal podia esperar para mostrar seu novo truque ao rabugento e bruto mestre Amora.



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