Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 1

Capítulo 10: Zona

Outro dia chegou para levantar Lucas da cama. Ele acordou tonto, o espaço ao seu redor parecia girar como se estivesse sob efeito de drogas, mas de algum jeito conseguiu chegar a cozinha.

O cheiro de café voou para seu nariz, acompanhado de rapadura e um pão com ovo quentinho.

Amora deixou o chapéu na cozinha, subiu na mesa e o encarou, fazendo uma feição estranha ao reparar no rosto dele.

— Você está pálido.

— Eu tô? Bem, eu acordei meio estranho mesmo… Não faço ideia do porquê.

O gato estalou a língua em desconfiança, então se aproximou e tocou no pescoço de Lucas, que reagiu com um leve movimento da cabeça.

— Está ardendo, garoto?

— Sim… O que você tá fazendo?

— Acabei de descobrir o motivo de estar assim. Espere um minuto.

Ele correu para o quarto e segundos depois retornou arrastando um morcego pelo chão, que piava em desespero para ser solto.

— Seu monstrinho é bastante atrevido, sabia?

— Mnheu faminliá? — falou de boca cheia, enquanto os olhava. 

De imediato seus olhos se estufaram e ele se engasgou com a comida. O gato foi forçado a largar o morcego e socorré-lo com batidas nas costas. 

Após muitas pancadinhas felinas, a comida enfim pulou da garganta e o ar voltou aos seus pulmões. 

Lucas passou a mão nos olhos aquosos e em seguida encarou Mila que se escondia num dos armários.

A boca dela estava vermelha e suas presas jorravam algumas gotas de sangue. 

Ao passar a mão na nuca, a ardência voltou de novo e enfim esclareceu sua mente do que havia acontecido.

— Estranho, ela nunca fez isso…

— Mas fez dessa vez. — Amora lambuzou a pata. — Monstros atacando seus próprios mestres não são novidade, além do mais, sempre houve casos assim desde que começaram a domá-lo. O que você fez ao seu?

— Nada, tenho plena certeza. 

— Deve ser fome… por isso ela drenou seu sangue. 

O rapaz concordou, mas aí vinha o problema: se a morcega era tão esfomeada ao ponto de 6 goblins por dia não serem o suficiente, então o que faria?

— Quer saber? Não tem problema. — Levantou da cadeira e bebeu o resto do café. — Eu consigo sobreviver sem um pouco de sangue no meu dia a dia. 

— Seria melhor se livrar ou deixar sua monstrinha se alimentar de outra coisa.

— Prefiro não arriscar nisso, vai que ela ataca alguém. Além do mais, ela já é minha parceira.

O felino revirou os olhos e uma última vez observou a morcega antes de empurrar Lucas para o treino. 

Foram ao bom e velho lugar de treinamento, onde se praticou puro exercício físico.

Dessa vez o foco caiu em agachamentos com pneu e movimentos de perna usando tijolos como peso, prendendo-os por cintos logo acima do pé.

Por outro lado, Lucas ficou frustrado. Precisava de outra coisa além daquilo.

— Amora, quando a gente vai voltar ao boxe?

— Próxima semana. Você precisa de mais condicionamento físico primeiro. — O gato entregou uma garrafa d’água. — Seu peso precisa diminuir para ser ainda mais rápido, então estou aproveitando para que você também obtenha força física.

A resposta não o satisfez, porém tinha que aceitar de um jeito ou de outro. Deu um bom gole da garrafa e retornou ao treino, passando boas horas até sair para o trabalho.

Seguiu sua rotina comum, no restaurante deparou-se com o bombadão. Ele chegou se desculpando e dizendo que queria o número de Lucas para falar mais do serviço.

Uma rápida troca de números e problema resolvido.

— A propósito — falou o grandalhão —, eu me chamo Theo.

— Ah, muito prazer, Theo…

Houve silêncio por cerca de três segundos. Os dois se encararam, trocaram acenos e cada um foi para o seu lado.

“Meu Deus, isso foi vergonhoso.”

O rapaz fez seu trabalho como sempre. No caminho de volta, uma surpresa inédita apareceu na forma de uma tela flutuante.

 

O atributo inteligência aumentou

A ala de Criação foi liberada.

 

Podia enfim usar a função que tanto esperou!

Um sorriso ficou estampado em seu rosto, tão grande que assustou a pobre criancinha sentada no colo da mãe no banco ao lado.

Correu de volta para casa o mais rápido que pôde, assustando inclusive a própria dona da casa com a ferocidade com que abriu a porta.

— Menino, tu por acaso faz porta nessa casa? — Ela bateu a colher de ferro na panela.

— Foi mal, mãe! Foi sem querer!

— Da próxima vez eu vou vender teus jogo se você conseguir quebrar, ouviu?!

— Sim, senhora! Não farei outra vez!

Depois do esporro, entrou no quarto. Abriu a mochila e despejou os materiais no chão. Separou dois em específico: Ervas da Manhã e Couro de Morcego.

O sistema de criação era representado por um martelinho no menu de atributos e consistia numa grade de 4 por 4 feita de blocos que eram preenchidos por itens.

Era uma ferramenta útil, porém os itens criados não ultrapassavam a raridade comum. Ao menos, na situação de Lucas, era a melhor coisa que podia desejar.

Transformou as Ervas da Manhã em Fibras Mágicas, um tipo de corda que quando combinado com qualquer tipo de couro criava armaduras.

Uma pena que não possuía o suficiente para um conjunto completo, contentando-se com somente com duas peças ao todo.

 

Botas de Morcego

Raridade: comum

Um par de botas confortável e com alta resistência a atrito.

Dá +5% de agilidade e a passiva Pés Leves

 

Calças de Morcego

Raridade: comum

Uma calça elástica e com resistência a atrito.

Dá +5% de agilidade.

 

Passos Leves

Seus passos não fazem som

 

Adquira todas as peças de armadura para obter a skill Aura de Morcego.

 

— Se eu tivesse um meio de acumular mais itens sem ter que me preocupar com os desafios seria melhor…

Coçou o cabelo, era realmente uma das piores coisas que atrapalhavam sua vida, o que aconteceu da última vez foi fruto de uma idiotice sua a respeito do próprio sistema.

Uma tela surgiu ao seu lado. 

 

Deseja desativar Desafios?

→ Sim | Não

 

— Tá brincando comigo…? 

Apertou as pálpebras, sentindo-se a pessoa mais estúpida do universo por nunca ter sequer pensado em desativar aquela função.

Na verdade, foi mais burro ainda por não ter reparado em outro ícone importantíssimo na janela de atributos, uma interrogação no canto.

Tocou no botão, uma gigantesca lista escorregou diante de seus olhos. Ao selecionar uma, ela se esticou em mais texto.

"Isso é pro caso eu tivesse dúvida…? Droga, não lembrei disso porque nunca vi os tutoriais do jogo mesmo!"

Procurou por algo a respeito de monstros e escolheu uma que chamou sua atenção, "Zonas de Perigo".

 

Zonas de Perigo são regiões onde monstros aparecem e variam do número 0 ao 5. Quanto maior o número, maior o poder e quantidade das criaturas que ali surgem.

As de valor 0 são zonas seguras, geralmente lugares que o jogador frequenta ou que possui apego. 

Assim que se sai de uma dessas zonas, o sistema automaticamente as salva em um banco de memória e as separa da realidade comum. 

 

"Espera, então quer dizer que esse tempo todo eu estava numa dimensão diferente…? Isso explica o porquê das ruas sempre estarem vazias e ninguém ter reclamado de barulho."

Era quase a mesma coisa de entrar num portal, só que sem perceber e sem sentir nada. 

Lucas decidiu guardar algumas das questões para dentro da cachola e esperou ficar de noite — era hora de testar algumas teorias.

Quando todos estavam dormindo, desceu as escadarias. Assim que ficou de frente a saída, reparou numa fina linha verde-escura que separava o lado de fora do condomínio. 

Era tão pequena que mal dava para vê-la sem prestar bastante atenção. Pisou em cima da linha, ela desapareceu no mesmo instante.

"Não senti nada mesmo, parece mais que estou no mesmo lugar."

Caminhou pela rua e logo avistou os cabeçudos esverdeados. Nem precisou de esforço para matá-los, já era automático arrancar pedaços deles com um balançar da katana.

Mila saiu da janela pouco depois e lambeu o sangue de cada um, dando até um pouco de nojo por parte do rapaz.

Pegou a morcega depois dela se saciar com a refeição, assim os dois andaram por aí sem um destino específico. 

Isso até encontrarem outra linha semelhante à do prédio, só que de cor amarela.

 

Zona de Perigo nível 2 a frente.

A dificuldade será aumentada e novos monstros aparecerão.

O ganho de atributos aumentará em 10%

 

Lucas deu um passo para trás e analisou o perímetro. Não tinha nenhum monstro, possivelmente eles apareceriam depois de passar a linha.

Abriu a aba de skills, uma nova ferramenta ajudaria a enfrentar esses inimigos. Foi direto na árvore de ladrão e selecionou o segundo espaço abaixo do Dom do Ladrão.

 

Furtividade 1 / 5

Passivo¹: Se torna 20% menos detectável.

Passivo²: Ataques furtivos dão 50% a mais de dano.

 

"Combinado com a passiva das minhas botas, deve ser um combo ideal."

— Mila, preste atenção no que vou falar.

A morcega pousou numa lata de lixo e mexeu as orelhas.

— Vamos entrar em uma área perigosa. Eu andarei escondido e de forma discreta e preciso que você faça o mesmo. — Fez um gesto de abrir e fechar o punho. — Quando eu fizer esse sinal, você vem. Entendeu?

Ela piou em resposta. Lucas se virou para frente, respirou fundo e deu seu primeiro passo para a zona.

Outra vez não teve nenhuma impressão ao atravessá-la, a única coisa que chamou sua atenção era que a linha ficou verde-clara. 

Aquilo garantia que o território era outro, ou seja, novos monstros logo spawnariam na região.

 Escondeu-se nos becos se encostando nas paredes. Seus olhos iam de um lado ao outro em busca de qualquer um.

Parou perto da saída, avistando um morcego gigante pendurado de ponta cabeça num poste, que comia a cabeça de um goblin.

“Tá alto demais, eu não consigo alcançar daqui…”

Uma repentina ideia atacou seu cérebro. Posicionou as pernas e arrumou a postura, então usou toda sua força para jogar a katana contra o bicho.

Empalou o morcego contra a parede do outro lado da rua. A batida foi tão alta que pareceu uma explosão, espantando todos os outros monstros escondidos.

 

3× couro de morcego gigante

 

O efeito da skill se provou meio cedo demais, assustando Lucas que não esperava tanta força no próprio arremesso. Esperou mais uns instantes antes de recolher a espada dali.

— Que doido… Será que fez aquilo porque eu estava furtivo? Deve ter sido.

Balançou a arma para limpar o sangue e a guardou na cintura de novo, no entanto o que aconteceu de estranho foi que o corpo da criatura permaneceu no chão.

Era para ter desaparecido em pequenos pixels depois de morrer. Isso não aconteceu, muito pelo contrário, a carcaça ficou ali estirada no chão.

O rapaz se ajoelhou para olhar mais de perto, sabendo que estava com certeza morto por ter deixado cair espólios, foi aí que uma janela apareceu.

 

Deseja investigar a criatura?

→ Sim | Não

 

Selecionou a primeira opção. O que apareceu diante de seus olhos fez seu queixo cair. 

Era algo que mudaria para sempre a sua maneira de farmar.

 

*****

 

Levi levantou da cama após o sol se por. Sua cabeça pesava, como se tivesse uma agulha presa dentro de sua cabeça. 

O quarto do campus era meio pequeno, fazendo-o se esgueirar pelas coisas até o frigobar e pegsr um copo d’água.

Engoliu tudo de uma vez, mas a sensação permaneceu. Arranjou um comprimido de dorflex e colocou para dentro.

“Que dor… Cacete, nessas horas que a sopa da mãmãe viria a calhar.”

O remédio também não fez efeito, e logo ele ficou rondando de lá pra cá no quartinho para ver se conseguia pelo menos ignorar.

Ligou o celular, o contato de sua namorada apareceu como o primeiro no Zop. A conversa se estendia por inúmeras mensagens.

 

[Amor, quer comer aonde hoje?]

[Pd ser la naquela praça q a gnt sempre vai]

[te pago uns pastel]

[Ca-ham, estou aplicando dieta! Nem pense nisso!]

[Mas antes… tem certeza que tá tudo bem? Você passou a semana inteira estranho, sabe]

[Tô bem relaxa]

[Deve ser só uma gripe]

[Se você diz…] 

 

Aquela parte em especial era do dia de hoje, quando foi mais cedo se encontrar com Natália. 

Quando pensava mais a fundo, até mesmo naquele momento teve a mesma impressão, um enjôo e uma falta de apetite.

Suspirou, talvez fosse só coisa da sua imaginação. Deitou-se na cama de novo, um sono o pegou, e assim seus olhos se fecharam devagar.

A última coisa que viu antes de apagar foi uma estranha silhueta perto da janela, com somente um par de olhos claros se destacando na luz da lua. 



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