Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 2

Capítulo 59: Sensível

Uma das maiores qualidades de Lucas era uma complexa perseverança. Essa virtude não existia antes, além do mais, seu interesse por ficar em casa jogando era muito maior do que correr ao ar livre.

Logo, qualquer um acreditaria que sua vontade surgiu após ganhar inúmeros poderes por meio do sistema, mas na verdade é um equívoco acreditar nisso.

O cérebro de Lucas era viciado em estímulos e no excesso de dopamina, frutos de uma vida sedentária cheia de besteiras e um conforto excessivo, assim, tudo o que trazia prazer era bem vindo.

A lógica não mudou nem um pouco desde antes de começar a treinar, sempre existiu e era um dos principais motivos da sua insistência em treinar e farmar existir.

A quantia de horas consumidas num único jogo porque precisava adquirir um item inútil para fechar 100% de progresso era tão grande que se ele falasse em voz alta ninguém acreditaria.

Por não saber das nuances ao redor de seu pupilo que Amora não entendia como ele continuava de pé depois de tudo. 

Comparado ao seu esforço infernal em videogames desde a infância tentando entender caixas de diálogo em inglês, Lucas nunca desistiu quando queria um pedacinho do paraíso chamado “vitória”.

No momento, ele realizava alguns apoios de frente com um colete pesado no peito, suando horrores pela testa. Por mais frio que estivesse, ainda era possível sentir um calor infernal por meio daquele treino.

— Eu queria saber do você é feito… — disse Amora, em sua forma de gatinho gordinho, aproximando-se do rosto dele. — Já foram 20, tá na metade agora.

— Metade? Droga, queria… uff… que acabasse logo. — Mais uma vez desceu até o limite e subiu o máximo possível.

— Ainda vai ter a corrida de 30 quilômetros, a prancha de 15 minutos e muitas outras coisas. Ainda estamos pegando leve, esse nem é o pior ainda. — Amora esboçou um sorrisinho sapeca. “Quem eu tô querendo enganar? A essa altura não era pra ele sequer se mover com o treino que coloquei.”

Lucas se tornou um tipo de fenômeno sobrenatural. Um humano comum no melhor dos casos desmaiaria com a sequência de atividades físicas postas no treino.

Algo feito de forma absurda com o mero intuito de demonstrar que todos sentiam dificuldade e não podiam fazer tudo acabou se tornando somente uma rotina comum para o monstro a sua frente.

As coisas ainda ficaram mais estranhas quando o rapaz parou de se queixar de seus descansos chatos. 

Antes, sempre que Amora terminava a sessão do dia, Lucas o enchia de reclamações do quão chato era passar o tempo todo olhando Hurrto martelar na forja.

No entanto, esse comportamento repentinamente mudou, pois fazia três dias desde o último chororó. Aquilo atiçou a curiosidade de Amora, que já era fraco com fofocas e segredos por culpa da mãe de Lucas.

— Então, garoto, o que você tem feito no seu tempo livre?

— A… agora… não é uma boa hora pra… responder…

— Ah, verdade, você está quase morrendo aí, miahauhauhau.

Lucas odiava aquela risada porque sempre aparecia para rir da sua própria desgraça. De qualquer forma, ele continuou a sequência de apoios de frente até o fim.

Só quando terminou que permitiu seu corpo cair de cara na neve e recuperar o fôlego. Era também a oportunidade para explicar o que fazia.

Porém, o mero pensamento de que Amora estaria irritado se comentasse sobre a luta contra o elfo corrupto e como conheceu os elfos de gelo fez sua consciência recuar.

— Eu tenho passado mais tempo meditando — mentiu descaradamente, cruzando os braços para demonstrar algum tipo de “certeza”.  — A meditação é realmente muito boa pra mente, como você disse. Eu meio que viciei nela!

— Mesmo? Que curioso, você vivia dizendo que era tão ruim que preferia se jogar num poço cheio de monstros…

— O-o que? Poxa, mestre, eu só falei brincando! Meditação é muito legal!

Para estragar por completo sua fachada, uma pessoa saiu do meio da trilha de pinheiros acenando com uma das mãos.

— Lucas, Lucas! Finalmente te encontrei!

“Que filha da…” Ele cortou o pensamento com uma resposta mais agradável. — Ah, Solein, seja bem-vinda!

O gatinho levantou a sobrancelha com a aparência e resposta de Lucas, ficando confuso se deveria ou não atacá-la. Ele analisou primeiro a garota e em seguida perguntou:

— Quem é essa maluca…? Espera, ela é o motivo de…

— Não tenha nenhuma ideia errada, por favor — cortou Lucas, não querendo escutar nada do que pudesse passar pela cabeça do mestre. — Por que veio aqui, Solein?

— Eu vim conferir como você está. Não o vejo desde que te entreguei aquilo.

Lucas não sabia, mas isso na verdade era uma mentira. Após receber o buquê, ela ficou o tempo todo vigilante e de olho para ter certeza que aquele rapaz não faria besteira.

Mesmo tendo achado fofo como ele havia separado seu buquê num jarro de planta e regado todo dia, não se deixava enganar por nada. O coração de uma dama deveria ser difícil para se roubar.

Só que, outro motivo para vir ali era para saber como Lucas reagiu ao presente e qual era seu estado atual em relação a isso. 

Pela forma que respondeu quando ela chegou, talvez sua impressão de aliciadora tivesse ido embora.

— Amora, não fica tão perto dela porque essa mina tem umas coisas estranhas — sussurrou o rapaz, mas ainda assim ela conseguiu ouvir alto e claro por causa de suas orelhas pontudas.

Esse comentário irritou as profundezas de sua alma, mas não podia se deixar levar por emoções tão frívolas assim. Era tudo pelo bem da sua comunidade de elfos.

— Quem é esse animal? — perguntou, agachando-se perto do gatinho roxo.

— Ele é o Amora, meu mestre. — Em seguida, o rapaz indicou a moça ao seu lado com um movimento de cabeça. — Amora, ela é Solein, uma amiga dos elfos de gelo.

— Amiga dos elfos de gelo… Pelo visto você fez amizade com esse povo estranho. Não consigo entendê-la ainda assim.

Era normal algo assim acontecer. Somente pessoas por meio de modos especiais entendiam a língua dos elfos de gelo. Lucas optou por não entrar em detalhes. 

— Ela deve ter algum tópico importante para tratar com você — disse Amora, decidindo se afastar. — Enfim, fale com ela durante seu descanso. Vou esperá-lo no outro ponto de treino.

O garoto não sabia direito se deveria agradecer ou amaldiçoar por uma ideia dessas, porque ficar sozinho perto de Solein parecia uma ideia não muito boa.

Só que, por outro lado, a elfa de gelo amou tal sacada e lançou inúmeras bençãos sobre aquele mestre gato. Se pudesse, adoraria que se encontrassem na próxima reencarnação também.

Sozinhos e trocando olhares, ambos tomaram um canto num banco construído por Lucas há poucos dias porque ele odiava a paisagem vazia.

Houve um silêncio desconcertante, até Solein abrir a boca para falar: — Eu vim saber sobre… o presente. O que você achou dele?

— É bonito. Não tinha muito lugar para guardar então coloquei num canto que eu achasse que cairia bem. Por que tá me perguntando isso?

— Na-nada não… — Ela desviou o olhar de novo.

Lucas estendeu o pescoço para frente, tentando visualizar a face dela, mas tudo o que viu foram as pontas das bochechas brancas com a cor um pouco rosada.

Por que ela estava corando? Será que era maquiagem e só equívoco seu pensar que ela estaria envergonhada? Provavelmente, não tinha o menor motivo para ficar assim.

“Minha nossa, minha nossa! Meu coração vai explodir!”, eram os pensamentos de Solein, sem saber como reagir direito. “Ele gostou, tenho certeza que gostou, mas o que eu faço agora? Não sei como dar o próximo passo e esse cara é idiota demais!”

— Por sinal, por que você me entregou aquele buquê?

— Hã? — Ela virou a cabeça depressa assim que escutou a pergunta. — Por que eu te entreguei o buquê…?

— Sim, eu não entendi direito você chegar do nada e me entregar o buquê. Quer dizer, é fofo e tal, mas a gente se conheceu tem nem uma semana e você me deu um presente. Foi por ter eliminado o corruptor?

Solein queria morrer. Só agora ela percebeu o quão idiota e estupido era fazer uma coisa dessas tão rápido. Ninguém em sã consciência aceitaria um pedido direto assim sem conhecer a pessoa antes.

Ela suspirou profundamente e colocou as mãos no rosto, penteando o cabelo com os dedos e procurando algum tipo de razão no turbilhão de tristeza que sua mente entrava.

Não, ela não tinha tempo mais para ficar triste. Tudo se resumiu a vergonha, uma vergonha tão grande que poderia virar um avestruz e afundar pacificamente a cabeça sete palmos abaixo da terra.

Ela mais uma vez balançou o rosto para o lado. Não conseguia fazer nada direito, nem mesmo se relacionar com alguém da forma correta ela poderia.

O quanto ajudou na construção da vila dos elfos? Pouco. O que fez até então para ao menos aliviar o fardo dos outros? Quase nada. 

— Solein…? — Lucas pegou no ombro dela, mas a elfa não se mexeu. — Tá tudo bem com você?

— Tá, tá si-sim. —Ela fungou e passou a mão no nariz escorrendo catarro. — Eu tô… eu tô… snif… muito bem.

— Solein, você tá chorando.

— Cala a boca!

Ela estapeou a mão do rapaz, mas ele só soltou um longo suspiro e pegou os ombros dela. 

Seu irmão às vezes ficava do mesmo jeito, dava para ver as lágrimas dele de longe sempre que percebia algo de errado, e não era diferente com a elfa diante de si.

Ela estava vermelha de vergonha e evitava a todo custo olhar nos olhos de Lucas, além de ter lágrimas escorrendo. Mesmo querendo esconder o rosto, ela não tinha coragem de fazê-lo.

— Eu não consigo… hicup… fazer nada direito! Era só, era só… hiii… era só pra eu vir falar com você e ten-tentar te agradar.

— Ei, não chore assim, eu já fiquei grato pelo presente, tá bom? Ande, não chora desse jeito.

— Pu-purque? Eu não posso nem fazer algo normal, hicup, que todo mundo faz! Eu só sou uma inútil! Uma inútil que não merece nem o privilégio que tem!

— Solein, é sério, para com isso…

— Mas é verdade! Por que eu deveria parar?

— Porque se você continuar… eu vou chorar também…

Depois de escutar aquilo, a elfa levantou o rosto. Lucas de fato estava com os olhos vermelhos e muito perto de soltar lágrimas, o que fez Solein entrar em desespero e encobrir seus sentimentos para evitar o pior.

De fato, o rapaz era sensível com os sentimentos dos outros, então se visse outra pessoa chorando, ele logo começaria a chorar também. 

Talvez fosse por isso que era tão fácil evitar que Levi chorasse por muito tempo, porque para não ver o irmão mais velho chorando, ele parava e o acolhia.

Solein estava numa posição semelhante. Agora ciente de que a qualquer momento o humano cairia em lágrimas, ela engoliu a sensação ruim e o abraçou para evitar o pior.

Magicamente funcionou, os dois pararam um ao outro e agora havia um silêncio melancólico como barreira. A elfa suspirou, encarando a cabana de madeira ao longe.

— Me desculpa por isso… Não queria ficar emocional, é só que eu queria de algum jeito ter uma boa relação com você. As pessoas da vila tem medo de você e me pediram para tentar conversar ou dar um jeito…

— Ah, é isso? — Ele fungou, passando as costas da mão nos olhos e no nariz. — Olha, eles não tem o que se preocupar. Não vou atacar ninguém mesmo.

— De-de verdade?

— Sim. Vocês pensaram que eu era um tipo de monstro ou algo assim? Jesus, eu não faço isso. Sou tranquilo, relaxa. Eu me desculpei por bater em vocês derrotando aquele corruptor, não é?

— Sim, realmente… Haha… Hahahahah!

— Tá rindo por que? 

— Você é mesmo uma figura, Lucas! — Um soquinho atingiu o ombro do rapaz e um sorriso radiante encheu o rosto de Solein.

Ele encarou o semblante feliz da mulher. Seu coração bateu mais forte. Suas mãos tocaram o peito após a sensação esquisita, mas logo passou como o vento gelado da manhã.

Lucas nunca teve nenhum problema cardíaco, então o que foi aquela batida repentina?



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