Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 2

Capítulo 78: Susto

Era bom adotar algum tipo de hobby no tempo livre, ou, na melhor das hipoteses, somente dormir. Dois dias passaram desde aquela imposição de Amora, o pupilo mal conseguia sobreviver um dia direito.

Seus olhos pareciam mais cansados do que nunca, seus passos vacilavam e as faixas nos punhos iam até o pulso, culpa de uma imposição própria do gato para nunca tirá-las em nenhuma situação.

Um suspiro fugiu da boca de Lucas, ele estava construindo mais estradas e abrindo caminhos ao longo da floresta para deixar a paisagem mais agradável.

Tornou-se um hobby decorar e transformar a paisagem em algo mais vivo, o que agradava de certa forma o ego do rapaz, pois sempre que parava por um momento, podia apreciar a paisagem em silêncio.

Tristemente, essa admiração durava só um minuto, porque logo era jogado para um treinamento louco e tinha que repetir os processos diários de aumentar seus atributos.

“Eu não devia ter upado de nível, agora tá mais complicado de aumentar os atributos…”

Era meio frustrante, mas como upar adicionava alguns pontinhos para as estatísticas, cada uma exigia uma quantia maior de esforço para subir.

O arrependimento de ter saído para derrotar a masmorra se apoderou dele, ao ponto de que sentiu-se necessitado a ir a parte do vulcão para coletar outros materiais.

A obsidiana era um ótimo objeto de decoração. Mesmo que facilmente quebradiça, ainda servia para decorar em forma de lâmpadas os postes de luz que colocou ao longo das duas regiões.

Andar na plena escuridão era um medo gigante de Lucas, mas não por uma fobia específica ou coisa do tipo, e sim que todo brasileiro tinha uma aversão natural a ruas escuras.

Ele derrubou mais algumas árvores com socos e as reuniu num montinho perto na divisória dos dois lugares, e então se sentou um pouco para descansar.

Não demorou, é claro, para alguém vir lhe incomodar por estar parado por tempo demais.

— Amoooor! 

Lilith pulou da moita e o abraçou ao redor do pescoço, só não beijando porque Lucas iria apertar sua cabeça e afastá-la se o fizesse, assim como aconteceu nas últimas emboscadas.

O rapaz queria ignorar a presença, mas, por algum mísero respeito pela súcubo, respondeu: — O que você quer, Lilith?

— Ora, eu só queria te ver. Tem algum problema em observar o amor da minha vida?

— Não tem, mas tem problema você me chamar assim. O que os outros vão pensar de mim se você gritar isso pros sete mares?

— Ah, nossa relação é secreta? Minha nossa, meu amor, eu não sabia que você era do tipo de gente que se envergonharia por entrar numa relação.

Ele revirou os olhos e esfregou uma mão no rosto para acordar daquela realidade maluca em que uma súcubo vinha xavecá-lo nos momentos mais inesperados possíveis.

— Não, é só que eu não te namoro nem estou em um relacionamento sério com você. Fazer esse tipo de coisa fará os outros imaginarem que tenho algo contra você pra não responder e não corresponder, e o que menos quero é gente me incomodando por algo assim.

— Entendi, entendi… Do que você prefere ser chamado, então? Mestre? Lorde? Docinho de Mel? Ou você quer que eu te chame de… papai? — Ela se aproximou do ouvido dele e sussurrou. — Eu também posso falar “daddy”, não tenho problema em falar em outra língua.

— Sai de mim! — Lucas a empurrou, meio assustado por tanta ousadia. — Só Lucas está bom! Não precisa de mais nada além de “Lucas”!

— Hum, que chato… Vou te chamar de “Lucas querido”, ainda é uma forma de demonstrar o meu amor!

— Tá, acho que dá pra tolerar isso…

Lucas segurou um suspiro que ameaçou sair, com medo que significasse algo negativo a sua colega. Ele não a via como parceira, absolutamente não.

Além de se entregar muito fácil, ela insistia em acelerar demais as coisas, querendo partir para o prato principal e o tempo todo murmurava consigo mesmo “coisas” que queria fazer no futuro.

Isso trouxe medo por pate de Lucas, que pressentiu que todas as suas virgindades — exceto o bv. — estavam ameaçadas, fazendo-o fugir quando possível.

— Como tem ido a vida aqui? Você tem se dado bem?

— Sim, bastante. Desde que nos mudamos e nos tornamos vizinhos com aqueles elfos meio metidos a bestas, tem sido mais divertido e menos solitário… Acho que é porque estamos vendo novas pessoas.

— Isso faz bem pra saúde e pra cabeça, que bom que vocês estão se dando bem. E quanto aos outros? Como tem ido pra cada um?

— Hum, acho que tranquilamente… Aegis se fornicou no quarto e tem pesquisado magia desde que entrou em contato com os elfos, Krevo estabeleceu uma conexão direta entre demônios e elfos para conversarem, Philomeu tem sido um ótimo professor para ensinar sobre os costumes e práticas demôniacas, Toper conversa bastante com o ancião e com outros mais velhos da vila sobre filosofia e outras coisas chatas… Ah, e Nictis tem sido um ótimo garoto!

— E Jigolah? O cara de armadura preta.

— Ele? Ninguém sabe onde o cara foi parar. Depois daquele magnífico chute, Jigolah sumiu do mapa e nunca mais foi visto.

— Pobre coitado… Será que ainda tá vivo?

— Vai saber, vivo ou não continuarei amando você e desprezando o rei demônio!

“Queria só que essa maluca saísse de mim. É pedir muito?” Ele desviou o olhar, encarando o absoluto nada

Ocorreu um silêncio repentino no ambiente, Lilith ficou contemplando a vista do corpo e suor despencando pelo pescoço de Lucas, quase babando de tanto olhar.

Sendo comido pelos olhos, o rapaz deslizou para o lado a fim de permanecer longe, mas a distância foi encurtada pelos desejos da moça.

— E-eu preciso ir, tenho um treinamento pra fazer!

Lucas se levantou do assento e carregou consigo as madeiras, acelerando o passo para ir embora. Lilith nem teve tempo de dizer adeus, quando se tocou, já estava sozinha de novo.

Quanto ao rapaz, ele correu até ficar longe o bastante. A parte do treino não era mentira, alguns testes seriam feitos num lugar mais isolado por precaução, logo, ficar longe seria o ideal.

Ele largou as obsidianas em um lugar próximo e arrumou faixas ao redor dos punhos e pulsos, perfeitos para começar sua rápida sucessão de golpes.

Enquanto Lucas buscava um lugar para treinar em paz, Solein adentrou a floresta de pinheiros com uma cesta de flores. 

Ela estava procurando por mais das rosas brancas, com o intuito de montar outros buques, levando em conta que muitos foram encantados por seu esforço e determinação no tal símbolo de fidelidade.

Por mais que não correspondida, o vilarejo respeitava Solein de um jeito ou de outro, ainda que alguns tivessem muita pena.

Então, como forma de aliviar essa dor, eles pediram para que montasse outros buques, pois alguns do vilarejo se interessaram uns pelos outros.

Normalmente, fazer isso causaria mais mal que bem, mas levando em conta que Solein era meio cabeça de vento, até que ela gostava de fazer tal trabalho.

— E um aqui, e um ali… — disse, coletando as florezinhas que apareciam pelo caminho. — Como será que eu deveria montar os de hoje? Alguns babados ficariam lindos, tenho certeza que a vizinha adoraria… Hah, chega a ser estranho gente que eu nunca conheci começar a se casar assim do nada…

Solein não sentia inveja, nem se importava muito que isso estivesse acontecendo, mas ainda era estranho ser rodeada de pessoas que só passou um mês junto e de repente vê-los se casarem.

A expectativa de vida de um elfo era longa, por isso muitos gostavam de casar cedo para poderem passar suas vidas com um parceiro.

A taxa de divórcio era também bastante alta, anos poderiam mudar a personalidade de um elfo e fazê-lo ir atrás de outra pessoa, tanto que não era incomum ocorrer tal coisa uma década depois.

No meio dos seus pensamentos, ela escutou um barulho de algo quebrando, como uma rocha saindo do lugar. Suas orelhas se antenaram, parecia que alguém estava socando alguma parede dura.

Monstros não existiam nas redondezas, então ela se aproximou sem medo, mas ficou meio sem jeito ao encontrar Lucas retornando para casa após os barulhos pararem.

— Oh, Lucas! — Ela se aproximou com um sorriso radiante. — Finalmente pudemos conversar, eu queria mesmo te ver!

— Ah, oi, Solein… — A voz dele estava meio cansada, suor caia de seu rosto. — Desculpa, acabei de voltar de um treino.

— Imagina, não liga pra isso. O cheiro de suor não me incomoda, é melhor do que encontrar uma pessoa que não toma banho só porque a região é fria.

Aquele comentário soou extremamente específico, fazendo Lucas ficar com um pé atrás do que conversar em seguida. Ele abaixou os olhos e viu a cesta de flores.

— O que você tá fazendo com isso?

— Ah, é um serviço que me deram pro vilarejo! Pretendem realizar casamentos, sabe? Flores são como um lindo adorno a casamentos, são absolutamente necessárias na nossa tradição. 

— Pô, legal. Na minha só tem a noiva de vestido branco, o noivo de vestido preto e… Tem umas coisas legais. — Lucas realmente não sabia como funcionava um casamento. — E a vida agora? Tá tudo bem? Correndo tudo legal?

— Sim, sim. Os novos vizinhos são bastante entusiasmados e muito prestativos! Parece até que nunca viram ninguém na vida, acredita?!

— É, eu acredito… — Por outro lado, ele sabia exatamente o motivo de estarem desse jeito. 

Solein lançou um sorrisinho para o modo desajeitado de Lucas, até averiguar a posição do sol acima de sua cabeça e reparar na hora.

— Bom, tenho que ir agora, preciso ainda reunir mais flores pra ajudar uns elfos na vila, sabe?

— Ah, aquelas flores, né? 

— Sim, elas mesmo… Não se importe muito com o buquê, por favor, mas eu ainda vou esperar alguma resposta.

Solein lançou um sorriso e não se virou para se encontrar com o rosto corado de Lucas, ao invés disso preferiu que a imaginação dele fizesse o trabalho por conta própria.

Precisou de uns minutos para se afastarem ao ponto de não se verem mais, porém, quanto mais se afastava do ponto em que se encontraram, mais os pensamentos de Solein tomaram conta de sua atenção.

“Será que faria sentido ele aceitar? Bem, eu não tenho nenhuma pessoa que seja interessante no meu mundo, nem mesmo o rei ou os príncipes prestam… mas, se eu pudesse ver a mãe novamente, quem sabe pensaria em pedir a ajuda dela para conquistá-lo mais rápido.”

Ela deu uma risadinha curta, seus olhos se ergueram para o caminho e a levaram para um paredão de rocha, formado numa das divisórias com o território do vulcão.

A parede era grande e espessa, rosas brancas cresciam no pé do paredão, mas a vista puxou o ar de Solein por um momento.

Aquela vista era anormal, dezenas de buracos marcavam a parede, rachaduras iam do chão até o topo da parede, desenhando formas abstratas naquele quadro em cinza.

Pior ainda, sangue coagulado pintou aquelas figuras de uma ponta a outra, até as rosas brancas tiveram suas pétalas alteradas para carmesim.

— Mas o que… o que aconteceu aqui? — Uma mão se apoiou em sua boca, até uma súbita realização vir à sua cabeça. — Aquelas bandagens nos braços dele, não me diga que… 

Ela analisou mais uma vez a paisagem, um tremor tomou conta de seu corpo. Isso não era normal, parecia até um projeto de autodestruição.

Solein se ajoelhou na frente das rosas e as colheu, evitando somente as com sangue, que se destacaram no meio do plano branco.

Ela engoliu seco, e tendo colhido o bastante, resolveu ir embora. Não era necessário contar a ninguém o que viu, mas o medo se marcou na sua cabeça.

Lucas era uma boa pessoa, e de algum jeito escondia uma natureza poderosa e feroz, que era capaz de se ferir e mutilar para alcançar o que queria.

Esse fato, somado aos constantes esforços que assistia no tempo livre, fizeram-na pensar se realmente valia a pena se sacrificar tanto por eles.

Solein saiu dali, fincando a memória no fundo de sua cabeça. 



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