Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 1

Capítulo 17.2: Novos dias, mesmos problemas

1 de Janeiro de 4818 - Local desconhecido

 

— A reunião precisava mesmo ser tão cedo?

A fala da garota de voz aguda foi seguida de um largo bocejo. Seu longo cabelo encaracolado estava desarrumado e oleoso — mal tivera tempo de dormir desde que chegou de viagem, quem dirá tomar um banho. Somado aos olhos carmesim marcados pelas olheiras consideravelmente visíveis, o mau humor dela não poderia ser mais justificado.

O homem gigantesco ao seu lado riu de sua impaciência, passando a mão em seus fios castanhos. Yumin Toumune sentiu seu corpo amolecer nas mãos dele, quase perdendo o ritmo de suas passadas e o equilíbrio das pernas.

— Você realmente gosta que eu mexa no seu cabelo — reforçou ele.

Sem aviso, parou de mover seus dedos por entre os cachos da menina. Seu gesto fez ela apertar as sobrancelhas de frustração, como o esperado. 

— Claro que gosto, Hyo! — admitiu sem demora, pegando a mão do rapaz e recomeçando a carícia. — Não sou igual à Koe, que te faz brincar de adivinho.

— Ainda amo as duas igualmente. 

Os dentes afiados dele formaram uma espécie de sorriso distorcido. Hyoshin Reiyama, como era de conhecimento de suas duas namoradas, não era muito bom de fazer outra cara que não fosse deboche. Concordavam, porém, que este era um dos charmes dele.

O casal logo foi agraciado pela chegada da moça que comentaram antes, vinda de um outro corredor conectado ao principal. Como sempre, ela apenas acenou com a cabeça e beijou a bochecha de cada um deles, sem dizer uma única palavra. Os três seguiram juntos pelo caminho iluminado por archotes, encontrando a grande porta ao fim dele. De madeira escura e inscrições prateadas, era digna de uma estrutura grandiosa como aquela.

Hyoshin foi quem adentrou primeiro, quase retirando o objeto de suas dobradiças com a força que colocou no empurrão. Suas companheiras tiveram de saltar para poderem acertar sua nuca com as mãos abertas, repreendendo-o — risadas sarcásticas ecoaram pelas paredes de pedras, vindas do outro lado do recinto.

— Só elas para te darem um tapa e saírem vivas, né, Hyoshin? — provocou um rapaz pálido sentado à larga mesa no centro do cômodo. — O Lobo da Névoa está perdendo as garras?

— Tem sorte que estou de bom humor hoje, Yuuto. 

— Ai, que medinho! O Lobo vai me morde…

A onda de choque gerada pelo impacto entre o punho do Guardião de Fenrir, envolto por uma garra de mana negra, e uma rapieira azul-cobalto tremeu a estrutura ao redor deles. O tal Yuuto engoliu em seco, apreciando a interrupção da pessoa desconhecida, a qual direcionou seus olhos.

O sorriso sedutor da mulher de beleza estonteante, cujos cabelos ruivos ainda sentiam a potência do vento, era de tirar o fôlego. Se não fosse a maldade irradiando de seus olhos verde-primavera, todos ali estariam olhando para uma super modelo hiper carismática e que, provavelmente, estaria em todas as capas de revista possíveis. 

Aquela donzela não era nem de longe tão inofensiva quanto seu rostinho bonito a fazia parecer, contudo.

— Shimare… — chamou Hyoshin, com suas veias saltando claramente de seus braços. — me diga um único motivo para eu não partir pra cima de você agora.

— Porque você sabe que perderia, queridinho. — O tom de menosprezo dela o irritou ainda mais.

O fato dela estar certa era o que mais o tirava dos eixos. Sentiu a mão pequena de Koe envolver a sua enorme palma, puxando-o para longe da confusão em um gesto silencioso de preocupação. Ainda relutante, cedeu à vontade dela, com um estalar alto de sua língua.

— Que bom que concordamos nisso. — Os lábios vermelhos de Shimare deixaram escorrer seu veneno. — O mestre chegará em breve. Sentem-se.

A simples menção à palavra “mestre” serviu como um catalisador para que todos se movessem mais depressa. Yumin, Hyoshin e Koe, agora devidamente acomodados, passaram a estudar o grupo que já se encontrava ali — a ausência de alguns membros relevantes era notável, mas ninguém parecia realmente preocupado com isso. Não deixaram de sentir um frio na espinha ao olharem para as quatro cadeiras mais próximas do trono de obsidiana: duas à esquerda e duas à direita, todas estavam ocupadas por enormes figuras pálidas, com rostos cobertos por capacetes cheios de runas.

A aura opressiva emitida por aquelas entidades, que nem sabiam se estavam vivas ou não, era imensa — Shimare e Hyoshin nem se comparavam em questão de intimidação mesmo com os poderes a pleno vapor. Os devaneios foram interrompidos por passos lentos e pesados, advindos da escuridão profunda do corredor além do assento principal.

— Vejo que temos a maior parte de nossos companheiros por aqui hoje.

Mesmo após anos, Hyoshin sentiu seus pelos eriçarem quando a voz horripilante soou aos seus tímpanos. Era como sentir-se ameaçado por um predador que nem fazia questão de esconder sua intenção assassina. Aquele que tinha tanta convicção que abateria sua presa que não se importava de esgueirar de sua vista.

Sua aura negra, como sabia o Guardião de Fenrir, era naturalmente contida quase que por completo, seja lá por qual técnica secreta do homem. Ainda assim, o ambiente assemelhava-se agora ao céu noturno sem estrelas, mergulhado na sombra de seu poder. A luz dos archotes era capaz apenas de refletir o brilho impiedoso de suas íris violeta, preenchidas pela absoluta apatia e desgosto.

O homem alto, cuja pele escura mesclava-se às sombras que carregava junto a si, sentou-se em seu lugar com a pompa de um governante. Com um estalar de dedos, os outros convidados recuperaram o privilégio da visão, embora ninguém tivesse o desejo de ter contato visual com ele por mais de um segundo.

O silêncio era também assustador, sem margem para que qualquer um dos seres inferiores falasse sem a permissão de seu líder. Havia certa irritação em seus movimentos, e mais ainda no gesto que fez para Shimare se levantar.

Tiamat, onde estão os demais? — questionou o homem. — Achei que tinha sido claro quando disse que todos deveriam comparecer.

— Mestre, como requisitado pelo senhor, todos foram contatados. — Havia firmeza na voz da ruiva. Não era “secretária” dele sem razão. — Os que não foram capazes de atender ao seu chamado disseram estar em missões que requisitariam um pouco mais de dedicação. Garantiram, porém, que retornarão com boas novas.

— Como dizem os humanos, Ano Novo é um período de perdão e compaixão — ironizou ele. — Entrarei nesse clima de… festividade.

Shimare se curvou antes de recolher-se ao seu assento. O chefe esquadrinhou a mesa, como se buscasse algo que acabara de lembrar. A maneira que afiou o olhar comunicou aos seus subordinados a insatisfação, embora não fizessem ideia de quem era o alvo dela.

Leviatã também decidiu não participar? 

— Ele disse que chegaria até o fim da reunião — comunicou uma mulher com longos e lisos cabelos verde-musgo, próxima a Shimare.

A resposta foi suficiente para ele. Com duas batidas na mesa, todos se levantaram — garrafas de bebidas surgiram sobre a toalha branca, para que os convidados se servissem. Assim que todos estavam com suas taças cheias, o homem ergueu sua própria.

— Faremos hoje o deslocamento da Lua e dos Devoradores, o primeiro passo de um novo começo.

 O anúncio ”animado” ecoou pelo salão. Em seu canto, Mitsuko, que chegara pouco antes do superior, sentiu seu estômago se remexer enquanto encarava o líquido espesso de seu copo. Seria aquele o caminho correto, ou estava sendo enganada? Desejava mesmo corroborar com aqueles planos?

O chefe sentiu sua hesitação, visto que se tornou o foco de seus olhos violeta. As dúvidas se esvaíram quando o sorriso delirante do homem tomou o lugar disponível em seu semblante inexpressivo.

“Não há como fugir do que já está feito, Mitsuko”, era a mensagem dele.

— Um brinde… aos Arautos!

1 de Janeiro de 4818 - Continente de Cielunia, Reino de Bliz, Jardim Botânico da Corte de Glacia

 

— O que faz aqui?

O foco da mulher moveu-se das gardênias brancas para o recém-chegado, cujos olhos rubi a encaravam com certa descrença. Como sempre, ele não a escutou quando disse que com certeza viria.

— Eu prometi que te faria companhia este ano também, Kiyo — explicou, com um semblante afetuoso. — Afinal, como eu já disse uma dezena de vezes, eu adoro conversar com você.

— Mestra Haruki está ciente de sua ausência?

A maneira que ele ignorou o flerte implícito fez a loira formar um biquinho com os lábios. Qualquer um que estivesse no lugar de Kiyo Yukihane, o rei de Bliz, provavelmente já teria cedido aos avanços dela, então como ele conseguia ficar tão impassível frente a ela? Era frustrante tentar derreter o coração congelado do rei da nevasca. 

Ainda assim, Mayumi Nekoren não desistiria jamais.

— Claro que está, sou uma garota tão responsável quanto sou linda! — Jogou seus cachos dourados ao sol, tão raro naquele país. — Bliz não é tão fria no verão. Podia ser mais tempo assim.

Psonen jamais deixaria o reino do gelo derreter, Mayumi. 

— Não importa, olha como o lago fica lindo quando está descongelado! — indicou a mulher, apontando para além da estufa. — A neve tem seu charme, mas com certeza assim seria bem melhor.

Kiyo suspirou, o que pareceu irritar ainda mais sua acompanhante. Muitas vezes, ele se perguntou como havia atraído a atenção daquela considerada pelas marcas e revistas de moda como a “Guardiã mais linda de todas” — duvidava também que estavam falando da mesma pessoa, na maior parte do tempo.

Na opinião do rei de Bliz, Nekoren era uma mulher infantil, desleixada e insistente. Os olhos cinza, cabelos loiros ondulados amarrados em um preguiçoso rabo de cavalo, corpo escultural e sorriso encantador não fariam ele mudar de ideia de forma alguma, embora ela estivesse há alguns anos tentando convencê-lo a dar uma chance para o amor.

— Enfim, uma pena que só cheguei agora. Feliz Ano Novo, Kiyo! Já dei feliz aniversário pra senhora Shirei também. 

— Feliz Ano Novo para você também, Mayumi.

— Essas gardênias estão maravilhosas! E as begônias, tulipas… 

— Gosta de flores?

— Claro que gosto! Eu já te falei várias vezes, bobão!

A falação sem fim de Mayumi era inevitável. Os assuntos variavam entre um novo ensaio fotográfico de verão, fofocas da Longinus, o clima de Bliz… Em menos de dez minutos, deveriam ter trocado de tópico cerca mais de uma dúzia de vezes. Contraditoriamente ao seu pensamento, o nobre não realizou seu desejo de afastá-la — escutou, em silêncio, a mulher falar empolgadamente sobre sua nova maquiagem perfeita para dias de chuva.

— Vossa Majestade — chamou uma voz masculina da porta do jardim — estive lhe procurando.

— Oh, senhor Tsukishi!

O homem de cabelos negros — preenchidos por alguns fios brancos — caminhou na direção do casal, suas íris amarronzadas refletindo sua aflição. O verão ainda não o havia afetado, visto que trajava um casaco pesado sobre roupas mais grossas. Por conhecer Tomoya Tsukishi de longa data, Kiyo não achou estranho.

Apertaram as mãos, enquanto Mayumi acenava calorosamente para ele. O nobre logo pigarreou, incerto sobre como abordar a situação.

— Não sabia que estava acompanhado, Majestade — disse antes de se curvar de leve para a dama. — Devo me retirar para terem seu momento?

— Não se preocupe, senhor Tomoya. O conselheiro da família real não me procuraria sem motivo — acalmou Kiyo. — O que houve?

— O senhor Sorako diz ter encontrado uma pista sobre um grupo criminoso próximo aos portos de Genten. — A menção ao país vizinho fez Kiyo levantar uma sobrancelha. — Como Vossa Majestade está ocupado, ele pediu que alguns Guardiões residentes em Bliz fossem chamados como reforço.

— Diga a todos que fiquem à vontade. Não precisamos de um grande contingente para essa primeira semana do ano — atestou o rei, pensativo. — Como está Junko? Alguma melhora no quadro clínico?

— Ela conseguiu permissão para dar uma volta no lago, desde que acompanhada. Irei buscá-la em breve. — Havia um brilho de esperança adornando a aura rosa-carmim do conselheiro real. — Não fazemos este passeio desde… aquela época.

Por frequentar a corte de Glacia com frequência, Mayumi sabia do que se tratava a conversa. A mulher, de toda forma, preferiu manter-se em silêncio. Tinha o mínimo de respeito e empatia pela situação para saber que suas palavras em nada reduziriam a dor que os presentes sentiam.

— Peço desculpas mais uma vez.

— Sabe muito bem que a culpa não deve recair sobre o senhor, Majestade — confortou Tomoya, em tom agridoce. — Não deve recair sobre nenhum dos vivos.

— É uma angústia as coisas não terem sido diferentes. 

— Apenas saber que isso ainda lhe comove, Majestade, é uma grande honra para nós. — O homem moreno virou as costas para seu soberano. — Não mais irei tomar vosso tempo. Tenha uma boa estadia, senhorita Nekoren.

— Obrigada!

O nobre se despediu com cortesia de seus anfitriões, novamente dando espaço para Mayumi se aproximar do rei, perdido em pensamentos. A loira o envolveu num abraço caloroso na suave manhã de verão no país da nevasca, com o único objetivo de atenuar sua culpa. Kiyo pensou por um breve instante em retribuir o gesto de sua amiga, mas sentiu o corpo travar.

Era como se seus braços tivessem sido acorrentados à lateral de seu corpo. Ele não merecia aquela gentileza. Em troca de sua vida medíocre, duas foram arruinadas naquela noite — com este fardo que teria de viver até o fim de sua vida maldita. 

Sozinho e silenciado pelo crime que cometeu.

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