Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 30: O Guerreiro das Almas

Ao abrir os olhos, uma visão calma e reconfortante surgia aos poucos diante de Oliver. Parecia um casebre simples de madeira e tinha uma grande janela ao lado. A vista da luz do sol entrando com o aconchego da brisa leve era tranquilizante. Dava para sentir o conforto da cama em que estava deitado, com travesseiro macio e lençóis finos, fazendo seu corpo afundar.

Porém, nada daquilo evitou as fortes dores musculares e o início de uma pequena dor de cabeça. Aquelas dores só foram embora quando uma mão gélida e úmida encostou em sua testa.

Era o senhor Durant, sentado ao seu lado. Parecia estar só usando uma pequena habilidade da Natureza de água para molhar a testa do garoto, mas aquele simples ato já aliviou a enxaqueca.

— O que aconteceu comigo?

— Você está acordando depois de 5 dias da invasão. Houve muita discussão se você seria mantido vivo ou não, mas tive instruções especiais para preparar alguns fluidos de cura e vir te ver vez ou outra. — Ele apontou para os frascos na mesa de cabeceira ao lado da cama. — Também aproveitei esse momento para verificar suas marcas.

Oliver ficou tão surpreso com a fala descontraída sobre morte que pensou não ter ouvido direito.

— Marcas? Me manter vivo? O quê?

— Sim. Aquele círculo que os magos criam contém marcas específicas desenhadas neles. Parecem galhos finos de videira. Você, por algum motivo, estava com elas desenhadas ao longo de todo o corpo. Talvez tenha sido algum instinto de defesa.

— E então? Pegaram os invasores? E o meu avô? Eu preciso ir até ele. Ouvi o Bernard dizendo que...

Oliver tentou se levantar, mas foi impedido pelo velho Conselheiro.

— Existem duas coisas que você precisa saber, Oliver Rivail — respondeu rispidamente. — Sinto muito por ser tão direto, mas seu avô faleceu. O enterramos em frente a caverna onde vocês moravam. E, em segundo lugar, não podemos te deixar andar por Prospéria sozinho ainda. A ocasião que fez essas marcas em você é a mesma onde várias pessoas quase morreram. Inclusive, algumas ainda estão em tratamento devido a essa expansão dessas suas habilidades.

Oliver consentiu cabisbaixo, levando as mãos para trás da cabeça com um olhar vazio. Tudo o que vinha à mente era a conversa que teve com o avô. O abraço apertado que ele recebeu antes de sair. Uma despedida que ele não tinha conhecimento. Um momento que teria sido diferente se ele soubesse o que iria acontecer.

Após alguns instantes em lamento, foram ouvidas algumas batidas firmes na porta, e o senhor Durant permitiu a entrada dos visitantes. Era uma mulher de cabelos azuis usando um conjunto de blusa e saia quase nos mesmos tons de sua aparência. Ela estava de cara fechada, acompanhada de Denis.

Assim que a mulher se aproximou, não fez cerimônia. Sentou-se ao lado de Oliver e puxou o braço esquerdo do garoto. Depois, passou os dedos levemente em cada marca, avaliando-as.

— Me solta! — Ele tentava resistir, mas não tinha força suficiente.

— É o que estou pensando, mãe? — perguntou Denis.

— Defesa aplicada ao corpo — respondeu a mulher, ainda olhando para o braço. — Não tem um guerreiro capaz de usar essa habilidade hoje além da Vivienne.

— A primeira e única que vimos — disse Durant. — Além dela, temos seu colega aqui, o senhor Denis Fontaine.

— Bom, ainda estou longe de fazer isso por completo — disse, acanhado.

— Tá, e aí? Ficou brava porque eu superei seu filho? — Oliver tirou o braço de perto da mulher.

Ao olhar para o fundo da sala, viu a estranha mulher gigante que sempre o observava. Ela acompanhava toda a situação a distância, sentada em um canto. Sua feição continuava sinistra como de costume, o que incomodava bastante o garoto.

— Você é bem irritante, né?

— Foi a sua mãe que pegou meu braço como se quisesse arrancar. E você não consegue mesmo fazer isso?

— Só na parte superior do corpo. — disse enquanto fazia uma pequena demonstração. Sinais azuis começaram a correr por seu ombro e pescoço, como linhas de gelo. — Mas ainda vou melhorar. Só quis vir aqui para te agradecer por ter nos salvado naquela luta, principalmente o Nicollas. Foi impressionante como você lidou com todos os invasores de uma vez só. Parecia fora de controle.

— E estava. — A grande mulher levantou-se. — Vamos corrigir isso.

— Quem é você? — Oliver tentava devolver o olhar ameaçador, mas algo naquela pessoa estranha o impedia de ser tão imprudente.

— Monique Lavigne. É tudo o que precisa saber.

Monique seguiu para a porta, abriu delicadamente e virou-se para Oliver.

— Quando estiver recuperado, me encontre.

 

 

Depois de alguns preparos com bandagens e remédios, Oliver conseguiu sair do Centro de Cura. Ao caminhar por Prospéria durante o dia, a dor do confronto ficava ainda mais evidente.

Todos os distritos estavam arrasados. Casas, muros e ruas destruídos. Manchas de sangue por todo lado. Em alguns pontos, era possível enxergar até o outro lado do vilarejo, pois não existia mais nenhuma construção em pé, tudo foi levado ao chão. Os locais mais arruinados estavam totalmente interditados, fazendo com que Oliver tivesse que trocar de rota toda hora.

Ainda estava com as roupas dadas a ele na casa de cura. Uma calça e blusa simples, com cores cinzentas. Para ajudar seus movimentos, estava com uma muleta apoiada no braço direito e o senhor Durant caminhando ao seu lado.

A presença do Conselheiro era o mais importante.

Por onde passava, o jovem mago via os olhares de julgamento e medo das pessoas. As cenas esperançosas de auxílio em um momento de dificuldade paravam para se transformar em um instante de repulsa e xingamentos.

— Dá para me levar mais rápido até onde eu tenho que ir? — perguntou olhando para o chão.

— Vamos chegar lá em breve. É no portão Sul.

— O que tem lá?

O velho Conselheiro suspirou.

— É melhor esperar para ver.

Chegando no distrito do portão Sul, a visão era ainda pior. Parecia os restos de uma civilização antiga. Todas as construções dizimadas, desmanchadas até o último tijolo. Em alguns dos montes de escombros, guerreiros escavavam na tentativa de achar mais algum civil.

— Se serve de consolo, seus amigos estão vivos — disse Durant, tentando levar a atenção de Oliver para si.

— Nós salvamos a Leanor, apesar dos que queriam deixar ela morrer.

— Cuidado com esse tipo de pensamento, criança.

— Como está todo o resto? — perguntou, ignorando o sermão.

— A Monique, que você conheceu, está como nova Conselheira do templo da sombra. Além dela, Kylian Lambert é outro nome que fará parte do nosso grupo. Ele era o assistente do Bruce, que... infelizmente… também faleceu.

— O cara grandão com o leão? Ele morreu?!

O senhor Durant sinalizou com a cabeça, confirmando.

— Deixamos o Taeko enterrado bem ao lado dele. Ambos morreram com honra.

— Que... droga!

— Não foque nisso. Precisamos pensar no que vem pela frente. Temos que montar uma equipe para rastrear o exército do Bernard no lado Oeste enquanto o resto de nós ficará aqui para cuidar uns dos outros e nos recompor.

— Se enviarem pouca gente, vão todos morrer.

— Não irão enfrentar ninguém. Só queremos a posição do inimigo. Enquanto isso, os aprendizes passarão por um treino específico com um único mestre para cada um de vocês. A ideia é fazer um esquadrão de combate e reconhecimento.

— Com os aprendizes? Por que vocês não vão?

O velho Conselheiro parou por um instante. Seu olhar sereno continha a seriedade necessária para aquela ocasião, sem perder a hospitalidade.

— Você pode até não ter ajudado Bernard com essa invasão — sussurrou —, mas vai concordar comigo que esse não foi um trabalho individual.

— Estão tentando achar outros traidores?

— O tempo vai dizer. E, se tivermos sorte, você também.

 

 

Na estrada que levava ao sul do continente, os sinais de combate começavam a sumir. Um pequeno grupo de guerreiros estavam posicionados em roda no meio do caminho, conversando e observando algo que parecia bloquear a rota.

Antes que Oliver pudesse descobrir o que era, seus olhos se distraíram com a presença de seus companheiros de equipe. Lucien logo chamou a atenção de Leanor, que sorriu ao ver o jovem mago se aproximando. Ambos correram para encontrá-lo.

— Você está bem? — perguntou Leanor, abraçando Oliver.

— Eu que devia perguntar isso para você — respondeu com um sorriso tímido.

— Os dois salvaram a minha vida, obrigada! — Leanor apertou Lucien e Oliver em um abraço. A garota parecia em muito melhor forma do que a dupla.

— Senhor Durant — disse Lucien, depois de escapar do aperto da garota vermelha —, o Oliver está aqui para...

— Sim, meu jovem — respondeu levantando a mão, para que Lucien não dissesse mais nada. — Deixe ele compreender a situação.

Curioso com a resposta, Oliver voltou a olhar para onde todos estavam prestando atenção.

Havia uma grande jaula quadrada feita de ferro e protegida por uma força que controlava o vento ao redor dela. Lá dentro, havia um cadáver que corria para todos os lados, tentando se libertar.

Oliver se concentrou por um momento, olhando para o rosto daquele morto em desespero, reconhecendo sua alma.

— Ei, mago! — Era David, com uma feição mergulhada em desespero. — Fala para o velho Durant me tirar daqui, anda!

 

 

Oliver começou a recuar quando se deparou com aquela cena. O corpo de David já estava muito deteriorado, pútrido, irreconhecível com suas roupas todas queimadas. No entanto, sua alma fazia com que seu rosto e sua voz ficassem nítidos para o jovem mago.

— Lucien nos disse que você enfrentou essas criaturas. — Durant parecia não ter ideia de quem fosse.

— Nas Terras Taciturnas. Você disse que tinha ouvido esses zumbis falarem lá, não foi?

— Eu não vou fazer isso — respondeu Oliver, ainda dando passos para trás.

— Qual o problema, meu jovem? Ele não vai te acertar. Alexander criou uma proteção poderosa com a Natureza do ar.

Todos os demais guerreiros ficaram curiosos com a reação do jovem mago.

— É o David. Aquele cara que me atacou quando entrei na Guarda.

Depois da fala do garoto, o grupo inteiro se afastou da jaula, espantado pela notícia.

Até mesmo o senhor Durant chegou a hesitar, porém, logo se recompôs e voltou a falar:

— Você precisa nos ajudar a salvá-lo.

— Não há salvação. — As palavras saíam amargas de sua boca. — Já é tarde demais.

— Pode pelo menos pedir para ele dizer quem fez isso? Talvez possamos conseguir informações valiosas.

O garoto direcionou um olhar de repúdio para o pequeno Conselheiro. Em seguida, olhando de volta para dentro da jaula, sentiu que o garoto lutador já estava caindo em um estado de perturbação. As dores da morte começariam a se repetir diversas vezes em sua alma. Ele não iria dizer nada, por simplesmente não conseguir raciocinar.

Mas ainda era possível libertá-lo do sofrimento.

Oliver sinalizou para Durant e seus companheiros esperarem onde estavam e começou a se aproximar do corpo de David.

A cada passo, o lutador revidava com socos na jaula. Conseguia criar algumas brasas nos punhos, mas elas eram repelidas pelo vento que circulava a prisão.

— Foi você que mandou me prenderem? Eu vou acabar com a sua raça!

Oliver ficou em silêncio completo, apenas olhando para David. Ao chegar mais perto, apoiou-se com firmeza na muleta para poder ajoelhar-se e encará-lo.

— Você se lembra do que aconteceu?

— Eu estava preso com a cabeça na terra por causa de algum idiota e depois me colocaram aqui. Anda, manda me soltarem. Todo mundo me ignora. Já gritei aqui por horas.

— Prospéria tinha sido atacada. Você estava lutando contra alguém?

— É, acho que sim. Alguém vestindo um sobretudo. Nem adianta perguntar mais do que isso, não consigo lembrar. E por que está todo mundo olhando esquisito para gente?

Oliver olhou em volta. Todos estavam confusos com a forma que ele lidava com a situação.

— David, esse cara aí que te enfrentou durante a invasão provavelmente era um necromante ou algum traidor disfarçado. Em algum momento, ele deve ter te acertado um golpe fatal. Tenta se acalmar, que eu vou te ajudar com isso.

Tudo o que Oliver recebeu foi um olhar perdido, desesperado. Não houve nenhuma manifestação da alma do garoto por alguns segundos, até que seu corpo começou a arder em chamas.

— Não, não, não!

Os restos dos braços de David pareciam duas fogueiras enormes, acumulando força para tentar destruir o cárcere onde ele estava. A cabeça de Oliver doía ao ouvir toda a perturbação do lutador após ele ter recebido aquela notícia.

— Dá para parar? — gritou Oliver. — Tá afim de cremar seu próprio corpo? Vai ser muito pior do que toda a dor que você está sentindo agora.

— É mentira! Você mandou aqueles espíritos fazerem isso comigo porque sou muito melhor que você.

David se afastou de Oliver, andando de costas até o outro lado da jaula onde estava. Os braços estavam começando a virar cinzas, mas ele ainda iria tentar atacar o jovem mago.

Observando o que estava por vir, Oliver apenas aguardou o ataque.

Quando David se aproximou, com os punhos em fúria e prestes a sumir dentro das chamas, um grande círculo de magia se formou entre os dois, fazendo o jovem lutador parar.

A luz esmeralda cintilava forte, criando uma espécie de espelho. David, então, viu seu corpo e sua alma, já distintos, mas ainda grudados um ao outro pela necromancia.

— Sinto muito — disse Oliver, tentando se levantar e recuperar o fôlego.

David não dizia uma palavra. Ficou apenas olhando através daquele estranho reflexo, horrorizado. Se reconhecendo e se estranhando ao mesmo tempo. Tomando consciência de que seu corpo físico estava pouco a pouco sendo destruído.

— Q-quem fez isso?

— É o que eu quero descobrir. Mas, agora, o importante é te ajudar a quebrar a necromancia.

— Não! — David voltou a olhar para Oliver. — Me deixa viver mais um pouco. Quero acabar com a raça do desgraçado que me deixou desse jeito.

— Existir nessa forma não é viver. Eu posso tirar esse...

— Escuta aqui! — O corpo de David deu um soco no círculo de magia. Sua mão direita imediatamente caiu no chão, deixando apenas um pedaço do braço no lugar.

Ele encarou Oliver por um tempo. Foi outro momento cercado de silêncio e lamentação. Era nítido que David queria extravasar sua raiva, seja pelo choro ou pela luta, mas não conseguia fazer nenhum dos dois.

— Me prometa que você vai vencer — disse David, por fim. — Você está lutando pela minha alma agora. A alma de um Chevalier, um guerreiro poderoso.

— E eu não vou decepcionar — respondeu Oliver, curvando-se em respeito ao jovem lutador.

A alma de David estendeu a mão. Enquanto o corpo físico do garoto limitou-se à resistência daquela prisão, a verdadeira essência dele já havia atravessado. Oliver o cumprimentou, segurando-o firmemente. Aos poucos, o jovem mago foi fazendo com que toda a alma saísse daqueles restos mortais.

Sabendo que não haveria muito tempo, apenas sorriu. Logo, ele foi retribuído com uma feição de alívio de David, que estava liberto de sua dor.

 

 

Quando o corpo de David jazia no chão, imóvel e queimando até o último fio de cabelo, Oliver se afastou da jaula e voltou para perto de seus companheiros e do senhor Durant.

— O que houve? — perguntou Leanor. — Você estava falando sozinho.

— Está acabado. A alma dele quebrou, como todas as que sofrem necromancia, mas consegui evitar o sofrimento.

— Meu jovem. — O pequeno Conselheiro apoiou sua mão no ombro de Oliver. — Sentimos muito pela forma que sua família foi tratada.

— Por que isso agora?

— Monique deu testemunho sobre o que Bernard falou com vocês. Vivienne também. Sua família será oficialmente perdoada. E peço que confie na Monique, é a guerreira mais forte que existe nesse lado do continente.

Oliver mais uma vez fitou os olhos da grande espadachim, que não disse uma palavra. Em seguida, ele virou-se para seus companheiros.

— Pessoal, nós vamos até o fundo disso, certo?

— É claro! — os dois responderam prontamente.

— Saibam que você e a garota serão aceitos de volta.

— Não quero voltar.

Durant olhou para Oliver, com mais curiosidade do que espanto, diferente de seus amigos.

— Somos aliados contra os invasores, só isso. Vocês querem restabelecer Prospéria, mas não é o suficiente. Vou lutar por algo diferente, por isso não vou voltar.

O jovem mago saiu em direção a sua casa, ainda restava prestar condolências ao seu avô. A perna estava vacilante pelo esforço, mas continuava o mantendo de pé.

"Está tudo mais claro", refletiu. "Eu realmente nunca fui um guerreiro da Guarda".

 

***

 

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