Volume 1 – Arco 1
Capítulo 14: Cara ou coroa
Até que ponto isso poderia ser só uma coincidência?
Primeiro o laboratório, agora no cassino. Por que ele não age diretamente se o objetivo é nos parar?
— Me perdoe, mas surgiu um imprevisto importante, vamos remarcar essa partida para outro dia. — Como compensação por cancelar depois de todas as preparações, peguei o cartão do prisioneiro que jogaria contra e bati com o meu cartão, transferindo metade dos ganhos que consegui contra o Grão-mestre. — Qualquer dia desses eu volto para pegar meu dinheiro de volta!
Ofereci um aperto de mão e o prisioneiro me puxou e deu um abraço.
— Tome cuidado — sussurrou no meu ouvido. — Como não descobriu por conta própria, vou ser mais direto, alguém está te rastreando com um aroma que colocaram nas suas costas.
Dei duas batidas nas costas dele e o empurrei para longe enquanto ria, para passar a imagem de que ele só tinha feito uma piada. Me despedi dos outros, recolhi minhas cartas e me reuni com o restante dos fujões, fora do cassino.
— Tenho quase certeza de que o Grão-mestre tem culpa nisso — comentei, me aproximando do Vibogo e cheirando sua camisa, o que deixou ele bastante confuso.
— Depois do que o Vibogo fez, era só questão de tempo mesmo — disse o Brutamonte.
Realmente havia um cheiro anormal, quase imperceptível, mas inconfundível, parecido com manteiga.
“Mas se alguém consegue rastrear um cheiro tão sutil como esse, por que ele precisaria de um perfume especial?”
— Não só agora, mas em todas as fugas.
— Eu discordo — disse o Poeta. — Seria trabalho demais para um preguiçoso como ele.
— Nas fugas anteriores, vocês sentiram que estavam sendo seguidos ou observados?
— Ih, o herói endoidou — disse Vibogo, puxando sua camiseta para checar se tinha algo de errado em suas costas.
— Se sua paranoia for a única base dessa sua teoria, pode parando por aí — disse Saturno.
— O sabotador que o Vibogo me contou antes pode ser quem o balconista viu. Quem lidou com o Bernardo não vestia nem roupas de prisioneiros, nem de guardas.
— Se tem mesmo alguém sabotando nossas fugas, é contra intuitivo pensar que ele se revelaria para impedir um problema que nem é dele — disse o Poeta.
— E considerando que seja mesmo verdade, o que devemos fazer com essa revelação bombástica? — perguntou Vibogo, em um tom irônico. — Já vi o Poeta fazer algumas roupas que cairiam nessa descrição, devemos interrogar ele?
— Se quisermos que essa fuga funcione, primeiro precisamos despistar eles.
— Como? — perguntou o Poeta.
Primeiro precisávamos nos livrar desse perfume rastreador. Visto que até o perfume especial das cartas se perdia na água, poderíamos ir em uma fonte da praça e nos lavar lá, porém, isso só faria quem está nos seguindo agir mais rapidamente.
— Pelo lago.
— Ali é a saída mais óbvia, impossível conseguirmos arrumar qualquer coisa por lá — disse o Poeta.
— Só vamos comprar tempo, não fugir.
Depois de mergulhar no lago, é possível partir para quatro direções diferentes, tanto subterrâneas, como pelo sistema que transporta a água diretamente para a cozinha, quanto por alguns riachos próximos.
Provavelmente os guardas devem ter confiscado o barco de pesca, mas dificilmente lembraram de trancar o armazém dentro da floresta, onde ficam os caiaques. E mesmo trancando, a porta cairia aos pedaços com a menor das batidas.
Quem está nos seguindo descobriria que fomos para o lago, mas dependeria da sorte para descobrir qual dos caminhos nós tomamos.
— Comprar tempo no setor mais longe daqui? — perguntou o Poeta.
Esse era o grande problema. No tempo até chegarmos lá, mesmo correndo na maior velocidade registrada por um humano, por todo percurso, ainda demoraríamos cerca de quinze minutos para chegarmos.
Tempo suficiente para essa situação caótica se estabilizar e perdemos a nossa melhor chance de fuga.
— Já sei! Por que não alugamos uma das bicicletas da academia? — disse Vibogo.
— Se ainda estiverem lá, ir para o lago pode se tornar mais viável... Mas se os guardas confiscaram ou os outros prisioneiros pensaram na mesma coisa, vamos abandonar essa ideia — disse o Poeta.
A caminho da academia, expliquei meu plano e ouvi a perspectiva deles. Ainda não foi o suficiente para os convencer, mas eles também não tinham nenhum argumento forte o suficiente para me rebater completamente
— Saturno é só um apelido, não é? — Nesse impasse, decidi falar com o único que não foi totalmente contra a minha ideia.
— Obviamente.
— Você mesmo escolheu ou aceitou o que os outros pensaram que combinaria?
— Meus companheiros de cela disseram que eu parecia esse herói
— Sabe o motivo?
— Digamos que nossos crimes são bem parecidos.
— Perdoe minha ignorância, mas para mim isso não esclarece muita coisa.
— Fui preso porque o juiz considerou minha auto defesa excessiva demais.
— E o que isso tem a ver com o herói Saturno? — E o Poeta se intrometeu na conversa.
— Pelo que esse herói é mais conhecido? — perguntei.
— Assim como todos os contos antigos, existem algumas versões alternativas, mas a que eu conheço diz que seu nome começou a se espalhar por conta de uma revolta. Ele é um dos menos populares por não ter feito tantos feitos importantes, mas existe uma cidade que foi batizada em sua homenagem.
— O apelido vem de uma dessas histórias alternativas, não essa — disse Saturno. — Existe um rumor que diz que ele apenas recebeu esse nome de um herói de outro mundo, mas nasceu nesse. O apelido vem da forma que ele recebeu esse nome...
— Chegamos! — gritou Vibogo. — Podem continuar essa historinha depois, parece que a academia está aberta.
Entramos por um arco de mais de três metros de altura, que abria da mesma forma que as portas das celas, mas com um barulho consideravelmente mais alto e grave.
Como podia ver pelo exterior, o teto se estendia por dezenas de metros em formato de pirâmide e em seu centro possuía uma abertura que iluminava todo interior, dando uma sensação espaçosa, mesmo que a academia em si não fosse tão grande.
Não havia nenhum dos equipamentos convencionais de corda ou instrumentos muito sofisticados, mas para compensar isso, havia pesos de diversos formatos e uma quantidade surpreendente de barras e halteres, também com algumas variações que pareciam ser só mudanças estéticas, sem muita utilidade prática.
Andamos por uma variedade de cadeiras e pilhas de colchões, alguns em bom estado, outros nem tanto, até chegarmos no fundo da academia e passarmos por mais uma porta.
Essa sala estava repleta de artefatos e pedras elementais. Conheci reconhecer uma que parecia o medidor de reserva mágica que o Khajilamiv usou para descobrir minha capacidade nula, ligada em uma esteira circular com obstáculos. Mas outras máquinas pareciam menos intuitivas, como uma placa metálica com duas setas no chão.
Pisei na seta que apontava para a direita e meu pé foi arremessado para longe, me derrubando em cima de outra máquina que me deu um leve choque e começou a fazer alguns sons estranhos.
Felizmente, o Brutamonte que estava por perto conseguiu desligar tudo com facilidade, evitando um acidente ainda maior e até explicou como usa-las do jeito correto.
Saindo dessa sala, passamos por um banquinho com diversas toalhas dobradas, ao lado de uma porta de madeira desgastada. Coloquei a mão sobre a porta e senti que estava quente e úmida, provavelmente uma sauna.
A poucos passos de distância havia outra, com casacos e cobertores no lugar de toalhas e uma porta seca e fria.
Como de costume, cada seção da academia era marcada por um cheiro único e em um dos corredores, consegui ver de onde vinham. Parte do teto estava exposta para manutenções e lá estava um recipiente de vidro meio cheio com um líquido azulado, ligado por tubos em um ventilador apontado para baixo.
“Ainda bem que não encontraram um jeito de perfumarem as áreas externas.”
Mais um corredor e duas portas depois, chegamos à saída dos fundos, onde supostamente ficavam as bicicletas.
O Poeta colocou seu cartão de cela, mas a porta não respondeu.
— Com licença... — O Vibogo encostou a chave mestra na porta e ela abriu. — É, demos azar.
O quintal da academia estava repleto de espaços vazios para guardar as bicicletas.
Como suspeitava pela falta de movimento nesse lugar, quem treina regularmente deve ser considerado perigoso demais para se deixar solto por aí. Os guardas devem ter chegado pela entrada, os prisioneiros vieram para cá e pegaram as bicicletas para fugir pelos fundos.
Os colchões rasgados e equipamentos quebrados só reforçam essa ideia. Parecia comum visto que ainda é uma prisão, porém todos os outros equipamentos e móveis de todas as salas além da entrada pareciam quase novos.
Os guardas tiveram tempo para arrumar tudo, mas não substituir por equipamentos novos, trabalho de alguém que deve estar escondido no meio dessa confusão.
— Olha, ainda sobraram alguns.... — disse o Poeta.
— De jeito nenhum que vou andar em um negócio deles — disse o Brutamonte.
— Meio inconvencional, mas que escolha temos? — E o Vibogo caminhou até a bicicleta de casal. — Quem vem comigo?
Os prisioneiros podem ter levado todos os meios de transporte comuns como bicicletas normais e sapatos aprimorados, mas deixaram para trás uma bicicleta para casais, um monociclo, patins e um par de esquis.
Como o Poeta era o único que sabia andar de patins, o Vibogo e o Brutamonte foram na bicicleta de casal. Amarramos um elástico de exercícios nos dois e eu e o Saturno ficamos com os que restaram: eu peguei o par de esquis e o Saturno o monociclo.
Normalmente os esquis não funcionariam na terra, mas o Vibogo congelou a parte de baixo para deslizar melhor, então fomos nos segurando no elástico amarrado neles.
As primeiras tentativas foram desastrosas. Os dois pedalavam em um ritmo diferente, acelerando e parando subitamente, desequilibrando e derrubando o Saturno, que estava a um passo de enlouquecer.
Ao som de nossas discussões, o Poeta praticava uma graciosa seção de patinação artística em um nível de habilidade surpreendente: pegando velocidade, fazendo um salto com dois giros no ar, caindo e se equilibrando em só uma perna, pegando impulso de costas, fazendo uma curva inclinada, quase encostando no chão, para seguir com uma sequência de giros, trocando de pé de apoio e estendendo o outro em um ângulo perfeito de 90 graus.
Graças a seus movimentos chamativos, um por um, fomos tendo nossa atenção capturada e as discussões se acalmaram. Com o movimento final e os nossos aplausos, o Poeta desacelerou, sendo levado lentamente as flores, que colheu e trouxe para perto de seu nariz.
“Predestinado a ser tudo menos um poeta... Realmente não era exagero.”
— Atchim! — A bela cena foi interrompida por um nariz escorrendo, o que acabou melhorando ainda mais o clima.
Finalmente conseguimos nos organizar de forma minimamente funcional, então estávamos prontos para partir.
— Vamos decidir na moeda? — perguntou Vibogo.
— Se as bicicletas não estivessem aqui, iriamos buscar outro meio de fuga, mas como temos uma forma para chegar lá rápido o suficiente, não é justo irmos para o lago?
— Isso parece uma bicicleta para você? — perguntou o Brutamonte.
— Ter um meio de chegar no lago nem era o pior dos problemas — disse o Poeta, limpando o suor com uma das toalhas da sauna. — Como você mesmo falou antes, ir para o lago só é uma alternativa válida se estivermos sendo seguidos. Sua única pista veio de um completo desconhecido e o Vibogo confirmou que não tem ninguém em um raio de cem metros de nós, pelo detector dos guardas, até quando paramos por todo esse tempo.
— Então quem lidou com o lobisomem que nem mesmo o Saturno conseguiu enfrentar, quando o grão-mestre estava bem na nossa frente?
— Você viu com os próprios olhos outros chapéus dourados na solitária.
— Se fosse um deles, o balconista não teria nem dúvida de quem era.
— Novamente, outra fonte de confiabilidade duvidosa.
— Chega disso! Vocês não cansam não? — gritou Vibogo. — Se cair cara, vamos para o lago, coroa, buscamos outra saída.
Quando ele jogou a moeda para o alto, uma explosão distante capturou nossa atenção.
O Poeta foi o primeiro a atravessar a cerca e ver o que tinha acontecido:
— A fumaça está vindo do laboratório!
— Os lobisomens fugiram?
A fumaça, antes rasteira e incolor, se fundiu as cinzas da explosão e se espalhou para todo canto.
— Caiu coroa — disse Vibogo.
De dentro dela, uma alcateia de lobisomens a beira da transformação completa, avançou em todas as direções, dilacerando tudo que se movia.
— E agora?
— Não importa para onde, só vamos sair daqui! — E o Poeta patinou na direção oposta do laboratório.
Mais uma explosão e gritos ainda mais distantes surgiram, um atrás do outro, reacendendo revoltas em todos os setores, destruindo a situação que parecia estar ficando dentro do controle.
Mas a revolta mais intensa só explodiu alguns minutos depois, na mesma biblioteca que estávamos a pouco tempo atrás. Outros da solitária começaram a libertar os prisioneiros contidos no início da revolta e esses soltos partiram para vandalizar e atacar os outros setores.
— Além do machado, você retornou na solitária para libertar todos eles? — perguntei para o Saturno.
— Não foi minha ideia.
— Por que fez isso Vibogo?
Ele sorriu e deu de ombros:
— Agora temos mais tempo para fugir.
Uma única batida no sino, seguida de uma melodia de trompetes, anunciaram o hasteamento de uma bandeira preta com uma única estrela dourada em seu centro.
O sorriso do Vibogo caiu na mesma hora.
— Talvez deveria ter me segurado um pouco — respondeu Vibogo. — O general está a caminho.
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