Volume 1
Capítulo 2: Cidade Sem Nome
O vento do mar soprava constante, trazendo consigo o cheiro salgado da água e o lamento distante das ondas quebrando contra as pedras. Nikki permanecia sentado sob a praia, com os pés afundados na areia fria e úmida. Estava ali há longos minutos — talvez até mais do que gostaria de admitir — apenas olhando o horizonte, tentando reorganizar os pensamentos que se embaralhavam em sua mente.
E ali, entre um suspiro e outro, Nikki finalmente chegou a uma conclusão. Não foi algo revelador, nem uma epifania repentina. Apenas aceitação.
— É como o vovô costumava dizer: “não podemos ficar sentados esperando que um milagre desça do céu” — Nikki murmurou para si. — Preciso encontrar uma forma de voltar o quanto antes.
Apesar da exaustão, seu espírito estava determinado. A mente, que ainda se arrastava pelas memórias da tempestade, se ancorou na ideia de fazer algo, qualquer coisa. Com um suspiro pesado, ele se levantou e começou a explorar a praia onde havia acordado, sentindo a areia fria sob os pés.
— Eita! Companheiro, aquilo é mesmo o que tô vendo?!
Ele parou abruptamente, os olhos arregalados. À distância, algo chamava a atenção. Entre as ondas e a areia, uma estrutura de madeira estava despencada. A visão o fez acelerar o passo.
Não pode ser...
O coração de Nikki disparou enquanto ele corria, a respiração irregular e a mente cheia de pensamentos confusos. Chegando até o local, ele parou; o vento batia no rosto enquanto recuperava o fôlego. Ali, diante dele, estava seu barco, mas apenas o que restou dele: o casco quebrado, as tábuas rachadas, pedaços de madeira espalhados pela areia.
— Droga, companheiro! Tá só a capa da gaita! — a exclamação saiu como um grito abafado, um som de dor e frustração misturados.
Seus olhos se encheram de lágrimas, mas ele as repreendeu, não permitiu que a fraqueza tomasse conta. As mãos tremeram durante o momento em que tocou os pedaços do barco.
— Perdi tudo durante a tempestade. Nem um peixinho veio mais eu... Não tenho nenhuma ferramenta… — Ele olhou em volta, procurou como se as respostas estivessem escondidas nas pedras, nas ondas ou no céu. — Como vou reconstruir isso, companheiro?
Um frio leve, e constante, percorreu seu corpo. A ideia de estar preso aqui, em um mundo que não compreendia, sem qualquer perspectiva de resgate, lhe causou uma grande angústia. O medo de ficar para sempre o engolia pela vastidão da praia deserta.
— Claro! Deve haver mais pessoas por aqui. Posso conseguir ajuda, companheiro! — murmurou para si, houve o alívio da esperança nascendo.
Movido pela ideia de que não estava completamente sozinho, Nikki deu um salto e correu em direção à densa mata que se estendia além da praia. Suas pernas, cansadas, ainda responderam à urgência da mente. O levaram adiante.
Enquanto avançava pela floresta, as árvores se fecharam ao redor dele, o caminho estreitou-se em uma paisagem selvagem e inexplorada.
Ele colheu as frutas que encontrou no caminho, mastigou-as sem pensar, era o que tinha para se alimentar. Seus olhos vasculharam a vegetação em busca de qualquer sinal de civilização.
Uma súbita pausa, fez com que Nikki se detivesse. Ele encarou o que procurava. O sol, que se filtrava por entre as folhas, iluminou o cenário que o fez parar por completo.
— Isso… são ruínas? — Os olhos arregalados, o peso das palavras restou no ar.
Diante dele, espalhadas pela floresta, estavam antigas construções. Restos de madeira e tijolos que uma vez formaram casas, agora reduzidas as pilhas caídas entre a vegetação. Alguns alicerces permaneciam, mas a maioria da estrutura havia se degradado.
As torres que antes tocavam os céus jaziam partidas ao meio, seus topos desmoronados como lanças quebradas. Havia marcas de cortes entre os destroços das casas, e crateras de explosões espalhadas por diversas partes do local. Pedaços de estátuas de mármore — que pareciam representar figuras importantes — estavam mutilados, seus rostos desfigurados pelas chamas de um grande conflito. O que restava do antigo chão de pedra agora era tomado por ervas daninhas, enquanto vinhas se espalhavam pelas paredes dos destroços das casas.
Sua curiosidade, aliada ao estranhamento do momento, o fez se aproximar mais. Ele encontrou algo em uma das paredes dessas ruínas, algo que sobreviveu através do longínquo tempo: uma inscrição. A tinta, embora desbotada, ainda revelou palavras com uma clareza triste.
"Mesmo que destruam nossas casas, mesmo que matem nosso povo, mesmo que nos tirem tudo! Nossos sonhos, memórias e desejos continuarão a viver. Tudo isso estará sempre convosco, nossa querida Cidade Sem Nome."
As palavras penetraram o coração de Nikki como se fossem uma lâmina afiada. Ele recuou, o olhar perdido nas ruínas ao redor e um sentimento estranho começou a se formar dentro dele.
— Entendo, companheiro… Uma guerra. Foi isso que aconteceu aqui. Eles deviam ter perdido tudo e mesmo assim tiveram a coragem de escrever isso?...
Pela primeira vez desde que acordou na praia, Nikki fechou os olhos. Não mais tentou fugir ou correr: se permitiu refletir. As imagens da sua cidade natal voltaram à mente, as cenas horríveis que ele presenciou e o sentimento de nojo e angústia que o consumiram quando partiu para a pescaria. Buscou de algum modo escapar de tudo aquilo.
A paz que ele tanto desejou ficou distante, uma miragem fora de alcance, mas havia algo nas palavras da antiga inscrição, algo que o tocou no fundo do seu ser e o fez entender que não importava o quão distante estivesse de casa, ele não estava sozinho. Não enquanto existisse memória e um último vestígio de esperança para ser encontrado.
“Até nas piores coisa, há sempre algo bom a se observar.”
— Durante toda a minha vida, fui forçado a aceitar as coisas em silêncio... Nunca tive a chance de fazer minhas próprias escolhas ou resistir ao que me impunham. — a voz de Nikki era carregada de uma determinação crua, mas também de um pesar profundo, como se estivesse revivendo cada momento de sua submissão. — Eu vivi como um covarde… Não foi vovô?
Ele parecia falar com a própria sombra do passado, como se ainda pudesse sentir a presença do velho em sua vida, mesmo sem vê-lo.
— Mas isso vai mudar, companheiro! Não vou mais voltar àquela prisão, não vou mais me submeter ao que me dizem. Não passarei por aquilo de novo, não importa o que aconteça! — o tom de Nikki se intensificou, uma força renovada brotando de sua alma, sentia-se finalmente se libertando das correntes invisíveis que o prendiam. — A partir de agora, tomarei minhas próprias decisões. Vou reconstruir este lugar, fazer dele algo novo, e acolher todos que chegarem aqui, como eu sempre deveria ter sido acolhido!
Nikki ergueu os punhos para o céu, desafiando o próprio destino, gritou com o coração em chamas:
— Vou ter muito trabalho pela frente, não é, companheiro!?
Nos dias que se seguiram, Nikki enfrentou jornadas exaustivas de trabalho intenso. Logo nas primeiras manhãs, utilizou os conhecimentos acumulados ao longo da vida para fabricar um machado simples, combinando pedra, galhos e cipós como amarração. Com a ferramenta, passou a cortar madeira e, em pouco tempo, conseguiu erguer uma pequena cabana para se abrigar.
Encontrar comida, no entanto, ainda era um grande desafio. As poucas frutas e ervas que conseguia colher, tornaram-se sua única fonte de sustento. Para se manter hidratado, recorria à água dos riachos e rios próximos, sua principal — e única — fonte confiável.
À noite, sentado diante de uma fogueira feita com pequenos galhos, repassava mentalmente os avanços do dia. Às vezes era a descoberta de um novo ponto de coleta de água; em outras, a construção de uma parede que o protegia melhor do vento. Cada conquista, por menor que fosse, representava um alívio — uma indicação de que, mesmo perdido, ele estava dando forma a algo. Talvez não apenas a um abrigo, mas também a si mesmo.
O trabalho físico era incessante. Nikki cortava madeira com seu machado improvisado, escavava o solo em busca de pedras planas para reforçar a base do abrigo e arrastava troncos pesados para construir uma estrutura resistente. Suas mãos, antes macias, tornaram-se calejadas e sujas de terra. A cada dia, ele se adaptava mais à nova realidade, tornando-se mais ágil e eficiente em tudo o que fazia.
Cada passo sob as árvores densas era um esforço contínuo. Os caminhos eram íngremes, traiçoeiros, muitas vezes enlameados pelas chuvas repentinas. Nikki parecia começar a aprender os sussurros do mato, a identificar os sinais sutis de onde poderia haver uma fruta escondida ou uma raiz comestível. Ervas aromáticas, com propriedades medicinais ou simplesmente capazes de disfarçar o gosto amargo da fome, tornaram-se suas companheiras silenciosas.
Mas nem todos os dias eram frutíferos. Houve manhãs em que ele vasculhou a floresta por horas e voltou de mãos vazias, apenas para comer um punhado de folhas amargas ao anoitecer.
A cada amanhecer, ele despertava com os músculos doloridos e o corpo coberto de picadas e arranhões. Ainda assim, aos poucos, foi aprimorando seus equipamentos. Usando seixos dos rios, construiu uma picareta rudimentar com galhos e cipós. Com ela, passou a coletar minerais abundantes na região, como hematita, quartzo e até mármore encontrado nas ruínas próximas.
Em pouco tempo, ele foi aprimorando sua casa e construindo outras ao redor. Parecia ter adquirido uma enorme experiência. Conseguiu até mesmo montar uma forja improvisada de madeira para fundir metal e, posteriormente, construiu uma verdadeira forja de ferro.
As ferramentas que criava eram impressionantes. A qualidade de seu trabalho era surpreendente, mesmo utilizando recursos muitas vezes de baixa qualidade. Ele demonstrava um amplo conhecimento sobre a arte da forja, e seu talento era notável.
Após várias semanas, um velho mercador começou a se aproximar do vilarejo em formação. À medida que observava o que havia sido construído, seu semblante revelava surpresa. Olhava ao redor com os olhos arregalados e murmurava para si, incrédulo: “Isso não é possível... Quem será que fez tudo isso?”
Ele se aproximou da cabana mais afastada. Ao chegar, empurrou a porta com cautela e entrou devagar, examinando cada detalhe com atenção. Lá dentro, encontrou Nikki cochilando, recostado em uma cadeira de madeira no fundo do cômodo, roncando suavemente.
— Hum… Então foi aquele velho que fez tudo isso? Senhor… o senhor está dormindo? — disse ele, dirigindo-se a Nikki, enquanto mantinha os olhos fixos nele. Aproximava-se lentamente, observando-o com incredulidade e admiração.
— Que isso, companheiro?! As assombrações tão vindo me pegar! — gritou Nikki, desesperado, ao acordar com um susto. No reflexo, deu um impulso para frente e acabou quebrando a cadeira de madeira em que estava sentado.
Ofegante e com o corpo trêmulo, ele encarou o velho mercador por alguns segundos. Logo percebeu que o que estava à sua frente não era nada místico ou ameaçador. Aos poucos, foi se acalmando.
— Oiá… É só uma pessoa… Fazia tempo que eu não via ninguém, você me deu um baita susto companheiro! — disse com um sorriso tímido no rosto, enquanto começava a se recompor e recuperar sua postura.
— Me desculpe! Não era minha intenção assustá-lo… e perdão pela cadeira quebrada. Eu não devia ter entrado assim, de repente — falou o velho, enxugando o suor que escorria por seu rosto enrugado. Seu sorriso era constrangido, quase nervoso, e seus olhos demonstravam um misto de arrependimento e curiosidade.
— Tá tranquilo, companheiro… Não se preocupa, eu conserto a cadeira depois — Nikki se ergueu enquanto a tensão em seu rosto começava a se dissipar. Com um suspiro leve, ele recolheu os restos da cadeira quebrada e os colocou em um canto da cabana.
O velho mercador começou a observar as ferramentas espalhadas pela cabana de Nikki. Sua boca se abriu em espanto, e seus olhos se arregalaram. Levou a mão à cabeça, incrédulo, e então exclamou:
— Foi você que fez tudo isso?… Eu nunca vi algo assim! Nunca vi tanto talento! — as palavras mal escapavam de sua boca, enquanto ele mantinha os olhos fixos nos objetos com admiração.
— Fui eu mesmo, companheiro! Meu avô me ensinou a forjar muito bem — retrucou Nikki, com um certo orgulho na voz.
— Senhor, eu tenho uma proposta a lhe fazer… Vi aquelas outras cabanas lá fora, presumo que foi o senhor quem as construiu também. Por que não transforma este vilarejo em uma cidade para comerciantes? E por que não faz da sua casa uma loja de ferraria? O senhor pode ganhar muito dinheiro com isso! — exclamou o velho, olhando fixamente para Nikki, com um brilho de entusiasmo nos olhos.
— Dinheiro!? Você falou em dinheiro!? Isso é uma ótima ideia… é perfeito! — enquanto um sorriso se alargava de ponta a ponta em seu rosto. Nikki começou a esfregar as mãos, empolgado com a possibilidade.
— Aliás, qual é o seu nome, senhor? E como vai se chamar a cidade? — retrucou o velho comerciante, rindo com bom humor.
— Meu nome é Nikki Inácio, e o nome desta cidade… é Cidade Sem Nome. — Ao pronunciar essas palavras, o olhar de Nikki se encheu de felicidade, e seu sorriso irradiava um brilho sincero e esperançoso.
Com o passar dos anos, o que antes era apenas um ponto isolado no mapa transformou-se em uma cidade em expansão. Aos poucos, as estruturas foram reconstruídas, dando forma a uma pequena comunidade. Seus habitantes eram, em grande parte, viajantes e comerciantes que por ali passavam e decidiam permanecer.
Nikki, com o tempo, tornou-se uma figura respeitada. Sua habilidade como ferreiro — ofício que aprendera com o avô — era amplamente admirada. Forjava utensílios e ferramentas com precisão e dedicação, tornando-se um dos pilares fundamentais da nova cidade.
Foi assim que o lugar ganhou um nome — ou, talvez, a ausência de um. Carinhosamente apelidada de “Cidade Sem Nome”, ela se erguia das cinzas de um passado esquecido, simbolizando a promessa de um recomeço.
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