Volume 1
Capítulo 3: Espectro Amaldiçoado
O vento assobiava entre as colinas cobertas de neve. Carregava as partículas que se juntaram no ar, partes da nevasca. A neve parecia se alastrar, e cobria todo o horizonte. Nada além do silêncio — e do frio — prevalecia.
No meio desse deserto congelado, uma figura solitária avançava, indiferente à tempestade. O passo era lento, vagava sem rumo, incapaz de sentir o vento cortante ou a neve que se acumulava sobre seus ombros.
Seu corpo era envolto por uma capa cinza esfarrapada que ondulava com a ventania. Os cabelos prateados oscilavam e destacaram a única mecha ruiva na cabeça. A pele, tão pálida quanto a neve, se misturou com o cenário, indistinguível ao lugar. Por fim, o pequeno brinco vermelho na orelha direita.
Seus olhos estavam abertos, mas não focavam em específico. Não sabia o destino, tampouco a razão dos passos. Seu caminhar vinha por inércia e os rastros deixados na neve fofa eram rapidamente cobertos pelos fortes ventos. Ainda assim, seguia adiante.
Seu passo começou a vacilar, hesitante, enquanto um pensamento parecia emergir a si.
Ainda não estou conseguindo movimentar bem meu corpo; parece que tenho que arrastá-lo por aí…
O tempo passou.
A neve diminuiu e revelou solo firme, onde folhas secas se acumularam sob os galhos das árvores. Flores se abriam enquanto pequenos animais deixaram suas tocas e correram pela grama alta. Conforme o caminhar do viajante, o verde se espalhou pelo cenário e envolveu-o.
A cada passo, seus pés afundaram na terra encharcada. A neblina rastejava entre as árvores retorcidas. Os ruídos da floresta vinham de todos os lados: os estalos de galhos, folhas sendo pisadas e o farfalhar de asas inquietas. Os uivos distantes ecoaram, longos e lamurientos, choros de criaturas famintas.
A cada novo bramido, os pássaros noturnos se calaram e até o vento se escondeu. Independente disso,o viajante seguiu, firme e com os olhos cravados na trilha quase apagada à frente.
Ele só parou quando um estalo seco de galhos quebrando cortou o silêncio. O som veio da frente e, das sombras cerradas da mata, cinco pares de olhos amarelados se acenderam como brasas, fixos nele. Um arrepio gelado percorreu sua espinha e os pelos se eriçaram. A alcateia surgiu da escuridão, lenta e ameaçadora, com os corpos tensos, pelos eriçados e os dentes à mostra. Um rosnado baixo vibrou no ar em direção ao sujeito.
Imóvel, o viajante permaneceu. Ficou diante dos olhares, os rosnados e ahostilidade das feras.
O líder da alcateia — o lobo de olhar selvagem e presas à mostra — avançou sem hesitação, lançou-se contra o sujeito. O viajante estava pronto, num movimento feroz, agarrou o animal em pleno ar e enterrou os dedos no pelo denso e quente. O lobo se contorceu, uivou com um som agudo que rasgou a noite, mistura de dor e fúria.
Então, um estalo seco ecoou. No segundo congelado, o corpo do animal cedeu, mole e pesado, nos braços do homem. A floresta foi tomada pelo silêncio.
Os outros lobos, que antes exibiam presas afiadas e postura agressiva, recuaram. O cheiro de morte preencheu o ambiente e o instinto de sobrevivência falou mais alto. Amedrontados, eles giraram sobre as patas e desapareceram na escuridão da floresta.
O viajante ficou imóvel, o peito arfando, e com os olhos ainda fixos nas mãos. Ele as virou lentamente, como se as visse pela primeira vez, tentando compreender o que acontecera. A lembrança surgia turva, envolta em névoa. Familiar, mas estranhamente nova.
— Desde quando sei fazer isso? — murmurou consigo ao levantar as mãos, ainda tentando dar sentido ao ocorrido. — Suu-Yuky… Acho que tenho muito a aprender.
Um suspiro profundo escapou dos lábios, quase triste. Ele se agachou diante do corpo imóvel do lobo. Por um breve instante, seus olhos cruzaram com os do animal — opacos, agora vazios. Com um gesto firme, passou os braços sob o cadáver ainda quente e o ergueu com facilidade surpreendente, acomodando-o sobre o ombro direito.
Virou-se de volta para a trilha, os passos silenciosos entre folhas úmidas e raízes.
A floresta começou a se abrir. As árvores, antes densas e imponentes, tornaram-se mais espaçadas e permitiram que a luz filtrasse com mais força entre os galhos.
Suu-Yuky viu uma coluna fina de fumaça subindo entre as copas. Intrigado, seguiu na direção do rastro. O chão sob seus pés mudou, tornando-se um estreito caminho de pedras. À medida que o mato cedia lugar a uma clareira ampla, pequenas casas de madeira se revelaram entre a neblina da manhã. Das chaminés rústicas, a fumaça subia em espirais.
Ao se aproximar da pequena cidade, o viajante observou com olhos atentos. As construções eram poucas, simples, espalhadas com certa distância umas das outras, ligadas por estreitas estradas de terra batida. Pequenos canteiros de flores, plantados ao redor das árvores, davam um ar de delicadeza à paisagem. Entre as casas, alguns comerciantes seguiam com suas rotinas calmas: ajeitavam carroças, organizavam mercadorias, trocavam palavras. A vida corria num ritmo lento, imóvel.
Suu-Yuky não sentiu. Nenhuma fagulha de lembrança. Nenhuma centelha de curiosidade.
Ele caminhou pelas ruas, a capa cinza balançava levemente com o vento. Sem desviar o olhar, foi em direção a um dos comerciantes, um homem que organizava a carroça com o intuito de seguir viagem. A cidade parecia imersa em uma calma desconcertante.
Suu-Yuky se aproximou de um dos comerciantes, que terminava de ajustar a carga em sua carroça, observando o mercador enquanto ele ajustava as cordas e verificava a carga. O cheiro de madeira seca e couro surrado se misturava ao ar poeirento da estrada. Suu-Yuky esperou alguns instantes, sem pressa, antes de falar:
— Tem um momento?
O mercador ergueu o olhar e franziu levemente a testa ao examinar a figura diante dele. O desconhecido ficou deslocado, a presença do andarilho não pertencia àquele lugar.
— Depende. O que você quer? — perguntou, ainda segurava uma das cordas da carroça.
Os sussurros não demoraram a surgir ao redor. Suu-Yuky não precisou virar a cabeça para notar os olhares curiosos e desconfiados que se voltaram para ele. As palavras chegaram abafadas, mas compreensíveis o suficiente:
— Quem é esse?
— Nunca o vi por aqui.
— Algum andarilho… ou pior.
Seus olhos permaneceram fixos no mercador.
—Duas coisas… Que lugar é esse? — A centelha de curiosidade do viajante.
O homem soltou uma risada breve, tal pergunta não era algo que costumava ouvir com frequência.
— Você é novo por aqui, hein? Olha em volta, aqui é a Cidade Sem Nome. Um ponto de passagem, sabe? A gente para, reabastece, troca umas mercadorias entre si, descansa um pouco e segue viagem. É meio caótica, mas funciona.
Ele deu de ombros e se aproximou do cavalo preso à carroça. Com calma, tirou uma maçã do bolso e ofereceu ao animal, que mastigou devagar. Ele falava com tranquilidade:
— Agora, se você tá atrás de comércio de verdade, daqueles grandes, cheios de luxo e barulho… aí vai ter que seguir pras cidades maiores. Aqui é mais pra quem vive na estrada.
— Entendi... Um lugar assim, no meio do nada — murmurou, sendo a primeira vez que via algo do tipo. Depois, prosseguiu com o que queria propor: — De toda forma, teria interesse em comprar isso?
Com um movimento seco, ele jogou o corpo do lobo no chão entre os dois. A carcaça caiu com um baque surdo, levantando um pouco de poeira.
— Caçado esta manhã — acrescentou, semelhante a quem comenta o clima. — Carne fresca. Couro inteiro.
O comerciante arqueou uma sobrancelha, desviando o olhar entre o viajante e o lobo sem vida. O sangue seco manchou o pelo espessoe as marcas no pescoço denunciaram a morte rápida, mas brutal.
— Hm… — O mercador cruzou os braços. — Já estou de saída, mas se me permitir dar uma olhada na “mercadoria”, talvez possamos negociar… senhor?
A frase pendurada no ar indicou a expectativa pelo nome, mas Suu-Yuky não se deu ao trabalho de preenchê-la, apenas assentiu com a cabeça.
— Sem problemas.
Com um suspiro curto, ele ajeitou o manto sobre os ombros e recuou um passo, permitindo que o homem avaliasse a carcaça. Enquanto acontecia, o viajante ergueu os olhos para o céu. As nuvens se arrastavam lentamente e se desfaziam em formas indefinidas.
Ele piscou algumas vezes. Algo não estava certo.
O tempo passou em silêncio. O comerciante puxava o pelo do animal, analisava seus dentes, verificava a qualidade da carne. Processo minucioso, porém sem pressa.
— A pele não é das melhores, mas dá para vender. Cinco moedas de ouro.
Suu-Yuky continuava olhando para cima, olhos fixos em um ponto invisível.
— Ei! Tá me ouvindo?
— Hm? Sim. — Ele piscou algumas vezes, de volta à realidade.
Antes de responder, observou a carroça do comerciante. Pequenos embrulhos descansaram sobre um pano puído. Pequenos bolinhos que lhe pareceram mais interessantes do que ouro.
— Em vez de dinheiro, quero a comida.
O mercador o encarou por um instante, intrigado.
— Bom… Não sei o que você tem contra dinheiro, só que… claro, pode pegar.
Com certo receio, o homem empurrou um pequeno saco de pano para ele, um pego imediatamente. O mercador, por sua vez, lançou um último olhar intrigado para a estranho antes de jogar o lobo sobre a carroça.
Tirou um dos bolinhos, levou à boca e mordeu. Mastigava. O sabor doce da massa não tinha impacto, apenas comia.
Realmente… Não há gosto algum.
Ele engoliu, forçou a continuar.
Também não é como se eu não precisasse comer.
Ao terminar o último pedaço, voltou a atenção ao mercador.
— Aliás, sabe onde posso conseguir algum armamento?
O homem arqueou uma sobrancelha, analisando-o por um instante antes de responder.
— Hm… Siga naquela direção. Na última casa da rua, tem um ferreiro muito habilidoso. — Apontou com o queixo. — E cuidado se for comprar algo com ele… tome cuidado com as “facadas”.
Suu-Yuky franziu a testa.
— “Facadas?”
O mercador suspirou e balançou a cabeça com um meio sorriso.
— Deixa quieto. Você vai entender. Hehehe!
Não insistiu, apenas assentiu e virou-se para partir. Após a conversa, virou-se e caminhou na direção que o mercador havia indicado, mas foi parado por um último comentário:
— Só uma coisa! Conselho de alguém provavelmente mais velho: modere no uso de substâncias. Ouvi dizer que essas coisas fazem o cérebro apodrecer!
Sem dar a Suu-Yuky a chance de questionar o que lhe foi dito, o mercante subiu na carroça e partiu.
— Não entendi uma palavra do que ele disse.
Firmou os pés no chão e ajeitou o passo, retomou para o estreito caminho de pedras. As árvores ao redor balançaram levemente com o vento, e o céu nublado tornava tudo mais pálido, sem contraste.
Apenas seguia em frente.
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