Volume 1 – Arco 1
Capítulo 1: A razão de viver
Os sóis se despediam mais uma vez da pequena ilha coberta de neve. Suas colorações — tons de vermelho, laranja e amarelo — tingiam o solo, fazendo-o parecer mais quentinho do que realmente era. As ondas refletiam essas mesmas cores com grande inquietude, agitadas pelo vento.
Os moradores de Fajilla olhavam ao horizonte. Na grande baía portuária, três embarcações realizavam seus últimos empurrões pelas ondas, atracando, sendo a mais adiante a nau capitânia de Heinrich, capitão de uma frota mercante promissora.
Na proa, um jovem incomum de cabelos rosados abria os braços. Era como se Cálix convidasse a cidade inteira para um cumprimento caloroso. Seu sorriso, aberto e desleixado como sempre, indicava a todos que alguém com um grande ego — ou um grande problema — havia chegado.
Ele sentia o cheiro salgado e frio do mar. Mesmo com o incômodo da temperatura, isso não era problema.
O problema era que Heinrich o esfaqueava com o olhar: Cálix não pagou pela viagem. Em vez disso, fez uma promessa:
“Não esquenta, colega. A benção do clérigo aqui foi feita, e uma sereia gatinha com certeza vai aparecer pra te dar um beijinho.” Heinrich se lembrava muito bem dessas palavras — e da vergonha que sentira logo depois. Aquela identificação clerical de Cálix estava toda rasgada. E, para piorar: ele nem parecia um clérigo. Usava uma blusa de moletom, calças grossas e, em sua identificação, havia o nome de um Deus que ninguém conhecia.
Mas agora isso não importava. Se Cálix quisesse uma passagem de volta ao continente, teria de pagar — ou trazer a sereia que prometera.
— Está sentindo, Heinrich? Cheiro de perigo… Acho que vou achar o que procuro aqui — disse Cálix, virando-se para o capitão. Seus olhos dourados brilhavam com os sóis.
— Espero que esteja procurando o dinheiro da viagem. Você me deu calote desde que entrou neste navio… E, sobre a sereia, se começar com esse papinho de novo, vou pegar sua língua solta e te virar do avesso — Heinrich cruzou os braços e fitou Cálix com ainda mais intensidade.
— Ha… Ah, Heinrich, só suas piadas engraçadíssimas mesmo para me manter entretido durante toda essa viagem — respondeu Cálix. Logo depois, ele saltou da proa, caindo diretamente no píer, de onde começou a andar pela cidade.
Antes da conversa com Heinrich, o jovem havia notado outros dois passageiros que desceram de navios diferentes.
Subindo das docas, Cálix olhou para trás, para a bela vista da cidade construída como uma lua crescente ao redor da baía, onde os barcos atracavam. As construções e muralhas exteriores da cidade eram todas de madeira.
Algumas casas tinham fundações de pedregulhos — sinal, talvez, de que pertencessem a nobres locais ou a membros da elite do reino continental. Mas, para Cálix, aquilo não impressionava. Ele vinha de um lugar onde a verdadeira elite vivia acima das nuvens, em arranha-céus com janelas de vidro tão grandes quanto telas de cinema, assistindo ao pôr do sol como se fossem deuses no topo do mundo.
A simplicidade comparável ali era reconfortante para o jovem, fazia quase todos os problemas e preocupações sumirem. Quase.
Com a noite se aproximando, todos os civis de Fajilla que se encontravam nos campos madeireiros fora da cidade começaram a entrar pelos portões de madeira. Naquele mundo, ficar fora de uma cidade durante a noite era um pedido certo para a morte, principalmente quando se tratava de Desconexos — pessoas que não sabiam usar nenhuma forma de misticismo.
Por sorte, a cidade portuária estava protegida por um poderoso feitiço, colocado por algum Magistrado do Reino ao qual a ilha pertencia.
Entre todos que se refugiavam dentro das muralhas, uma figura andava apressadamente em direção aos portões antes que se fechassem. Vestindo um manto preto, Vaia tinha certeza de que seu objetivo estava além da cidade, dentro do bosque profundo daquela ilha.
Ao passar por entre os moradores, ela foi atiçada pelo forte cheiro de sangue vindo de outra pessoa — uma alta mulher loura, de olhos claros, que olhou para Vaia por um breve instante, o suficiente para mandar um arrepio por sua espinha.
Seu corpo travou. Entre seus instintos monstruosos, amplificados pela noite, e a presença ameaçadora da mulher que acabou de ver, ela ficou confusa sobre como deveria agir. Com a fome e o medo atormentando sua mente, Vaia acabou por se controlar, suspirou e abaixou a mão.
Ao voltar para seus sentidos, a mulher desaparecera na multidão.
Contudo, os perigos da noite não se resumiam aos monstros. Vaia já era familiarizada com qualquer pessoa que tivesse grande sensibilidade mística poderia sentir sua presença a longas distâncias.
O ar começou a esfriar, ficando mais congelante que a neve no chão.
Ao tomar noção do perigo, Vaia saiu da cidade logo antes dos portões se fecharem. O som das conversas dos cidadãos foi abafado, restando apenas o vento sibilando entre as árvores sem folhas.
A jovem andava lentamente pela floresta, tomando cuidado a cada passo. Algo dizia a ela que não seriam apenas as criaturas que tentariam matá-la. Sentia-se observada.
Enquanto caminhava entre as colinas de neve, conseguiu ver leves rastros de sangue saindo da trilha. Após uma inspeção mais próxima, Vaia chegou à conclusão de que pertenciam à mulher que vira anteriormente.
Ela precisava seguir a trilha. Talvez fosse sua única chance de encontrar o que procurava. Na carta que recebera, estavam o infame símbolo d'O Círculo e a promessa de um artefato que traria suas memórias de volta.
No desespero, todos tendem a acreditar na única coisa que promete resultados — mesmo que seja naquela ilha isolada e fria, cercada pelo oceano mais perigoso conhecido.
O sangue secava à medida que as muralhas de madeira do vilarejo cresciam à distância. Oculto pelo bosque denso e intocado pelo misticismo e pelas tecnologias, aquele lugar fora, um dia, um refúgio. Agora, quebrado, com corpos espalhados até onde a vista alcançava.
Vaia abaixou o capuz. Com a visão adaptada à escuridão, ela vasculhou o vilarejo em busca do artefato.
Mas, após longos minutos, ela não encontra nada — nenhuma pista, nenhuma indicação. Cavou a neve, revirou corpos, mas tudo em vão. A jovem sentia-se esvaziada, como se as últimas gotas de esperança lhe escorressem pelas mãos.
— Eu nem sei com o que ele se parece… Como esperavam que eu achasse isso?! — murmurara, olhando para baixo, onde encontrara o corpo soterrado de uma mulher pela nevasca. — Ela já devia ter achado e levado…
Se ao menos não tivesse hesitado… talvez, se apenas tivesse terminado com a mulher loura quando tivera a chance, pudesse agora entender por que era uma aberração, por que precisava viver escondida?
Apesar das poucas coisas boas que vivenciou, Vaia era agora afogada pelo próprio desânimo. O artefato não estava mais ali. E, com ele, se ia também a última razão que tinha para continuar.
“Talvez eu devesse só… morrer. Afinal, sou um...”
— Monstro! — grita uma voz atrás dela. Grossa, mas jovem. Vaia não a reconhecia. — Como esperado das criaturas vis da noite… atacar um vilarejo indefeso é imperdoável.
Ela se virara de imediato. Uma figura alta, envolta em um manto e roupas negras, destacava-se na escuridão. O ar tornara-se ainda mais gélido, e a única coisa visível eram os olhos púrpura daquele estranho.
Vaia congelara. Ao contrário dela, o semblante da figura não trazia hesitação — apenas um senso inabalável de prontidão e bravura.
— Você nem sabe o que aconteceu aqui… — respondeu, num tom melancólico.
O homem avança um passo. A enorme espada em suas costas emitiu o som cortante de gelo se rachando.
— Matar criaturas como você era tudo o que me resta, aberração…
A neve ensanguentada se ergueu quando ele disparou. Apesar de portar uma lâmina envolta em gelo, ele atacou em postura de combate desarmado, desferindo um chute direto no abdômen de Vaia.
Vaia absorveu bem o impacto, sendo arrastada apenas alguns centímetros para trás, mas acaba perdendo o equilíbrio e tropeça sobre um dos corpos espalhados pelo chão.
— Que tipo de monstro será que você é? Vampira? Demônio? — o espadachim inclinou o rosto, curioso. — Sinto algo a mais…
O espadachim conseguia apenas sentir a presença de Vaia por meio de um sentido místico aguçado, era como se uma fumaça anormal exalasse dela, estava perfumada, contudo.
A aura começa a aumentar de tamanho, tomar uma coloração avermelhada… Até que ela avança para cima do homem, os olhos carmesim de Vaia brilhavam intensamente. Mesmo com sua velocidade sobre-humana, o espadachim agarra seu punho conseguindo ver as garras afiadas da moça quase alcançando seus olhos.
Vaia era mais forte do que parecia, o som de borracha torce ao estender seu braço pelas luvas do espadachim. Quanto mais a força dela supera a do homem, ele começa a alcançar pela sua espada, até que uma luz ilumina ambos, partindo de cima de uma das casas da aldeia.
Vaia e o espadachim olham para a fonte da iluminação repentina, sendo ofuscados pela força do brilho. Os flocos de neve levados pelo vento, os corpos no chão, montam uma cena macabra, quebrada quase imediatamente pelo tom de voz sarcástico de Cálix:
— Vai dar namoro, viu? — Os dois no chão não respondem, apenas ficando perplexos com a presença do jovem — Haha! Oi gente, estão buscando o artefato mágico também?
Cálix coloca a luz sobre sua cabeça para que ele seja identificado.
— Ah! É o esquisitão que ficou parado na proa do navio por horas! — ofegou Vaia.
— Saia daqui, rápido! Tem um monstro nesse vilarejo! — disse o espadachim firmando ainda mais seu aperto no pulso de Vaia.
— Hum? Ela não se parece com um monstro pra mim. — respondeu Cálix virando a luz de volta para a moça.
Ao olhar para ela, o espadachim via apenas uma mulher comum, orelhas de elfo, pele morena, e longos cabelos castanhos. A aura de monstro ainda estava, entretanto.
Deixá-la ir, ou não? A ameaça da noite ainda era constante e monstros legítimos poderiam acabar surgindo, mesmo sendo um novato no ofício, o espadachim já se deparou com monstros que sabem enganar, ser elusivos e usar da confiança e inocência humana a seu favor.
Os olhos roxos penetravam ainda mais fundo no semblante da moça, deixando claro que sua guarda não foi abaixada.
O homem solta o pulso de Vaia, com ela não revidando ou realizando um ataque surpresa, apenas relaxa e começa a massagear-se com a outra mão. O espadachim não sabia dizer se Vaia estava coberta de mentiras, ou o hábito da caça apenas subiu sua cabeça.
— Falem sério, não há razão para brigar, a verdadeira ameaça são os monstros… os que não se parecem com mulheres bonitas, pelo menos.
— Buááááááá!!!
Os três presentes se viraram em alerta. O que acabaram de ouvir era um choro? Alguém sobreviveu ao massacre do vilarejo. Mesmo focados em encontrar o que buscavam, não conseguiam deixar sua humanidade de lado.
— Um bebê…
O sorriso de Cálix desapareceu. Vaia parou novamente. O espadachim já caminhava, como se o choro tivesse despertado uma lembrança sensível. Ele não conseguiu localizar a bebê pelo instinto místico, apenas pelo choro que o guiava na escuridão, com a fraca luz vinda de Cálix, que foi perdendo a força conforme os três se aproximavam da casa de madeira.
Ela estava destruída, meses de trabalho de diversas famílias refletiam uma grande cratera onde antes ficava a janela. O calor dentro da casa se esvaía gradativamente. Contudo, Vaia sabia que aquele odor era familiar.
— A mulher — Vaia começou a fungar ávidamente, seguindo a origem do cheiro de sangue até o corpo de um homem grande e idoso. Tudo que conseguiu ver foi um papel grudado em suas costas, a cabeça esmagada e um bonequinho de palha manchado de vermelho.
— Do que está falando? — perguntou o espadachim.
— Eu vi uma mulher, loura, olhos azuis. Tenho certeza de que ela é a verdadeira culpada por trás do ataque.
— Loucura, não há razão para atacar este vilarejo no meio do nada.
Cálix deixou a conversa dos dois de lado e se virou para a casa devastada. O som do choro era incessante e ficou cada vez mais insuportável conforme o garoto se aproximava de uma das camas.
A madeira rangia, com o estalar do gelo e dos cacos de vidro, pareciam alertar a criança da presença de alguém chegando.
Vaia e o espadachim retomaram a concentração na criança, que se tornou a prioridade máxima. Ela estava debaixo da cama; os pais não se encontravam em lugar algum. Teria sido abandonada?
Não havia nenhum berço ou outra cama além da de casal no canto da casa. Os três ficaram horrorizados ao chegarem a uma conclusão terrível: aquela criança era indesejada.
Vaia tomou a frente, onde o espadachim protestou, mas foi impedido por Cálix, que colocou o braço em seu peito.
— Me deixe passar.
Shhh…
— Eu também não baixei minha guarda, confie em mim, ela não é um monstro. — cochicha Cálix enquanto puxa uma identificação de seu bolso:
Toda rasgada, desbotada, como se tivesse sido exposta a climas extremos por dias, o espadachim consegue discernir apenas algumas informações, Cálix Valente, dezoito anos, e que o documento pertencia a uma tal de Organização Global dos Clérigos e Sacerdotes, na qual ele nunca tinha ouvido falar.
Contudo, decide afirmar com a cabeça e se aproxima de Vaia com cautela. A mulher parecia maravilhada, e realmente, agora que perceberam, os choros pararam. Assim que Vaia pega a bebê em seus braços, ela olha para trás, vendo Cálix e o espadachim, também curiosos, com a estranha aparência dela.
— Uau… Bebês costumam ter cabelos longos assim? Ela parece ser uma recém-nascida — Apesar do entusiasmo de Cálix, ele é respondido com um olhar crítico de ambos os jovens.
A bebê parece ter se acalmado bastante, mesmo cercada pela desgraça, sua essência inocente ainda era perceptível para todos. Um senso de proteção e compaixão emana dos três, especialmente de Vaia, que sente ter achado uma razão — por menor que seja — para viver.
A pequena criança cai no sono nos braços de Vaia, quando o espadachim vira rapidamente para fora da casa.
— Os rugidos dos monstros de verdade… Temos companhia — Sem as bênçãos dos Deuses pelas luzes dos sóis, o vilarejo é engolfado mais uma vez na escuridão, agora pela presença sinistra de um criatura do lado de fora do casebre.
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