Volume 1 – Arco 1
Prólogo: A péssima mãe
“Essa criança está degradando os outros mundos, e o nosso”.
“Apenas conclua sua missão, você vai se sentir bem”.
“A serva da morte curva-se perante seu mestre mais uma vez”
— “Para avançar ao quarto estágio do Xamanismo, deve-se parir um filho” — Me lembra dela. Levaram duas semanas para chegar aqui, mas o que sinto é… saudades? Meus pensamentos são interrompidos com o destino aumentando no horizonte.
— Ah, as muralhas de madeira.
As lembranças dessas palavras continuam mexendo comigo, à medida que me contorço por essa neve, ando para a última esperança que me foi prometida; salvar minha filha.
Eu faria tudo por ela, mas desde que a tive, tenho questionamentos sobre se o que eu faço é realmente para o bem da minha alma, ou do meu ego.
Aqui é uma ilha distante do continente, matar vilarejos é algo que faço há anos. No passado, nunca senti remorso ou compaixão pela vida insignificante dessas pessoas. Contudo, não sei dizer ao certo… Mas ter uma filha muda você, te faz ver o mundo por outro lado.
— “Para avançar ao quinto estágio do Xamanismo, deve-se atingir a idade de cinquenta anos”... — repito as indicações de evolução como ditados a serem seguidos. Dogmas que não foram impostos, mas buscados.
Quando se está quase na casa dos quarenta anos, você também deve começar a pensar mais no seu futuro. Quando era mais jovem, via o ato de matar como uma diversão, talvez eu pensasse que o ato fosse preencher o vazio da minha alma.
— “Para avançar ao sexto estágio do Xamanismo”...
Ao colocar meus pés na frente da entrada do vilarejo, uma forte luz do sol se pondo sobre minhas costas, tingindo a neve laranja com a sombra da ameaça; uma das mais fortes e renomadas Xamãs do mundo…
Selos nunca foram minha praia, mas sempre me identifiquei com o ramo de rituais. Não havia tempo para plantar papéis por aí.
Cavo a neve com minhas mãos, que começam a tremer pelo frio anormal da região oceânica. O vento tornava aquele momento tão sereno, que ele nem permitia a visão futura daquele vilarejo. Um campo de corpos.
Mesmo um pequeno círculo de ritual pode fazer estragos na mão da pessoa certa.
Eu começo a preparar as palavras de rito. Me desconectando do mundo por um momento, até que um homem, com roupas primitivas, se aproxima de mim. Eu não consigo entender o que ele diz, parece que a linguagem universal do planeta não chegou aqui ainda.
Apontando a arma em minha direção, eu levanto e olho por cima de seu ombro, parece que diversas pessoas semelhantes a ele me observam de dentro do vilarejo. Homens, mulheres, crianças, e um intrigante idoso sentado à frente do enorme poste que fica no centro do lugar.
Sem que o homem nem perceba, eu o degolo. Ele tenta cobrir o ferimento, mas têm seus braços agarrados e torcidos até que caia de joelhos. Colocando um fim em sua vida.
Uma vez que o sangue entra em contato com o círculo de ritual, ele brilha em verde, junto de uma enorme doma que se abre ao redor de todo o vilarejo. Pelo tamanho, deviam ser algumas dezenas de habitantes. Não deve ser tão ruim, já matei mais do que isso mesmo…
— Ritual de quarta fase: Morte Silenciosa.
Mesmo com todo o poder que conquistei. Os gritos… são a pior parte. Toda pessoa que eu mato, tem suas últimas palavras ecoadas na minha mente. Podem ser curtos segundos ou, podem ser tantas pessoas, que o sofrimento fica zumbindo por dias.
Eu renego os prazeres que sentia dessa punição de quando eu era jovem. Todos os dias.
Enquanto eu vejo os corpos caindo, um por um, eu retomo meu olhar às palmas das minhas mãos. Os barulhos faziam tudo tremer, como se um terremoto, junto de milhares de pessoas me sacudissem.
Aquilo era um último ritual para acabar com isso de uma vez. Me foi dito que eu deveria matar uma certa pessoa aqui, para enfim acabar com a doença de minha filha. E impedir que meu quarto estágio retroceda.
Os aldeões lentamente morrem, gritando por ajuda, o que agrava a condição do ritual. Suas línguas pretas agora viravam pó em meio ao vento. Alguns segundos se passaram, mas os gritos os tornaram em excruciantes minutos de tormento. O fino grito de mulheres e crianças junto aos dos adultos formavam um coral maldito.
Mais uma das visitas do inferno à minha mente.
Eu apenas pude observar, enquanto o domo se fecha, e o ritual se desfaz, com diversos corpos no chão, apenas um se mantém de pé.
Aquele maldito idoso.
Antes coberto por um manto de pele, ele se levanta para uma altura considerável, sua longa barba e cabelos brancos dançavam junto de minhas mechas louras ao vento.
— Como você ainda vive? — digo, franzindo minha testa.
Fazendo um funil com minhas mãos, eu junto as minhas energias para liberar outro ataque.
— Ritual de primeira fase: Névoa do Crepúsculo.
Ao soprar no interior de minha mão em concha, uma densa fumaça se espalha pelo centro do vilarejo em questão de segundos.
Usando como oportunidade, eu realizo uma investida ousada dentro do desconhecido, embuto meus punhos com mais energia xamânica e desfiro um golpe na última posição conhecida do líder da aldeia.
O som de metal ecoa, dissipando a névoa cinza e a energia roxa de meus braços, revelando a postura inabalada do oponente.
Eu não consegui acertar o corpo, mas acertei sua arma. Ela era muito resistente, uma liga de aço que eu jamais vi. Ou alguma interferência mística diminuiu a potência do meu ataque…
Estava no ar, não me antecipei e agora estou livre para receber um ataque em cheio do homem. E assim ele o faz. Agarrando meu pescoço com força, o líder me joga ao chão, fraturando algumas de minhas costelas. A força do ataque foi tanta, que meu corpo quica após o impacto.
A agressão continua com um golpe desferido em minha barriga, lançando-me para longe.
Naquele momento, eu presenciei uma força legítima pela primeira vez. Eu não tenho capacidades de leitura de aura avançadas, o que me impede de entender a fonte do poder daquele homem.
Eu não sinto ódio por ele. Afinal, quem chegou aqui e matou seus familiares, fui eu. Era apenas mais um dia de serviço pelo reino, um dia que se repetiria por mais algumas décadas, até eu… me aposentar? Pode ser…
Retomo aos meus sentidos cuspindo sangue nas minhas roupas negras, acompanhada da visão turva, e de meus ouvidos zunindo. A devastação do golpe custou as paredes de uma casa próxima.
— Droga… um caco de vidro fincado na minha coxa. — O incômodo da dor era incomum, eu já havia realizado rituais de fortificação corporal para manter meu corpo resistente por mais tempo. Contudo, eu ainda podia morrer por perda de sangue. Ao remover o caco de pele que uso, eu preparo mais um ritual. — Ritual de segunda fase: Arma Lancinante.
Enquanto escorre pelas minhas pernas, o ritual manipula o sangue para formar uma longa glaive na palma de minha mão.
— Não torne isso mais difícil do que deve ser! — O velho ainda estava parado. Ele gira sua maça, removendo meu sangue que banhava a bola de espinhos.
De minha bolsa, eu puxo um selo de cor verde e jogo um boneco de palha para o ar, deixando-o para trás na próxima investida.
Agora seríamos nós dois com armas.
Eu corro até o homem, que se recusa a responder ao meu ataque até o último segundo. Ele se defende com facilmente, seguindo o ritmo da luta, me provocando com sorrisos constantemente. Seria eu a primeira pessoa à sua altura?
Nossos movimentos: leves. A maestria com armas: exímia; o poder limpava o campo da névoa, abrindo o vilarejo para o céu cada vez mais. O velho sorria, mas eu estava apenas ofegante e preocupada. Como ele pode manter o otimismo nesta situação?!
Em um momento onde ambos estávamos completamente concentrados na luta, o meu cérebro havia sido isolado de tudo. Naquele campo nevado, havia apenas eu e o líder do vilarejo.
Repentinamente, sua cabeça se vira, perdendo o foco na minha lâmina, o que garante um ataque certeiro em seu peito. Ele observa a casa na qual eu colidi anteriormente, perplexo
— Morra de uma vez! — digo com meus ferimentos se abrindo. Meus gritos são rapidamente silenciados por um gancho de direita do líder, deslocando minha mandíbula, e me levando ao chão.
Eu vim aqui só para manter meu grande poder, mesmo com todo o preparo, com o golpe surpresa que acertei, minha velocidade e força ainda foram humilhadas na presença desta aberração da natureza.
Eu vou manter meu estágio, custe o que custar!
Eu não conseguia mais ver o semblante do líder, a sombra de sua franja escondia todos os mistérios que eu levaria ao meu túmulo.
O líder do vilarejo ergue sua arma, preparando para me decapitar com um único golpe. À medida que a maça se aproxima, minha visão escurece. No canto, o pequeno boneco de palha…
Uma alta explosão vem do corpo do velho.
Tudo fica vermelho. Apenas o som do vento e do pôr do sol, eu escuto também os choros de uma criança, que me lembram muito a minha filha.
Minha filha… foi por conta dela que vim aqui? Que incômodo, que miséria. Tanto poder, mantém minha pequena de refém… Se eu só pudesse…
Salvá-la…
…
Eu sinto minhas energias se esvaindo, eu não estava morrendo, mas a semelhança da sensação era parecida. Meus músculos fraquejam, e a neve fica muito mais fria.
Os choros da bebê retornam, dessa vez mais vívidos.
Eu finalmente consigo me mexer novamente. Apagada duas vezes em questão de minutos é uma nova humilhação.
Olho ao meu redor e percebo que a noite já chegou para a ilha. Os três sóis já não tocam na neve vermelha mais. O corpo do líder, estirado e destroçado, começava a soltar um mau-cheiro.
Rastejando-me até a cabana destruída, eu vejo tudo melhor agora, debaixo de uma cama, sozinha, uma criança, com belos cabelos que relembravam das luzes do céu, belos tons de rosa a roxo, acompanhados de pontos brancos.
A causa de tudo estava diante de mim, era isso que eu precisava para salvar minha filha!
— Ritual de quarta fase… — Prack!
As faíscas de meus dedos apontados para aquela frágil criatura me diziam apenas uma coisa: eu não estava mais no quarto estágio, e, por consequência…
Alessa morreu.
Nada mais fazia sentido, meu poder se foi, meu mundo se estilhaçou em milhares de pedacinhos de um vidro, que penetram e machucam minha pele toda vez que tento os segurar.
Meu orgulho foi minha ruína, e minha ganância em tentar mantê-lo foi o causador disso tudo. Não havia ninguém a culpar além de mim mesma.
Eu posso até ter outra filha, mas estaria honrando o amadurecimento que passei? Estaria sendo uma mãe? Prometi que mudaria.
Os olhos da bela bebê fitavam-me, ela não compreendia nada, mas era o suficiente para me fazer sentir pequena e insignificante. Aqueles cabelos místicos eram o reflexo indesejado, mas eterno, da minha falha.
Eu poderia usar um ritual de terceira fase ainda, mas de que adianta? Minha vida perdeu significado.
Apenas decido me levantar e sair daquela casa, do vilarejo, voltar para o reino… Raios, eu quero sair do planeta…
Antes que a escuridão da noite consiga ver meus últimos suspiros, eu ainda me ergo contra ela, viro-me de costas para os choros da bebê, e retorno à cidade de onde vim, o porto de Fajilla, para enfim, deixar o destino levar o resto de meus tempos.
A bebê não morrerá por minhas mãos, agora que minha filha está com o lorde dos mortos, eu deixo a maldição de ter uma criança para qualquer um que venha socorrer essa menina.
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