Magna Ordem Brasileira

Autor(a): Tomas Rohga


Volume 1

Capítulo 14: Exploração - parte 2

Quando o corpo bateu no chão sólido, Thales sentiu um misto de sensações desagradáveis: um peso muito intenso sobre os ombros e uma dor excruciante no estômago.

Incapaz de enxergar um palmo naquela escuridão, resolveu utilizar sua nova habilidade adquirida com o Título, O Senhor da Oitava Fileira, como forma de precaução, promovendo a Força e a Resistência ao mesmo tempo:

 

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Força: 770 (+975)       Destreza: 635

 

Resistência: 690 (+975)       Magia: 657

 

Cansaço: 34       Promo (Rainha / Torre)

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Então um facho de luz cortou a escuridão, dando de cara com o rosto assombrado de Ellin, caída logo abaixo de si. As sombras tremeluziram francamente sob as chamas que ela conjurou pelo cristal do cajado.

— T-Thales?

O rapaz tossiu sangue, espirrando um pouco sobre o vestido de Ellin. Daquele modo, finalmente percebeu o enorme bloco de rocha esmagando suas costas, pressionando seu corpo entre a garota e o chão. Cerrando os dentes, Thales lutava bravamente para impedir que a pedra não o espremesse como um inseto junto à amiga, agradecendo a si mesmo por ter feito tantos exercícios físicos através das Missões Diárias.

— Ellin? — O tom de sofrimento era palpável. — Tem algo prensando a minha barriga…?

A garota espiou para baixo e levou as mãos à boca, ainda mais horrorizada.

— Um pedaço de estalactite. Acho… acho que entrou em você.

— C-consegue sair de debaixo de mim? A pedra… tá pesada… pra segurar…

Ela obedeceu de imediato, arrastando-se para se afastar de Thales, invocando um clarão tão intenso quando se pôs de pé que revelou toda o perímetro ao redor: um largo corredor desmoronado a partir de onde haviam caído do andar superior.

— Eu vou te tirar…

Vuup!

Antes que Ellin completasse a frase, uma dezena de lâminas de luz brotaram a partir da parede lateral, enfiando-se na rocha que esmagava as costas de Thales até ser estilhaçada em pedacinhos, criando uma breve nuvem de poeira.

Thales começou a tossir em meio à dor e ao alívio, virando-se de barriga para cima com o pedaço de estalactite partido pela promoção da Resistência.

— Ele tá sangrando! — berrou Ellin, atirando-se para arrancar o objeto e pressionar o ferimento do amigo com as mãos.

— Então continue fazendo pressão! — ouviu-se a ordem de Ayane. Com dificuldade, Thales tentou olhá-la, esticando o pescoço ainda em tempo de avistá-la afastando a mão esquerda da mesma parede pela qual surgira as espadas de luz.

Mas seus pensamentos foram varridos quando viu Caleb, o garoto franzino e de óculos, usar seu escudo para defender Maya de um ataque vindo do sexteto de zumbis — e zumbis era a melhor definição possível, pois os olhos daqueles Recrutas estavam cinzentos e a pele recoberta de veios azulados. O grupo amaldiçoado de estudantes grunhia, tentando atacar sem qualquer coordenação ou estratégia; um bando de criaturas sem controle.

— A gente precisa de ajuda aqui, d’Artamis! — solicitou Maya, próxima demais de seus alvos para conseguir mirar uma flecha.

Ayane estudou a situação rapidamente, avançando sem desembainhar a espada. Ela deslizou pelo chão e passou uma rasteira no primeiro adversário, levantando-se enquanto golpeava o segundo com as duas pernas. Desviou-se do ataque do terceiro ao mesmo tempo em que emendou uma bomba certeira no estômago — saliva e sangue escuro subiram pelos ares.

Sem diminuir o ritmo dos ataques, Ayane girou e acometeu contra o maxilar do quarto inimigo, abaixando-se novamente para contornar uma mordida e finalizar com um soco no rosto do quinto e um chute certeiro no peito do sexto, que rolaram pelo piso frio.

— Depressa, Olaster. Prenda-os!

Ellin não precisou ouvir duas vezes para compreender. Além de atordoá-los, os golpes de Ayane haviam cumprido um propósito secundário: o sexteto de zumbis ficara disposto numa espécie de semicírculo, bem próximos um do outro.

Aflita para não perder tempo com a terminar a invocação, Ellin retirou a mão por um instante da ferida de Thales e apontou o cajado para os Recrutas amaldiçoados, vociferando com autoridade:

Prisão Glacial!

Um rastro azulado de luz cortou o ar e atingiu em cheio no alvo, criando um bloco de gelo que começou a crescer a partir do chão pedregoso.

Bastaram segundos para que o sexteto fosse engolido por completo, momento em que o cristal de gelo parou de ganhar altura, cintilando como uma grande redoma de vidro.

Resolvido aquela situação, Ayane, Maya e Caleb se aproximaram de Ellin, que voltara a pressionar sobre o ferimento ensanguentado de Thales.

— Não sei o que eu faço — Ellin confessou de olhos aguados. — Cura é Magia Negativa. É avançada demais pra mim.

Thales mostrou um sorriso nervoso, sentindo a Vida, literalmente, esvair-se do corpo. Com 2050 pontos no Elo 12, notou que perdia um ponto da estatística por segundo, o que lhe dava, calculando por baixo, uns trinta minutos até que tudo chegasse a zero.

Mitty, pensou ele, sentindo a ponta dos dedos começarem a esfriar. O que acontece se eu zerar a minha Vida?

 

Será declarado «Game Over» para o Jogador.

 

É claro que será, suspirou ele, abatido. Mas o que eu preciso fazer pra sair dessa situação?

 

O Jogador precisa elaborar a própria estratégia de jogo. Do contrário, será trapaça.

 

— Porra, Mitty! — Ele voltou a tossir sangue. — Eu tô morrendo aqui, cara!

— Para de se agitar, idiota! — As mãos de Ellin estremeciam sobre a ferida, empapadas com o sangue de Thales. — Quer piorar o sangramento?

— A-aquela instrutora…? Não podem trazê-la aqui? — A sugestão de Thales surgiu em meio a um gesto anêmico na direção dos estudantes congelados. — Antes que eu bata as botas junto daqueles seis.

— Você é o único que corre perigo aqui dentro — explicou Maya, encarando os Recrutas zumbis. — Aqueles dali estão sob efeito de Maldição. Vão continuar daquele jeito até que algum Bispo os cure.

— Não há como trazer ninguém aqui — disparou Ayane, olhando de um lado para outro do corredor. — Estamos presos.

— O-o que quer dizer? — indagou Caleb, ajeitando os óculos.

— Embora aquele lado tenha desmoronado, se prestarem atenção, conseguirão enxergar um pedaço de portão atrás das pedras, assim como na nossa frente. Sabem o que significa um corredor com portões de ambos os lados numa dungeon?

— A antessala de um guardião… — sussurrou Ellin.

Ayane concordou com a cabeça. — O meio mais rápido de retornar é derrotarmos o guardião.

— Não podemos! — alarmou-se Caleb. — A instrutora nos proibiu. Precisamos procurar pelos cristais que estávamos recolhendo e…

— Esqueça aquelas pedrinhas. O guardião garantirá o maior cristal possível.

— Mas mesmo que uníssemos forças, não seríamos páreos para ele — argumentou Maya.

— Só saberemos se lutarmos. Além do mais, imagino que Olaster também saiba o tipo de espólio que mortos-vivos podem derrubar por aí, não é?

Os olhares ao redor se detiveram sobre Ellin, que murmurou a contragosto:

— Itens de cura…

— Mas a chance de cair é baixíssima — protestou Caleb.

Ayane foi enfática, colocando um ponto final à questão:

— As chances aumentam quando falamos de um guardião, mas a verdade é que estamos sem tempo. O garoto-Peão pode não resistir até a chegada da instrutora. Se fosse um talho, poderíamos cauterizar o ferimento, mas ele está com uma perfuração preocupante. Precisamos agir agora.

O grupo encarou Thales com apreensão, que sustentou o olhar de volta, pesaroso. Àquela altura, uma dor dos diabos pulsava bem próxima do fígado, ainda assim, não queria colocá-los em mais perigo por sua causa. Estava prestes a argumentar quando Maya tomou a palavra; a voz um pouco trêmula:

— Droga! É melhor nós acabarmos com isso.

Thales engoliu em seco.

— Acabar…? Com o quê?

— Com o seu sofrimento, é claro… — tornou ela, em tom sombrio. Em seguida, estremeceu as bochechas até começar a gargalhar.

Caleb suspirou, um tanto constrangido, embora parecesse acostumado àquele tipo de situação.

— Não se preocupe com o que ela falou — disse ele. — Maya sempre passou dos limites em suas piadas. Crescemos juntos na mesma vila.

— E você sempre teve o senso de humor de um idoso, Caleb. Só queria deixar a situação mais leve. Thales já está pilhado o bastante. Precisamos agir de uma vez; pensar demais nos fará desistir.

Dolorido demais para rir, Thales observou Ellin congelar o sangue que lhe vertia pelo ferimento, ajudando-o a se locomover até o portão fechado que dava acesso à área do guardião. Ainda assim, notou que sua Vida, já na casa dos 1600 pontos, continuava a cair…

Daquele modo, Thales, Ellin, Ayane, Caleb e Maya tomaram um momento de contemplação, estáticos em frente às enormes entradas de rocha esculpida.

Quando finalmente avançaram, os portões rugiram ao se abrirem com lentidão, desprendendo uma boa quantidade de pedregulhos e nuvens malcheirosas de vapor, como um maciço que não era aberto há centenas de anos.

Dentro da sala enorme, cujos archotes foram tomados pelas chamas ao menor sinal de aproximação, Thales e os demais foram engolidos por um breve clarão que se apagou tão logo surgiu. Quando reabriu os olhos, Thales teve um estalo de compreensão ao visualizar o local em que se encontravam.

Estavam todos de pé em um amplo saguão cujo piso era formado por uma sucessão de quadriculados; as cores do chão se intercalando entre o preto e o branco.

Instintivamente, Thales estimou a quantidade de azulejos, reconhecendo aquele conjunto de oito por oito — entre fileiras e colunas — com que tantas vezes se deparara em sua vida anterior: Um tabuleiro de Xadrez…

Em tempo, o posicionamento de cada um deles também se revelou bastante familiar. Por algum motivo, Thales havia se materializado na segunda fileira das peças brancas, à frente dos demais colegas, protegendo a casa do Peão do Rei; os demais vinham logo atrás dele: Caleb na casa da Torre, Maya na do Cavalo (ou Corcel, como diziam naquele mundo), Ayane na casa da Rainha — bastante próxima a ele — e, por fim, Ellin, apoiada em seu cajado na casa branca do Bispo.

 

 

De repente, a atenção de Thales se desviou para outro detalhe bizarro da câmara, estreitando as pálpebras para compreender melhor o que encarava. Não havia peça alguma na extremidade oposta do tabuleiro, percebendo tão somente uma estranha mão cadavérica. Os ossos, ou o que quer que fossem, eram formados por falanges do tamanho de lápides, brotando a partir do chão na casa do Rei das peças pretas.

Desconfiado com a disposição daquele cenário, Thales imaginava o significado da coisa toda parecer com um jogo de Rei Solitário.

— Nós entramos de verdade? — perguntou Caleb, olhando a toda volta. — Está tudo tão quieto…

Thales achou o mesmo, por isso abriu a janela do sistema, confirmando que a Missão Comum que solicitava o extermínio do Guardião Morto-Vivo continuava ativa. Arqueou uma sobrancelha.

— Deve ser o nosso dia de sorte — disse Maya, abrindo um largo sorriso. — Pelo jeito, o guardião está petrificado. Deve ser aquela mão horrorosa do outro lado. Vamos acabar com isso, pessoal.

Na mesma hora, porém, um mal pressentimento atravessou o peito de Thales como a flecha que Maya já encaixava na corda do arco. Ela correu cinco casas na mesma hora em que o rapaz esticou o braço e berrou:

Maya, espere aí!

Porém, no momento em que a garota dispararia a flecha, uma cortina de luz circundou o piso em que ela havia parado, criando uma barreira luminosa que fez o sorriso de Maya oscilar. Ela afrouxou a corda.

— O-o que tá acontecendo?

— Maya! — berrou Caleb.

Nervosa, Ellin começou a estremecer no local, como se pressentisse um evento terrível a caminho; Ayane ainda mais séria que o normal.

O silêncio de expectativa foi acompanhado pelo quadrilátero em que Maya pisava, que começou a avermelhar de um instante para o outro, até que ele emergiu…

AAAAAAAAH! — O grito de Maya repercutiu em meio à súbita coluna de fogo que brotou do chão, envolvendo seu corpo com chamas que alcançaram o teto.

MAYA!

NÃO SAIA DO LUGAR, CALEB! — rugiu Thales, ignorando a dor do próprio ferimento e o sangue que lhe espirrou da boca. — Ninguém se mexe! É uma armadilha!

— M-mas…

O urro ensurdecedor de Maya eclipsou o lamento de Caleb, ecoando como algo corrosivo dentro do coração de todos eles.

Incapazes de reverterem a situação, Thales, Ellin, Caleb e Ayane só puderam assistir à cena grotesca ao mesmo tempo em que Maya golpeava desesperadamente contra a cortina implacável de luz, gemendo, implorando, debatendo-se enquanto consumida da pele até os ossos…

Quando o berro finalmente cessou, o fogo também se extinguiu, restando apenas o silêncio terrificante e o cheiro mórbido de carne tostada.

Caleb começou a vomitar em meios às lágrimas. Ellin caiu de joelhos, arfante e com o corpo inteiro aos tremores. Ayane desviou o olhar, mas Thales, mesmo completamente atônito, conseguiu distinguir aquela grande mão ossuda mexer os dedos além da massa chamuscada que um dia fora Maya Arcângelo.



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