Malkiur Brasileira

Autor(a): Kamonohashi


Volume 1

Capítulo 4: Receio

A alguns quilômetros da floresta, o grupo comandado por Yuki tinha se estabelecido em uma pequena cidade para passar a noite. Entre todos os cavaleiros, um homem que mal cabia na armadura,  caminhou com dois enormes pratos de comida. Procurou por seu amigo no meio de toda a confusão e o encontrou não muito longe de onde estava.


— Tome. Tem que comer alguma coisa, Dom.

— Jeff entregou um prato de comida para seu companheiro.


Alonso segurou o prato, mas não tirou os olhos da fogueira. Seu companheiro sentou-se ao seu lado e avançou sobre a comida sem hesitar.


— Preocupado com ele?


— Mas é claro! Eu como o cavaleiro que sou, poderia ir lá e derrotar aqueles monstros. — Comentou com arrogância.


— Se a capitã disse, temos que ter fé. Jeff terminou a comida de seu prato rapidamente e pegou a de Alonso. 


— Roy vai ficar forte!


— Mas em minha mente vem a possibilidade de... e se...


Seu amigo parou de comer. Jeff, ao falar para ter fé no que Yuki tinha dito, era para que não pensasse na possibilidade de Roy morrer. Em nenhuma hipótese queria que o garoto morresse.


— Estão aí. Fiquei sabendo que desobedeceram a cabeça oca da Yuki.


Uma voz grossa e intimidadora se dirigiu aos dois. 


Eles já sabiam quem tinha falado aquilo. Voltaram sua atenção devagar. Seus olhares estavam tristes. A preocupação era nítida no semblante dois cavaleiros.


— Vice-capitão, Johan. — Falaram em coro, em um tom de funeral em suas vozes.


— Mas o que é isso? Vocês sempre estão cantando e rindo.


O homem alto e musculoso parou na frente dos dois. Seu cabelo negro, longo e bagunçado estava amarrado em um rabo de cavalo. Seu olhar permanecia morto olhando para os dois. Antes de falar mais alguma coisa, pegou um cigarro do bolso. E acendeu nas chamas da fogueira, mostrando que seu braço esquerdo não estava mais em seu corpo.


— Estamos preocupados com Roy. —Respondeu Jeff. 


— Mas se a capitã disse para confiramos nela. Ela tem confiança de que Roy vai dar conta...


Johan soltou algumas risadas


— Ouça aqui, gordo — Johan deu um trago no cigarro e voltou — a pessoa mais preocupada com o pirralho é a própria Yuki.
Os olhos de Jeff e Alonso quase saltaram para fora. Ela tinha mostrado confiança em sua decisão, como que ela poderia estar insegura com isso?


— Ela quer que ele fique mais forte. Pensou nessa ideia maluca sem saber se vai dar certo. Ela parou nessa cidade por causa dessa insegurança com a decisão que tomou. Aqui tem alguém com quem ela precisa conversar. Não estão vendo os Cavaleiros da capital?


Os dois homens observaram que além dos integrantes de seus esquadrões, outros soldados vestiam um uniforme dourado, correndo para um lado e para o outro.
O vice capitão se sentou à frente dos cavaleiros, no chão. Alonso saltou e apontou o dedo para o homem. Ele berrou com raiva:


— HOHO! E o que o, senhor, acha? Está treinando meu fiel escudeiro também?


— EI! EI! De La Mancha! Não fica gritando, porra! — Johan tirou o cigarro da boca para responder. —  Se ele não encontrar os Três Reis da floresta, tem chance de sobreviver.


A voz de Johan foi firme. Deu mais um trago ao terminar de falar. Os dois cavaleiros engoliram em seco, pelo jeito que o homem tinha dito, essas criaturas eram muito perigosas. 


Jeff, mal se contendo de preocupação, quis saber mais sobre os Três Reis.


— O que são esses Três Reis?


Johan soltou a fumaça da boca e calmamente respondeu.


— Cada animal que se estabeleceu na floresta tem um limite de mana que pode receber. Porém três deles  quebraram esse limite. Sabemos pouco sobre eles, todos que deram de frente com eles morreram ou ficaram gravemente feridos. Os que sobreviveram deram nomes para eles. Seus nomes são Wendigo, Beareebal e o pior deles...Kenoo. Eles comandam a floresta. Todo animal que se encontra com um desses, foge o mais rápido possível ou nem sobrevive.


— O que esse, Kenoo, tem de diferente? — Jeff quis saber mais.


— Pelo que se sabe, ele não age por impulso animal igual aos outros dois. Consegue raciocinar de forma diferente, planejando seus movimentos antes de agir.


Alonso, movido por nervosismo, cerrou fortemente os punhos.


— Que droga... 


— Mas vamos apenas esperar — continuou Johan — Eu também quero acreditar no pirralho.


Vendo que seu cigarro tinha terminado,  apoiou a mão na terra e encarou a lua no céu.


“Sobreviva, moleque!”


**


Yuki caminhou por um corredor  iluminado pelas chamas fracas das tochas nas paredes.
Ela seguiu um cavaleiro que levou até uma porta no final do corredor. Com algumas batidas o soldado abriu a porta devagar.


—  General! Capitã, Yuki Bonnie, dos Feras Brancas está aqui.


— Deixe-a a entrar. — respondeu calmamente.


O cavaleiro prestou continência para o general e se retirou da sala.


A mulher observou o lugar: uma sala de estudos improvisada. No meio do local havia uma mesa sobre a qual  vários papéis foram colocados de forma desorganizada. Mais à frente visualizou uma varanda onde o general se encontrava.


— Bagunceiro como sempre, Zaratrás!


O anfitrião virou-se em direção à voz. 


 Um homem de cabelos ruivos,  pele branca e rosto sardento sorriu ao ver quem estava  à sua espera. Ajeitando o uniforme dourado,  caminhou em sua direção. Seus olhos azuis brilhavam intensamente com a luz da sala.


— Yuki, que bom te ver. O que a traz aqui? Aceita um chá?


— Sabe que eu odeio esse tipo de formalidade. — respondeu com desdém.


— Eu sei disso, mas... — Zaratrás, olha para a mulher de forma sombria e coloca dois copos e uma garrafa sobre a mesa.  — As coisas podem mudar...não custa perguntar. Além do mais, sinto algo diferente em você, está receosa.


Yuki fechou a cara e cruzou os braços.


— Tsc! — Estalou a língua com reluta em falar o que estava sentindo.


— É por causa do garoto que disse nas cartas?


Foi direto ao ponto enquanto enchia os copos. A mulher se aproximou devagar para pegar o copo e beber um gole. Como Yuki não tomou a frente ele continuou:


— Está tendo dificuldades no treinamento?


— Acho que não estou fazendo certo com o pirralho. — Respondeu olhando para o vinho em seu copo.


 — Acho que ontem fiz uma besteira ainda maior.


O general apenas se sentou na mesa em silêncio, esperando a mulher terminar. Ela o acompanhou, sentando-se na mesa também.


— Eu o deixei sozinho na floresta negra para sobreviver até eu voltar.


O homem cuspiu a bebida ao ouvir aquilo.


— Eu fiz errado?


Ao se recompor, limpou a bebida da boca e voltou para seu olhar sereno.


— E por que fez isso? — questionou ainda um pouco incrédulo.


— Eu quero que ele ache seu instinto de sobrevivência. Em uma luta real apenas um sai vencedor. Achei que fazendo ele lutar com animais perigosos iria forçá-lo adesenvolver esses instintos. — Respondeu com insegurança enquanto girava o dedo pela borda do copo.


— Hum... de fato . Uma criança, em um lugar como aquele... é um risco muito grande. Mas você é a mestre dele. Você realmente acha que isso vai fazê-lo crescer?


Yuki  pensou bem antes de responder. Ela não teve uma infância fácil. Foi obrigada, desde muito cedo, a se virar sozinha. Ela queria que seu aluno também soubesse viver por conta própria, afinal ela não estaria ao lado de Roy o tempo todo.


— Eu tenho certeza. 


A resposta certeira de Yuki fez Zaratrás sorrir.


— Então não tenha ressentimento consigo mesma. Um professor sempre tem que pensar em como desenvolver o aluno, para que possa ser melhor sempre.


— Mas se ele me odiar por isso?


Ele soltou uma gargalhada.


— Se ele reconhecer que é para o bem dele, não vai te odiar. Mas caso aconteça, paciência, pelo menos fez o máximo para ensiná-lo.


A mulher ficou em silêncio. O receio de acontecer o pior tomava conta de sua mente.


A capitã fitou o chão, reflexiva. O general,  para tentar animá-la ponderou:


 — Nesse ponto está igual a ele, sempre tendo essas ideias de treinos malucos.


Yuki ouvindo isso riu um pouco.


— AHAHA! Eu nunca vou chegar aos pés dele. 


Eles se referiam ao professor da capitã que foi companheiro de Zaratrás. 


Os dois deram um enorme gole da bebida.


— E onde achou esse garoto?


— Ele é neto de Thomas Grey. A fazenda que sua família tinha para abrigar alguns refugiados foi atacada por um Anjo Caído. Seu avô se sacrificou pra salvar os outros, mesmo que não tenha vencido, ganhou tempo para chegarmos. — Yuki respondeu olhando o fundo do copo vazio.


O general ficou surpreso ao ouvir o nome de Thomas Grey e começou a rir.


— Ah, por isso! Agora eu entendo o porquê desse apego ao menino. Ele é um Grey! Então não se preocupe. Não vai morrer fácil.
Yuki permaneceu em silêncio.  O homem ficou de pé e encheu o copo novamente.


— Ele te mudou também. Não é de se preocupar por pegar pesado com seus cavaleiros. Está igual a uma mãe agora.


A mulher sorriu. Todas as vezes que foi dura com Roy, foi para fazê-lo crescer. Lembrou-se da sensação que teve ao ver seu aluno quase despertar a primeira abertura.


— CAPITÃ! Viu? Saiu fumaça do meu corpo.
Roy disse aquilo animado. Sentiu o poder passando pelo seu pequeno corpo. Porém uma mão segurou sua cabeça.  Era Johan rindo do menino.


— Isso não foi nada seu, pirralho! Foi uma merda! HAHAHAA!


— CALA BOCA!


Yuki observou os dois discutindo.  Ela se sentiu completa, pela primeira vez. O menino, de fato, veio para mudar sua vida.


 Ela sorriu.
— E pensar que estava à beira da morte quando eu o encontrei.


Yuki e seus cavaleiros caminharam pela cidade, eliminando alguns demônios pelo caminho. E de longe ouviam estrondos do que parecia uma luta.


— Johan tá com dificuldades, ele tá mesmo enferrujado. HAHAHAAA!  — A mulher parecia bem animada em comparação aos outros. Sem se preocupar ela esticou seu corpo para se alongar.


Um zumbido passou pelos ouvidos da capitã, fazendo com que sua espinha dorsal gelasse. Assustada, olhou para todos os lados. Fechou os olhos e tentou identificar de onde teria vindo o estranho som. Pelo vento detectou de onde viera o zumbido e rapidamente correu em sua direção, deixando seu esquadrão para trás.


O som a levou a um lugar afastado, próximo a uma fazenda, onde havia pequenas casas e alguns prédios. 


Novamente o zumbido. Uma nova  onda de arrepio percorreu o corpo da capitã. Olhou para sua direita. Uma figura caminhava a alguns metros de distância, se arrastando. Seria um zumbi?  Velozmente foi de encontro à figura. Ao olhar de perto,  ficou em choque. Viu um garoto, de mais ou menos nove anos, com o braço e o pé quebrados e com vários ferimentos pelo corpo. A pele parda estava coberta por manchas de sangue. Ele  se arrastava em direção a algum lugar.


— EI! Ei, garoto, pare de andar! Vai piorar sua situação. Venha comigo! 


Ele ignorou o chamado e continuou caminhando, com muita dificuldade.


— EI! Pirralho, venha aqui, porra!


O menino se virou para ela. Seu olhar estava vazio, como se estivesse morto, e ao mesmo tempo, emanava ódio. A capitã percebeu seus sentimentos. Notou que ele havia falado algo. Não compreendeu o som da palavra, mas pela leitura labial a mulher compreendeu: vovô. O garoto virou-se lentamente para continuar em seu caminho, porém a capitã já estava à sua frente.


— Já disse pra parar.


— Vo...vo...vô.... — Era a única coisa que a voz fraca da criança dizia.


A mulher viu que ele estava em choque por tudo o que havia acontecido. Era muita coisa para uma criança assimilar. Para acabar com o sofrimento dele, iria levar para os médicos do esquadrão para ser tratado, mas um gesto do menino chamou sua atenção. Ele apontou para um prédio mais adiante, totalmente destruído pelo fogo. Logo em seguida, perdeu a consciência. Com cuidado, Yuki o deitou no chão e se dirigiu ao local apontado.


 Movendo-se como o vento, chegou numa velocidade surpreendente. Analisou o local. Tudo indicava que ali ocorrera uma luta entre um demônio e um cavaleiro de chamas.


— Quem lutou com Empusa, segurou o máximo até Johan chegar. Mesmo que não tenha vencido...


 A mulher viu os rastros da luta por outros lugares.


— O pirralho disse vovô. —  Ela procurou em volta. Andando um pouco mais para frente encontrou alguém deitado sobre alguns escombros. Sem pensar duas vezes se aproximou e viu o corpo sem vida de Thomas Grey.


Seu rosto mostrou surpresa ao ver o homem. Ela o reconheceu. Então entendeu.


— Puta merda! — Olhou para o garoto desacordado. — Quer dizer que...


— EI! OI? Yuki!


Zaratrás olhou a mulher adormecida esparramada sobre sua mesa.


— Nossa! Bebeu até apagar. Não aprende mesmo. — Deu um leve suspirou e decidiu deixá-la ali.


O general foi até a varanda e se apoiou sobre a sacada.


“Quem diria! O pequeno Roy encontrou Yuki! Thomas ignorou todas as minhas cartas. Achei que ele não ia deixar o garoto seguir o sonho do pai. Mas que destino hein?”


— Ele está em boas mãos, amigo. Fique tranquilo! — O homem falou, enquanto olhava para as estrelas.


De repente um corvo de cor vermelha aterrissou em seu ombro.


— CRÁ! CRÁ! Estou de olho nele, CRÁ! — disse o pássaro.


O homem não se assustou pelo fato de o pássaro falar e quando abriu os lábios para responder, o corvo bateu as asas e alçou vôo.


— Como é ansioso. Está um pouco cedo pra isso. Que gente teimosa.

O homem abriu um sorriso bobo.

 

 

 

 

 

 



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