Volume 1 – Arco 2
Capítulo 42: O Inimigo Em Seu Lar
Após o primeiro tiro, outros três ecoaram — mas não saíram do revólver de Ella. Vinham, ao que tudo indicava, da pistola do homem misterioso.
Quarenta e cinco segundos se passaram, nada aconteceu. De repente, um silêncio absoluto tomou conta do local.
Ella abriu os olhos lentamente. Estava tudo escuro, mais do que antes, era como se estivesse cega.
— Flammeum Gladium — sussurrou Ella, ateando chamas à lâmina de sua rapieria. — Que estranho...
Ela ergueu a rapieira como se fosse uma tocha e avançou lentamente. O som dos perseguidores havia se esvaído totalmente; conseguia ouvir, com uma clareza inquietante, as batidas aceleradas do seu próprio coração.
Das profundezas da escuridão, emergiu uma criatura colossal. Era o Ghorax que estava perseguindo-os? Não... era maior. Muito maior. Não só isso, Ella se lembrava dele.
Sua aparência era grotesca: quatro chifres retorcidos saíam de sua cabeça, e sua mandíbula repleta de dentes afiados como navalhas.
O corpo da criatura parecia estar em constante apodrecimento, coberto por olhos vermelhos e protuberâncias pulsantes. Um vapor escuro emanava da sua pele, aliado a um fedor insuportável, uma mistura de mofo, carne em decomposição e enxofre.
O vapor distorcia a luz e a realidade ao redor.
Suas patas monstruosas eram dotadas de garras grossas e letais. Ella tinha certeza de que seriam capazes de dilacerar sua carne com a maior facilidade do mundo.
— Não fode... — exclamou Ella, recuando para trás lentamente.
Era ele. A mesma criatura que tinha tentado atacá-la naquele dia, no laboratório, ao lado do Vendedor Viajante.
A besta começou a falar em uma língua incompreensível, mas, por algum motivo, Ella podia entender suas palavras dentro de sua mente.
— A luz afasta a escuridão... mas não a mim. Abaixe essa arma, criança. Não há nada a temer. Devoro seus medos para que eles não te devorem. Mas minha fome é eterna. Quero mais... sempre mais.
A criatura investiu ferozmente contra Ella, que ergueu a rapieira a tempo de bloquear o golpe, mas foi lançada com força para longe.
A besta então, com sua enorme pata tentou esmagá-la. Ella rolava pelo chão como se fosse um rato fugindo de um gato.
— Porra! — gritou Ella, ofegante, após escapar por um triz de um golpe esmagador.
Ella se recompôs e ficou de pé novamente. A adrenalina fez com que ignorasse completamente a dor da mordida. Seu corpo estava tentando sobreviver a todo custo.
— O que você quer comigo? V-você já tentou me atacar antes, e-eu me lembro — gaguejou Ella, com medo.
— Busco retomar o que é meu: o controle sobre o Vazio. Mas, para isso... preciso me adaptar — grunhiu a besta.
— E onde eu entro nessa história?
— O medo dos humanos fortalece cada aspecto da minha essência. Desse modo, é apenas uma questão de tempo até que eu destrone o “Rei sem Nome”.
— Você está falando do Chaos, não é? E-eu também estou atrás dele, podemos trabalhar juntos — sugeriu Ella, tentando uma barganha desesperada.
— Este não é seu nome, é apenas mais uma criação humana. Diferente dele, eu não faço alianças com a sua espécie. Meu desprezo pelos humanos transcende todas as palavras de todas as linguagens existentes em nosso universo.
Sem mais opções, Ella empunhou a rapieira em chamas contra a besta.
“Droga... por que estou tremendo tanto? Você não vai morrer, acalme-se! Já sobrevivemos a situações piores” pensou, tentando recuperar o controle.
A besta avançou, tentando abocanhar Ella, mas institivamente ela desferiu um golpe horizontal, rasgando sua mandíbula em um corte profundo. Seus reflexos estavam muito mais afiados desde que veio para Rubra.
Mas seu inimigo não era qualquer um. Ao mesmo tempo em que tentou mordê-la, atacou com suas enormes garras, rasgando o seu oblíquo.
Mesmo com a jaqueta, suas garras eram tão afiadas que conseguiram atravessar a malha reforçada com nanofibras de Rubrannium.
Sua mandíbula rapidamente se regenerou.
Antes que ela pudesse reagir, ele mordeu seu braço esquerdo brutalmente, despedaçando-o.
Seu braço jorrou sangue como uma torneira quebrada; seu grito de dor ecoou em meio a escuridão.
Num piscar de olhos, a criatura saltou sobre ela, e, num movimento final, devorou sua cabeça.
Mas tudo aquilo não passava de uma ilusão.
Voltando para a realidade num sobressalto, ela percebeu que estava atacando o homem misterioso que havia a salvado.
Ele segurou a ponta de sua espada com uma maestria espantosa. Não era uma pessoa comum.
Com um golpe certeiro, acertou o ombro de Ella, fazendo-a soltar a rapieira, e por fim, a derrubou no chão com uma rasteira.
— Estou te avisando, se você não parar...
— O-o que aconteceu?
— Você surtou e começou a me atacar. Achei que tivesse se transformado... mas seus olhos estavam normais. Eu que te pergunto: o que aconteceu?
— E-eu esperei quarenta e cinco segundos e nada aconteceu. De repente, tudo escureceu. Aí... apareceu um monstro gigante. Ele falava numa língua estranha, mas de alguma forma eu conseguia entender — explicou Ella, com a voz trêmula. — Ele me atacou e... eu lutei, no fim eu fui devorada. E agora eu estou aqui, viva. Como isso é possível?
O homem suspirou pesadamente.
— Isso é péssimo...
— O quê? Por que é péssimo?
— Essa criatura, se chama Ul’Kareth. Ele invade a mente dos humanos, se alimentando dos nossos medos. Quando ele nos devora, mesmo que só mentalmente, adquire parte do nosso poder. Falando de forma simples, você acabou de deixa-lo muito mais forte.
— Então quer dizer que eu perdi parte do meu poder?
— Não. Ele não tira nada de você. Meio que copia, duplica seu poder e absorve para si mesmo. Até onde eu sei, é isso.
— Ele já invadiu sua mente também?
— Não. Nunca.
— Como? — perguntou Ella, em choque, tentando se levantar.
— Eu não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém — respondeu o homem, em tom firme.
Ele estendeu a mão e ajudou Ella a se levantar. Assim, ela finalmente pôde ver seu rosto por clareza.
Era um homem branco, de cabelos brancos, compridos, presos num coque.
Tinha uma barba fechada, negra com mechas brancas. Usava um tapa-olho no lado direito do roto, onde três enormes cicatrizes cruzavam sua face. Pareciam que tinham sido causadas por um ataque de uma fera gigante. Seu outro olho era castanho-escuro.
Assim como quase todo homem sobrevivente naquele mundo, sua estrutura corporal era robusta e imponente.
— Cabelo loiro e comprido, jaqueta de couro com o brasão dos Águias... já até sei quem você é — comentou ele, com um sorriso leve.
— Quem te mandou atrás de mim? — respondeu Ella, séria.
— Ninguém. Não estou aqui para te caçar. Nos encontramos puramente por acaso
— Então como sabe quem eu sou? — indagou Ella, levando sua mão discretamente até seu revólver.
— Tira a mão do revólver. Já falei que não estou aqui para te caçar. — Ele recuou alguns passos, um gesto para aumentar a confiança de Ella. — Sou apenas um sobrevivente vagando por Rubra. Olha, meu nome é Isaac. Estou indo até a UCC comprar alguns suprimentos. Não quero machucar ninguém.
Ella retirou a mão do revólver, dando um voto de confiança pro homem.
— Ella. Mas você já deve conhecer.
— É claro que conheço. Filha do lendário Aslan Murphy, tive o privilégio de conhece-lo pessoalmente.
— Você conheceu meu pai? Como foi?
— Foi incrível. Ele era um caçador excepcional, mas também era praticamente uma celebridade. Foi uma experiência... inesquecível.
Ella sorriu, lembrando de seu pai.
— Como está sua perna? Deixe-me ver.
Ele se abaixou para examinar. De fato, havia uma mordida feia. Mas, por algum motivo, ela não se transformou em um deles. Isaac jogou álcool e improvisou um curativo com uma faixa que guardava em sua mochila.
— Então você é imune? Mas como isso é possível?
— Não sei... Só sei que se passaram quarenta e cinco segundos e nada. Talvez a infecção não tenha se espalhado?
— Improvável. O mais lógico é que seu corpo tenha adquiridos anticorpos contra a infecção, mas como?
— Depois nós pensamos nisso. Vamos, tenho que voltar para a UCC logo.
— Não acho uma boa ideia. Eu despistei todos eles antes de vir pra cá, mas ainda estão por aí. E bom, você não tá numa boa situação pra correr, é melhor esperar amanhecer.
— Eu preciso voltar logo, não sei se meu amigo chegou em segurança à comunidade.
— Provavelmente sim. Agora sente e descanse. Repouso é essencial para sua perna melhorar — disse Isaac, escorando-se numa parede.
Depois de um tempo em silêncio, Ella tentou puxar assunto com Isaac.
— O que mais você sabe sobre mim?
Ambos estavam encostados lado a lado em uma parede, sentados. A sala estava escura, iluminada apenas pela luz do luar que atravessava o teto quebrado.
— Me disseram que Ella Murphy era uma assassina fria, extremamente habilidosa e traiçoeira. Matou dois Emissários e é suspeita de ter planejado um ataque contra a comunidade dos Goldwing. É um currículo e tanto, hein — provocou ele, em um tom brincalhão.
— É... essa sou eu.
— Você deve ter deixado o Logan muito puto. Ele está oferecendo uma recompensa bem generosa pela sua cabeça.
— Acha que não sei? E os Ceifadores, não sabe nada sobre eles? Também estão na minha cola.
— Não me envolvo com terroristas. Prefiro manter o máximo de distância possível deles.
— Não está perdendo nada. Aquele Andrew Griffin virou uma pedra no meu sapato. Cedo ou tarde, nos encontraremos novamente. E quando isso acontecer, as chances de eu morrer são grandes...
— Andrew é um Filho do Vazio. Esse é o pior tipo de inimigo pra lidar.
— O que você quer dizer com “Filho do Vazio”?
— É quando um humano é infectado pelo Vazio ainda no ventre da mãe. Como o corpo da mãe o protege, o bebê desenvolve anticorpos... mas o Vazio acaba se fundindo à alma do bebê. Quanto mais essência do Vazio a alma absorve, mais habilidoso ele se torna.
— Quais são as chances disso acontecer? Quero dizer, a mãe morreria em segundos após ser infectada.
— Muito baixas. Para o bebê sobreviver, é preciso cumprir alguns requisitos: o bebê precisa estar desenvolvido o suficiente para viver fora do útero e, o mais importante, deve ser retirado do corpo da mãe em, no máximo, uma hora após a morte dela. Caso contrário ele também morre.
— Isso já aconteceu antes?
— Na sociedade antiga, sim. Era raro, mas não impossível, graças à medicina avançada da época. Mas hoje em dia? É praticamente impossível, Andrew provavelmente nasceu naquela geração, antes do colapso.
— A minha mãe... quando estava grávida de mim, Chaos a infectou como forma de tortura. Uma infecção diferente, uma que duraria um ano, trazendo uma dor constante até o dia em que se transformasse. Mas, de algum jeito, ela sobreviveu por mais sete anos. Será que... eu sou uma “Filha do Vazio”?
— Não, eu acho que não. Quer dizer... talvez. Mas, pelo que eu ouvi dizer sobre você, é uma habilidosa usuária da Vontade Solar. O Vazio tende a suprimir a Vontade, tornando difícil controlá-la com a maestria que nós conseguimos. Acredito que o seu corpo tenha criado anticorpos para barrar a infecção e você ainda deu a sorte de não ter sua alma contaminada. Em outras palavras, você é imune sem quaisquer influências do Vazio.
— Isso é bom, né? — indagou Ella, receosa.
— Depende. Filhos do Vazio geralmente são bem mais fortes que um Primordial, mas estão sob o risco constante do controle mental do Chaos. Não que nós estejamos completamente livres disso... mas uma mente blindada consegue resistir. No caso de Andrew, nem a mente mais forte do mundo daria conta.
— Bom, isso me deixa um pouco mais tranquila — disse Ella, num suspiro cansado. — Como você sabe de tudo isso?
— Quando eu era um caçador, tinha um Filho do Vazio no meu esquadrão. Esse era o destino deles, ou viravam caçadores ou eram mortos. Ele me ensinou muita coisa.
— Todo mundo aqui parece saber tanto... já eu, nada. Me sinto meio lesada às vezes — comentou Ella, rindo de leve.
Isaac acompanhou com uma risada.
— Você é nova ainda, eu já estou com quarenta anos. Vivi bastante..
Os primeiros raios solares penetraram pelo teto, acordando Ella de um cochilo. Os perseguidores começaram a se esconder, fugindo da luz solar. O caminho agora estava livre.
— Tá na hora de ir, Ella — disse Isaac, estendendo sua mão para ela.
Ella a agarrou e se levantou com um pouco de dificuldade. Sua perna ainda doía.
— Consegue andar?
— Consigo, só tá doendo... quando fui mordida, a adrenalina deu uma aliviada na dor, mas agora que passou, tá vindo com tudo.
— Quando chegarmos na UCC, procure um médico. O curativo que fiz foi bem improvisado, só pra segurar por enquanto.
Não demorou muito para que chegassem até a comunidade. Durante o dia, o Vazio era menos ameaçador.
Ella mancou até o imenso portão da UCC, com Isaac ao seu lado.
— Sou eu, Ella. Abram os portões.
— Quem é esse homem ao seu lado? — perguntou uma voz, através de um visor embutido no portão.
— É um sobrevivente que eu conheci, um aliado. Só consegui voltar por causa dele.
— Mago ou Imperador? — sussurrou ele, para que somente Ella escutasse.
— Imperador.
Os dois portões se abriram.
Crianças brincavam pelos pátios da comunidade. Vendedores negociavam em frente às suas casas. Guildas espalhadas pelos arredores. Ella sorriu. Aquela era a comunidade de que sentia falta.
— É bom te ver novamente. Achei que tinha abandonado a comunidade — disse um dos guardas.
— Se eu abandonasse, o Marc viria atrás de mim. Ele quer que eu faça um monte de serviços para ele — respondeu, rindo.
Falando no chefe, lá vinha ele. Marc caminhou apressadamente até Ella e a abraçou. Todos os civis pararam para observá-los.
— É bom ver que você está bem, minha garota. Como foi sua jornada? — perguntou Marc, com a mão em seu ombro.
— Foi meio conturbada, mas consegui chegar aqui inteira. O Haldreth... como ele está? Vocês o deixaram entrar, né? — indagou Ella, preocupada.
— Sim, mas precisamos conversar sobre isso depois. — O olhar de Marc se tornou mais sério. — E quanto a ele, quem é?
— Eu me chamo Isaac, senhor. É um prazer — disse Isaac, com admiração, estendendo sua mão. — É uma honra conhecer um Bresset.
— Esqueça isso, filho. Sobrenomes não significam mais nada nesse mundo. — Marc riu calorosamente. — Quais são suas intenções na comunidade?
— Eu sou um nômade, senhor. Ando de comunidade em comunidade, oferecendo serviços e trocando suprimentos. Gostaria de ficar aqui por um tempo.
— O Isaac me disse que era um caçador. Ele até chegou a conhecer meu pai, não é?
— É... sou, mas não cheguei a me tornar um Águia. Era apenas um Falcão.
— Isaac? Não me lembro de nenhum Isaac, nem mesmo entre os Falcões.
— Ah, é porque eu servi no Brasil. Vim para Rubra cinco anos antes desse apocalipse começar. Não cheguei a servir aqui.
— Ô, mais um brasileiro! Você deve conhecer o Perseus, o maior Águia do Brasil. Ele também está aqui!
O olhar de Isaac demonstrava surpresa.
— Perseus Silva, o Gigante! Como não conhecer? Seria uma honra conhecê-lo.
Uma amizade se formava entre todos eles. O carisma de Isaac era magnético. Mas havia algo em Isaac que intrigava Ella. Algo que não conseguia explicar.
— Obrigado por me ajudar a chegar até aqui — disse Isaac, dando um tapinha nas costas de Ella.
— Eu que agradeço por me ajudar até aqui. — Ella sorriu de volta.
Se Isaac era um aliado ou inimigo, isso se viria a provar com o tempo. Mas havia coisas mais importantes em jogo naquele momento.
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