Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 41: Corra Se Puder!

O grupo não hesitou em iniciar a descida pela montanha. No melhor dos cenários, eles chegariam ao sopé ao anoitecer. Já passava das duas da tarde.

Haldreth empurrava com esforço o carrinho de mão com Connie e Icrow adormecidos. O peso era enorme, e controlar a descida exigia toda sua força e concentração.

Não muito tempo depois, eles alcançaram a borda da floresta. Ali reinava o real perigo que eles temiam.

— Essa floresta é um labirinto vivo, como vamos atravessar sem o Icrow? — perguntou Ella, tentando acordá-lo.

— Eu conheço o caminho. O problema são os mandris... quando eles me verem, ferverão de ódio.

— Tenho medo de perguntar o que você fez com eles para te odiarem tanto...

— Experimentos. Tentei arranjar uma cura para o Connie através do Vazio, mas isso acabou concedendo racionalidade aos mandris e se espalhando como um vírus entre eles. Continuei com os experimentos, mesmo sabendo que era extremamente doloroso. Era como uma tortura, mas daquela vez, eles eram conscientes. Me odeiam com razão. Fui um monstro para eles — confessou Haldreth, olhando para Connie. — Mas, pra ser sincero, se for para salvar quem eu amo... faria tudo de novo. E pior. Você não?

— Acho que torturar macacos é menos pior do que as coisas que eu já fiz — respondeu Ella, com um riso amargo.

— Então vamos. Esteja atenta para qualquer ataque.

Já no coração da floresta, muitos mandris começaram a aparecer entre as sombras, sussurrando entre si.

— É o cientista maluco — diziam alguns.

 — É ela, a humana que derrotou Krohn.

Em pouco tempo, estavam cercados. Um coro de grunhidos preencheu o ar.

— Não me obriguem a matar vocês como fiz com seu líder — gritou Ella, desembainhando a rapieira. — Garanto que não tenho medo de nenhum de vocês.

— Monstro! — gritou um mandril, apontando para Haldreth. — Você matou meus pais.

— E o meu irmão! — bradou outro, rugindo.

Todos os outros mandris se revoltaram e começaram a grunhir ainda mais e o cerco se fechou ainda mais.

— Tudo o que eu fiz foi para tentar salvar o meu melhor amigo — gritou Haldreth, com a voz carregada de fúria. — É assim que funciona a ciência! Sacrifica-se o pouco para salvar o todo. Vocês são livres, possuem essa floresta inteira para vocês. Vivam e reproduzam! Se vocês não são capazes de lidar com o passado, eu não dou a mínima! Saiam do meu caminho ou acabarei com a raça de cada um de vocês.

Os gritos de Haldreth vinham direto do seu peito, alimentados pela dor da perda de Rostov, pela culpa de não ter curado Connie. Pela primeira vez, Haldreth deixou cair todas as máscaras. Ali estava ele, em essência.

— O mesmo Vazio que você usou para nos dar consciência, será o mesmo que irá extinguir a humanidade, e com razão — exclamou um mandril mais velho. — Deixem-no passar!

Ele parecia um ancião. Provavelmente foi um dos primeiros experimentos de Haldreth.

— Eu me lembro de você... Foi um dos primeiros que eu resgatei daquele zoológico abandonado, não é?

— Você não nos resgatou. Você nos raptou.

Haldreth o encarou em silêncio, até que ele abaixasse a cabeça e todos os mandris se afastassem.

— Vamos, Ella — declarou Haldreth, retomando o carrinho de mão.

Ella continuou olhando para trás, observando os mandris se reagruparem como uma família.

O quão longe foram os métodos de Haldreth para tentar curar Connie, Ella não sabia, mas parecia ter sido um infero para aquelas criaturas.

Levaram mais tempo do que o esperado, mas finalmente chegaram ao sopé da montanha. O sol já havia se posto.

Chegaram ao pequeno acampamento que Ella havia improvisado. Ela percebeu que a lona que havia usado como cobertura já não estava mais lá.

— O que foi? — indagou Haldreth.

— Nada, é só que... faz tanto tempo que eu não volto pra superfície.

— Em pouco tempo ficará totalmente escuro. Esperar o amanhecer não é uma opção — disse ele, num tom sério. — Não tenho tanto propofol assim. Temos que nos apressar.

— Mas à noite é a hora em que as criaturas estão mais ativas. Ainda mais em campo aberto...

— O quê? Está com medo? Pensei que fosse uma caçadora do Vazio.

— Mas eu não sou! A CCV nem existe mais hoje em dia — protestou Ella.

— Você já matou dois Emissários. Não entendo seu medo — rebateu Haldreth.

— Dizem que à noite hordas de perseguidores espreitam por Rubra, fora os colossos.

— Deixa de ser medrosa. Antigamente, para se tornar um Águia, precisávamos passar uma semana inteira dentro do Vazio. Vamos — finalizou Haldreth, puxando o carrinho novamente.

Anoiteceu. Uma escuridão terrificante tomou conta do ambiente. Uma névoa espessa pairava pelo solo, junto a um frio quase congelante. Mas Ella não sentia o frio.

Sons aterrorizantes ecoavam ao longe, vindos de todos os cantos. Ella olhava em volta a cada passo, seus olhos inquietos e a respiração presa.

Haldreth parou o carrinho repentinamente, colocando-o no chão com extrema cautela. Ele fez um gesto de silêncio com o dedo nos lábios.

Apertando um botão do lado do capacete, ele ativou uma visão térmica, podendo ver todos os seres vivos ao seu redor.

A escuridão era absoluta, apenas o luar iluminava o ambiente. Mas graças a visão térmica, Haldreth conseguiu ver. E o que ele viu o fez recuar com passos calculados.

Dezenas e mais dezenas de perseguidores em sua frente, parados, apenas respirando.

— Tem uma horda enorme ali, pelo menos cinquenta — sussurrou Haldreth.

— Cinquenta?! Mas que porra, eu te avisei! O que eles estão fazendo? — respondeu Ella, visivelmente tensa.

— Estão parados... respirando freneticamente. Acho que estão dormindo.

— Eu sabia que isso ia te acontecer. Por que você não me escutou?

— O que você prefere, ter a chance de ir pra comunidade sem achar uma horda ou ter a certeza de que o Connie vai perder a consciência e nos atacar? Essa era nossa única opção.

— O que nós vamos fazer agora?

— Os perseguidores são cegos, mas a audição deles é apurada ao extremo. Conseguiremos passar por eles, desde que façamos silêncio total.

— E se nós fizermos?

— A menos que suas chamas queimem mais de cinquenta seres de uma vez... teremos que correr.

Ella engoliu em seco. Sabia o que uma única mordida podia causar. Seu pai já lhe contou várias histórias.

— Vamos dar meia volta. Talvez atravessando essa parte da cidade não tenha outra horda.

Através da visão térmica, Haldreth viu uma enorme silhueta vermelha que se aproximava pela retaguarda. Estavam encurralados.

— Eu não quero te desesperar, mas tem algo enorme vindo na nossa direção. Pelo tamanho, deve ser um Ghorax.

Ghorax era uma espécie de colosso do Vazio, beirava os sete metros de altura e oito de comprimento. Tinha um corpo imponente e bestial, com dois chifres que saíam da região dos olhos.

Suas garras eram afiadas como as de uma águia, sua cauda lembrava a de um escorpião, com uma vesícula de veneno na ponta.

O olhar de Ella denunciava seu pânico. Eles só tinham uma opção: atravessar no meio da horda.

Com extrema cautela, Haldreth levantou o carrinho novamente e começou a se mover, passos lentos e controlados. Ella o seguia agachada.

A horda estava majoritariamente concentrada na porta de um arranha-céu em ruínas, à esquerda. Alguns poucos estavam à direita, criando uma brecha estreita entre eles.

Estavam quase conseguindo passar, até que o carrinho bateu numa raiz de árvore no chão.

Crack.

Ella e Haldreth congelaram.

Alguns perseguidores se viraram na direção do barulho. Ella levantou lentamente.

Um deles à direita, com a coluna bizarramente encurvada, começou a se aproximar da Ella. Estava muito perto, era como se ele sentisse o seu medo.

Tinha os olhos completamente selados por cicatrizes do Vazio. Eram cegos, mas ouviam como ninguém. Ella tapou a boca e nariz com a mão.

O monstro passou bem na sua frente. Seu rosto chegou a centímetros dela. Seu cheiro pútrido perpetuava no ar. Seus ossos estalavam a cada passo. Ele abriu a boca e soltou um som gutural e grotesco.

E então, seguiu adiante...

O pior momento passou. Haldreth lentamente e cuidadosamente levantou o carrinho para passar pela raiz e seguiu o trajeto. No melhor dos casos...

Um latido cortou o silêncio.

Um pastor-alemão saiu correndo de uma rua lateral, desesperado, sendo perseguido por uma horda de perseguidores faminta. Também atraindo a atenção do Ghorax.

Aquele maldito cachorro estava trazendo não só o colosso, mas mais uma horda de perseguidores na direção deles. Não havia momento pior para um cachorro aparecer.

— Ella! CORRE! — gritou Haldreth, usando toda sua força para empurrar o carrinho com tudo.

Ella disparou ao lado dele, atravessando-o em pouco tempo.

Haldreth não conseguia manter o ritmo enquanto carregava Connie e Icrow. A horda rapidamente o alcançaria.

Ella desembainhou sua rapieira e incendiou-a.

— Vai! Segue reto até o final da rua, vire à esquerda e depois a direita. Vá reto, sem parar! — gritou, ficando para trás.

— Ella! Não posso te deixar aqui — retrucou Haldreth, prestes a largar o carrinho para ajudá-la.

— Vai! Eu te alcanço depois.

— Merda! Não faça nenhuma besteira! — Haldreth correu com o carrinho o mais rápido que pôde.

Solaris Vórtex! — bradou Ella, lançando um ciclone de chamas contra os perseguidores.

As chamas engoliram parte da horda. O pastor alemão passou astutamente entre eles, ileso, conseguindo escapar.

O ataque de Ella só foi capaz de incendiar alguns, a maioria dos perseguidores sobreviveram e estavam vindo, junto com o Ghorax.

A horda que era mais de cinquenta, agora havia se tornado mais de cem.

Não havia como os parar. Ella sabia disso.

Ella correu o mais rápido que podia pelas ruas destruídas e tomadas pela vegetação. Ao passo que mais de cem perseguidores avançavam freneticamente, querendo devorar cada pedaço dela.

Os gritos grotescos das criaturas reverberavam em seus ouvidos, causando o mais profundo pânico.

Eles eram duas vezes mais rápidos que um humano atlético. A fome e o Vazio moviam cada perseguidor em busca da sua presa.

— EI! Seus filhos da puta! Me peguem se forem capazes! — gritou, dobrando à direita, tentando afastá-los de Haldreth.

O cansaço estava começando a tomar conta dela. Cada vez mais ofegante e os perseguidores cada vez mais próximos.

Ella tropeçou no chão e quase caiu. Sabia que não aguentaria correr por muito mais tempo. Quando, de repente, uma voz de um homem ecoou na sua esquerda.

— Aqui!

Em um beco entre dois prédios, quase escondido por escombros, um homem abria uma porta de grades de ferro.

Sem pensar, ela correu até ele, espremendo-se entre os escombros do beco. Prestes a conseguir escapar da horda, um perseguidor agarrou seu braço. Eram sobrenaturalmente fortes.

Um outro perseguidor mordeu sua panturrilha. Um grito de dor intensa escapou.

— Aaaaaaaah! — gritou Ella, esmurrando o rosto do perseguidor que a segurava com a mão esquerda.

Com a mão direita solta, rapidamente sacou o revólver do coldre e disparou na cabeça do outro.

Ela mancou até a porta. O homem a puxou para dentro e fechou a porta do beco rapidamente. Ele empurrou um armário de metal pesado para bloquear a entrada.

Desesperadamente, Ella puxou sua calça até o quadríceps. Sua perna tremia.

— Caralho, eu nunca vi uma horda tão gran... merda! Você foi mordida!

— Dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois... — contava Ella, suando frio.

O homem puxou um machado da sua mochila.

— Rápido! Ainda dá tempo de parar a infecção na sua perna — gritou ele.

Ella apontou o revólver pra ele.

— Nem fodendo. Sai de perto! — gritou ela, tremendo. — vinte e oito, vinte e nove, trinta.

— Não há outra opção, se a infecção chegar no seu peito, você vai sofrer um ataque cardíaco!

Os perseguidores se empilhavam do lado de fora, tentando passar pela barricada improvisada. O armário de ferro tremia, ameaçando tombar.

— Merda, eles vão entrar! Vamos! — gritou o homem, ajudando-a a se levantar.

O armário tombou com estrondo. A multidão de perseguidores invadiu o beco com tudo.

Ella correu para a direita, entrando dentro de um prédio em ruínas. O homem misterioso correu reto — e para a sua sorte, atraiu os perseguidores.

Quarenta e cinco segundos. Era esse o tempo até a infecção atingir o coração e provocar um ataque cardíaco.

Depois disso... o Vazio tomaria conta de tudo.

Ella, tremendo, encostou-se à parede. Tirou o revólver e apontou para sua têmpora.

Quarenta segundos se passaram.

— Quarenta e um... quarenta e dois... quarenta e três — sussurrava.

— Quarenta e quatro... quarenta e cinco!

Sua mão tremia como a chama de uma vela ao vento. Seu dedo no gatilho esperava qualquer batida diferente no peito.

O sangue escorria de sua perna, assim como as veias da região estavam negras.

Aquele poderia ser seu fim, mas jamais se tornaria um deles.

Um tiro ecoou na escuridão.

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