Volume 1 – Arco 2
Capítulo 43: Entre Dois Impérios
— Olha só, o que você fez foi uma completa loucura, tá legal? — esbravejou Marc, batendo na mesa.
— Eu não tive outra escolha!
— A sua única escolha foi trazer um infectado e uma criatura do Vazio para dentro da comunidade?
— Acho que algumas coisas aqui precisam ser esclarecidas — respondeu Ella, mantendo a calma. — Primeiro: o infectado é responsabilidade do Haldreth e ele será totalmente contido. Segundo: a criatura do Vazio foi quem me ajudou a chegar até o Haldreth. Ele é um aliado, não inimigo.
— Confiar em seres do Vazio é pedir por problemas, te garanto isso — disse Marc, andando de um lado para o outro. — Mesmo que por algum milagre da natureza, esse aí seja “do bem”, sempre estará vulnerável ao controle mental do Chaos. Ou seja, você basicamente colocou um espião dentro da comunidade.
— Eu sei disso, mas o que queria que eu fizesse? Ele me ajudou. É uma criatura boa. Eu também duvidei no começo, mas ele realmente é do bem!
— Mate-o! Ella, acredito que você não entenda o que a sigla UCC significa. Deixe-me esclarecer para você: União... Cívica... DOS CAÇADORES!
— O Isaac me disse que vocês aceitavam Filhos do Vazio como caçadores. Por que não podem aceitar o Icrow?
— Por que você acha que não há nenhum Águia que seja um Filho do Vazio? Toda vez que o Chaos descobria a existência de um, ele invadia a mente deles e os usava como espiões. No fim, éramos obrigados a sacrificá-los.
— Deixe o Icrow com o Haldreth. Ele sabe como lidar com esse tipo de situação.
Marc soltou um longo suspiro.
— Quanto ao Haldreth, já providenciei uma casa com porão para ele. Conseguirá fazer seus experimentos por lá. Mas antes, preciso me certificar da segurança de todos com relação ao infectado. Não quero acordar com toda a comunidade transformada nesses monstros.
— Ótimo. Você não disse que precisava de mais homens? Não trouxe o Kalel nem o Marcos, mas trouxe o Haldreth — e ele também é um excelente caçador!
— Sobre o Marcos... nesses meses que você passou fora, ele retornou à comunidade. Meus parabéns, você conseguiu trazê-lo de volta.
— É sério?! Onde ele está? — perguntou Ella, visivelmente animada.
— Numa missão, junto com o Cedric e Ethan. Estão investigando uma fenda do Vazio que abriu nas proximidades.
— Queria tanto ver meu irmão... estou morrendo de saudades dele.
— Ele deve voltar amanhã, se tudo correr como o esperado.
— Preciso passar no médico por causa da minha perna e então já partirei.
— Por que a pressa? E eu vi que sua perna está machucada. O que ocorreu?
— São duas longas histórias. Vou tentar resumir tudo...
Ella narrou tudo que passou durante todos esses meses que esteve no observatório do Haldreth, incluindo seu reencontro espiritual com seu pai.
Também contou como foi mordida na perna e de que forma conheceu Isaac.
— São realmente duas longas histórias. Eu já imaginava que você fosse imune. Sua mãe ter sido infectada foi um dos motivos para seu pai abandonar a UCC.
— Meu pai disse que você sabe onde está a mulher que pode acordar o Υersin — disse Ella, mudando de assunto de forma abrupta.
— Eu nunca fui atrás dele todo esse tempo por um motivo óbvio. Não era — e nunca foi — parte do plano trazê-lo de volta. Convencemos ele a entrar no sono profundo justamente porque estava se tornando cada vez mais difícil de lidar com ele. Além disso, o que exatamente seu pai te contou sobre ele? Garanto pra você que tem muita coisa sobre o Υersin que ele mesmo não sabe.
— Não importa. Se meu pai disse que precisamos dele, então é isso que vou fazer!
— Deixe-me esclarecer algumas coisas. Υersin foi um dos primeiros humanos a ter contato direto com o Chaos. Ele lhe ensinou nossa linguagem, nossa cultura, nosso comportamento... Juntos, criaram rituais que fortaleceram o Vazio, dentre eles a Ruptura. Os Emissários só existem porque o Υersin descobriu como fundir o Vazio ao corpo humano.
— Se ele fez tudo isso, porque decidiu ajudar a CCV? — questionou Ella, cética.
— Com Υersin ao seu lado, Chaos compreendeu a maldade humana... ele decidiu nos exterminar. Naquela época, ele foi um pouco mais “brando”. Planejava exterminar apenas metade da humanidade, como se fosse um aviso para a gente.
— E o que aconteceu pra ele ter mudado de ideia?
— Bom, o Υersin era um humano acima de tudo, ele não queria ver metade da sua própria espécie extinguida. Então, ele resolveu cortar o mal pela raiz.
— Ao que parece, ele falhou nisso — comentou Ella, rindo suavemente.
— Por pouco. Não sei se você sabe disso, mas ao longo da história, já existiram criaturas muito mais poderosas que o Chaos. O que o tornou o imperador do Vazio, foi sua habilidade de controlar qualquer ser do Vazio. Naquela época, havia uma entidade ancestral muito mais poderosa que o Chaos e, por sorte, ela também queria matá-lo. Υersin fundiu sua alma com a dessa criatura, absorvendo todo seu poder.
— Então é por isso que ele tem duas almas lutando pelo controle do corpo, né?
— Exatamente. Chaos só sobreviveu porque fugiu. Υersin então começou a sua caçada. Podemos até mesmo dizer que ele foi o primeiro caçador da história.
— E o que o Υersin era antes de tudo isso?
— Segundo ele, e por motivos óbvios não tenho como confirmar a veracidade disso, era um estudante de física numa universidade renomada da Itália.
— Como que um estudante de física conseguiu quase derrotar o Chaos? Isso é meio cômico pra ser sincera.
— Inteligência. Foi assim que derrotaram Peter Murphy. A maldita inteligência, a arma que supera qualquer força já vista. Lembre-se do que vou te dizer, Ella: tema o inimigo inteligente, não o forte. O forte pode ser superado, mas o inteligente... ele sempre estará um passo na sua frente.
— Então temos um homem super inteligente, com uma força superior ao do Chaos, disposto a lutar ao nosso lado, e mesmo assim você não quer trazê-lo de volta? Honestamente, isso não faz sentido nenhum para mim.
— Sabe qual era o diferencial da criatura que se fundiu ao Υersin? Não importa se você a decapitar, arrancar seu coração ou desintegrar seu corpo. Ela sempre se regenera. É um ser imortal. E consequentemente, o Υersin também é. Ele tem o conhecimento acumulado de mais de quatrocentos anos, ele sabe todas as fraquezas do Vazio e da humananidade. Imagine o que pode acontecer se essa criatura tomar controle total do corpo dele. Chaos pode ser derrotado, mas não ele...
— Então usamos o Υersin agora e depois o induzimos ao sono, que nem você fez no passado.
— Não é tão simples... Da última vez, ele já estava instável, perdendo o controle muito frequentemente.
— Mas como você tem tanta certeza se essa criatura não é, sei lá, pacífica? Que ela só quer matar o Chaos para tomar o lugar dele como soberano do Vazio.
— A primeira coisa que ela fez quando assumiu o controle do Υersin foi dizimar uma cidade inteira. Eu tenho certeza absoluta de que essa coisa está longe de ser pacífica — respondeu Marc, com firmeza.
— Eu sei que é um risco enorme... mas temos outra opção viável? Além disso, meu pai foi o único que chegou mais perto de acabar com tudo isso. Se ele está pedindo, com certeza sabe de algo que não sabemos.
— Seu pai disse que tem dois impérios se erguendo na Terra, não é? Ele estava se referindo às facções? Goldwings e Puracionistas? Não... Chaos e Rithan. Os dois impérios que são maiores do que a gente — disse Marc, levantando-se da cadeira. — O Υersin é o único que sabe como derrotar o Vazio por definitivo, mas tem algo a mais.
— Se vocês sabiam como exterminar o Vazio, por que diabos não fizeram isso até hoje? Teriam poupado muitas vidas e sofrimentos.
— Queríamos estudar o Vazio, compreendê-lo. Entender suas formas de vida, sobretudo a de Chaos, como um ser alcançou a racionalidade. Foi por isso que não o matamos. Estudamos ele durante meses — confessou Marc.
— E o que vocês descobriram com isso? Espero que tenha valido a pena ter poupado o maior inimigo da humanidade...
— Descobrimos que Chaos é apenas a ponta do iceberg. Ele é apenas a criação de uma entidade que nomeamos como “Madre”. Ela é a mãe do Vazio, aquela que criou todas as criaturas.
— E ela seria o que? Tipo uma deusa?
— Não tivemos tempo de descobrir. Fomos interrompidos... pelo Rithan — disse Marc, com a voz repleta de frustração. — Existe tanta coisa que ainda não sabemos...
— Você sabe que precisamos dessas respostas. Que precisamos destruir tanto o Vazio quanto o Rithan. Ou você pretende passar o resto da sua vida cercado por esses muros brincando de cidade com essas pessoas? — disparou Ella, fria como aço.
— Eu não estou brincando de cidade! — retrucou Marc, indignado. — Estou tentando restaurar o que foi perdido há muito tempo atrás: a ordem, a sociedade, a civilização! Foi a aliança dos humanos que nos permitiu evoluir por todos esses anos. O que estou construindo aqui, será o que irá garantir com que não sejamos extintos.
— E quando o Chaos finalmente atacar a humanidade de forma brutal, vocês vão resistir? E o Rithan, um ser cósmico que infectou noventa e nove porcento da humanidade num piscar de olhos. Você acredita mesmo que essa muralha, essas pessoas, vão ser capazes de resistir?
Marc permaneceu em silêncio. No fundo, ele sabia que eles não teriam forças para resistir a um ataque direto.
— Olha, eu entendo que o que eu estou pedindo é um risco inimaginável. Mas me diga, Marc: nós temos outra saída?
Marc caminhou até a janela da sua sala. Tinha uma visão ampla da comunidade.
— Puracionistas — respondeu ele, fitando o horizonte pela janela.
— O quê?
— A mulher que você procura se chama Mariah. Ela mora na comunidade dos Puracionistas. Foi minha aluna, igual seu pai. Mas ela era diferente dos demais... sempre teve um apreço pelo Vazio. Enquanto os outros caçadores sentiam repulsa, ela sentia admiração. E conseguiu algo quase impossível: se tornar discípula do Υersin. Eu passei minha vida inteira tentando arrancar informações dele, mas só ela conseguiu.
— Espera, se o Υersin ensinou o que ele sabia pra ela, quer dizer que podemos usá-la no lugar dele.
— Não seria a mesma coisa. Numa escala de um a cem, onde Υersin representa o cem, Mariah estaria na faixa dos trinta.
— Entendi. Então os Puracionistas são o meu próximo destino. Recebi um convite pessoal do Kurt para visitá-los a um tempo atrás. Isso deve facilitar as coisas.
— Por mais que eles amem sua linhagem, não abaixe a guarda. Principalmente com a fundadora da comunidade, ela é uma mulher realmente perigosa.
— A líder é uma mulher?! Isso é novo. Normalmente são homens que estão controlando tudo — exclamou Ella, surpresa.
— No passado, ela era uma serial-killer. Todas suas vítimas eram humanas, no sentido puro da palavra mesmo, aqueles sem qualquer Vontade. Foram mais de duzentas e noventa vítimas que conseguimos provar em tribunal.
— Pensei que caçadores só lidassem com casos relacionados ao Vazio.
— Na maioria das vezes, sim. Mas quando um caso se torna uma ameaça pública, somos chamados. Ela ficou conhecida como “A Herdeira de Murphy”, você deve imaginar o porquê. Em cada cena de crime, ela deixava citações do Peter Murphy escritas com o sangue das vítimas. Ela instigou uma nova horda de assassinatos contra humanos, estava tentando reacender os ideais Peter.
— Acho que consigo lidar com ela. Basta convencê-la de que também sigo esses ideais. Qual é o nome verdadeiro dela?
— Tatiana Morozova... nunca esqueci esse nome. Foram anos e anos atrás dela. Ela tem uma inteligência inigualável. Só conseguimos capturá-la graças ao Υersin
— Tatiana... certo. Agora, se me permite, tenho uma longa jornada pela frente — disse Ella, levantando da cadeira.
— Ella, espera. Você carrega consigo um cristal de Neofásio, não?
— Sim. Por quê?
— Tem usado ele recentemente?
— Na verdade, não. O Andarilho me deu para ativar os Portais de Terra Distantes, mas com tudo acontecendo, acabo esquecendo. Além do mais, até hoje não encontrei nenhum.
— Boa sorte para achar algum. Os Ceifadores destruíram quase todos no último ano. O Andarilho provavelmente não sabe disso, faz tempo que ele não volta pra superfície. Estou perguntando porque a guilda dos exploradores está precisando de um cristal para reativar a energia de alguns prédios abandonados.
— Não me leve a mal, Marc, mas prefiro manter ele comigo. Nunca se sabe quando vou precisar. Pode ser hoje, amanhã ou até mesmo nunca. Mas não quero correr o risco de estar sem ele quando mais precisar.
— Justo — respondeu ele, com um leve sorriso. — Você é mesmo filha do seu pai... sempre preparada para todas as situações.
Desceram até o estábulo. Mesmo com a perna recém-enfaixada, Ella não queria perder tempo.
— Aquele é o cavalo do Tristan, não é? — perguntou Ella, apontando para ele.
— Sim. O grandioso Pé de Pano.
— E onde está ele?
— Em alto-mar, com toda a tripulação.
— O Tristan é forte, ele deveria fazer parte da guilda dos Caçadores. Por que não chamam ele?
— Já chamamos, mas ele prefere ficar ao lado do pai. Não o julgo. Ficar em alto mar procurando a Terra Prometida e pescando é algo bem tentador. Se eu pudesse, me juntaria a eles — suspirou Marc. — Mas alguém precisa sujar as mãos para manter tudo isso funcionando.
— E esse alguém somos nós, da guilda dos caçadores, não é? — disse Ella, puxando as rédeas do cavalo. — Mas vamos ser sinceros: você também não suja suas mãos. Fica naquele escritório fresco, tomando café e escutando música clássica. Você dá a ordem e nós executamos.
— Hmph. Queria que minha vida fosse tão fácil como você descreve. Você não faz ideia de tudo que precisei fazer para manter essa comunidade de pé.
Ella não respondeu. Apenas tirou o cavalo do estábulo e acariciou sua crina.
— Ele tem nome?
— Atlas. Demos esse nome a ele por causa dessas manchas brancas nele, que parecem um mapa.
— Atlas... é um cavalo lindo.
Já montada e diante do portão principal, Ella se virou de repente.
— Marc, você sabe se existe algum Murphy vivo além de mim e do meu pai?
— Há duas linhagens da família Murphy. Uma que deu origem ao seu pai e a outra que se isolou da sociedade. Se eles ainda estão vivos, não faço a menor ideia. Por quê?
— Não é nada. Apenas curiosidade mesmo. Outra pergunta, por que uma família se isolaria assim?
— Depois que Peter Murphy foi selado e a Lilia morta, meu antepassado assumiu a responsabilidade de cuidar dos dois filhos do casal. Imagina ser criado pelo homem que “matou” seu pai... a chance de você se revoltar contra ele é enorme. Você deveria estudar a história da sua linhagem um dia. É muito interessante.
— Um dia eu vou ler. Espero conseguir.
— Todas suas dúvidas foram saciadas, minha aluna?
— Sim, professor — respondeu Ella, com um sorriso maroto. — Quando meu irmão voltar, diga a ele que estarei de volta em menos de uma semana. E se eu não voltar... diga a ele que eu o amo.
— Deixarei para você mesmo dizer.
Ella engoliu em seco e olhou para o horizonte.
— Ella, acabei de me lembrar de uma coisa — exclamou Marc, virando-se subitamente. — Cerca de vinte e cinco anos atrás, um alemão ingressou na CCV alegando ser descendente da linhagem isolada dos Murphy.
— Sério?! — perguntou Ella, intrigada.
— Sim. Mas nunca tivemos certeza disso. Ele não era alguém de grande destaque dentro da comissão, tampouco fizemos qualquer exame de sangue para confirmar. No fim das contas, era só a palavra dele contra a falta de provas.
— E o que aconteceu com ele?
— Morreu no mesmo ano que entrou — respondeu Marc, com um tom soco. — Pouca gente sequer lembra que ele foi um caçador. Mas eu nunca esqueço de nenhum dos meus soldados.
— Você acha que ele dizia a verdade?
— Sinceramente? Eu duvido, mas vai saber. Que ele esteja em um lugar melhor.
— Você lembra o nome dele?
— Era um nome alemão... algo como Sieg alguma coisa. Não tenho certeza — murmurou Marc, franzindo a testa tentando lembrar do nome.
Incontáveis mistérios rondavam a linhagem Murphy — fragmentos perdidos de uma história sanguinária. Mas Ella não podia se dar ao luxo de pensar nisso. Não agora.
Estava entrando em mais uma situação extremamente arriscada, e esse, mais do que qualquer outro até então, poderia muito bem ser o último.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios