Necrose Brasileira

Autor(a): Vinicius Gabriel


Volume 1

Capítulo 2: Começa a Jornada, A 39 Graus

Em geral, o funcionamento de um termômetro é consideravelmente simples. 
Um reservatório de mercúrio líquido envolto por um tubo de vidro onde a substância irá expandir ou retrair respondendo à alteração de temperatura.  

Do mesmo modo funcionava o utensílio em minha mão direita, cuja resposta veio em um apito alto e trouxe minha mente exausta de volta a realidade.  
 
O termômetro que eu segurava marcava os preocupantes 39 C°, o tipo de temperatura que causa convulsões e leva ao chão até os mais fortes adultos. 

Porém, com os remédios certos, estes mesmos adultos poderiam recuperar as faculdades de seus corpos. Claro, havia apenas dois pequenos problemas em meu caminho... 

O primeiro deles era que eu não possuía esses remédios em específico, e o segundo, seria o fato de que o corpo em frente meus olhos — pequeno e molengo — não era o de um adulto. E tampouco seria forte. 
 
A pequena garota, deitada no sofá a minha frente, possuía olhos pequenos e brilhosos, além de um longo cabelo preto que se estendia todo enroladinho em cachos finos e aumentava cada vez mais o suor em seu rosto. 

Não tinha mais que oito anos, ainda estava na fase de detestar os garotos, assim como há dois anos quando a conheci.  

A criança que por inúmeras vezes me salvou do colapso enfrentava agora algum tipo de infecção, já não era a primeira e certamente não seria a última, ou, ao menos era esse meu desejo. 
 
A preocupação tomou conta de mim desde a noite passada, na qual ela esteve vomitando muitas vezes — sangue em algumas delas — e se queixando de uma aguda dor de cabeça.  

Assim, se tornou evidente não ser apenas outro dia ruim, e acima de tudo, seja qual fosse a doença, não se podia confiar na força ou na falta dela. — "Não em um mundo como esse". 
 
Passei a mão em meus cabelos com certo desespero maquiado de reflexão, esperando encontrar uma alternativa melhor, mesmo que meu interior já houvesse determinado os próximos passos que daria naquele dia.  

Certamente não seriam os passos que gostaria, porém, havia muito tempo que a vida não andava por um caminho que me agradasse. 

Logo, aceitei as coisas da maneira em que as mesmas se apresentavam e dei início a minha jornada.   
 
Toquei seu rosto delicado antes da partida, me lembrando da promessa silenciosa que fiz a seu pai pouco antes de ter de esmagar a cabeça do homem com um pé de cabra. — "Não deixarei que se machuque, não mais." 

Ela agora dormia tão tranquilamente que chegava a parecer bem. Como a mais saudável das crianças, em seu descanso após um extenso dia de brincadeiras e uma boa história contada por seus pais.   

Tratei de fixar em minha mente que aquela não era a realidade, afinal, ela não dormia por cansaço... Definitivamente não me orgulhava de ter drogado uma criança, entretanto, pensei que fosse melhor do que fazê-la me ver partir.   

Me aprontei tão rápido quanto um soldado em momento crítico. — Um grosso casaco e calça jeans, o mesmo traje simples que me manterá vivo até aqui. 

Assumo que havia o problema com os sapatos, sempre os achei fracos demais, porém, este não era o momento para isso, meus tênis seriam trocados por algo mais adequado hora ou outra.  

Dei uma rápida olhada pelo mapa, mesmo conhecendo aquela região como a palma de minha mão. — Não fora uma habilidade difícil de conseguir, sendo isto ou a morte, se tornou fácil de escolher.  

Sabia exatamente quais ruas pegar, o tipo de coisa que os atraia e o que os afastava, onde havia maior concentração e onde seria capaz de passar sem mais problemas.  

Qualquer dificuldade que enfrentasse não estaria nas ruas, estás já foram dominadas por mim há muito. Já o ambiente em que me lançaria, esse, sim, se fazia uma incógnita por completo.   
 
Não tinha comigo nenhum mapa do edifício, exceto o que existia latente em minha mente e, séria esse meu guia.  

Conferi minha mochila, amarrei os cadarços com minhas mãos suadas, joguei o cabelo para trás e desci as escadas que conectavam o andar superior de nossa fortaleza ao inferior.  

Ninguém entrara, todas as armadilhas ainda em seus devidos lugares. Olhei para porta que me levaria para o terreno do inimigo, hesitei por um instante, e me recordei de como a casa do meu sogro se tornará meu abrigo. 
 
— Olha só para esse lugar... O velho era realmente maluco. Não tive qualquer dificuldade para transformar sua casa de família em uma fortaleza “anti-criaturas”. Acho que talvez, no fim, exista algo pelo qual devo agradecê-lo.

Tirei as travas da porta dos fundos com extremo cuidado para que o barulho não os atraísse, e com uma mão firme girei a maçaneta, encontrando o tenebroso mundo que existia lá fora.  

O ar de um quente dia de verão passou por mim, longe do que seria atrativo, porém melhor que o costumeiro cheiro de carne apodrecida que parecia impregnar as ruas e não contente com elas, se instalar em suas roupas. 

Certamente existia algo psicológico naquela ideia de que o terrível odor não nos abandonava, mas um psicólogo não era do que precisava agora, ao invés disso, gastei alguns poucos minutos — os quais não possuía — olhando para o céu azul. 

Seguramente uma das poucas coisas que se mantinham as mesmas de quando o mundo ainda era mundo e, naquele pequeno instante, não pude deixar de abrir o baú cheio de recordações daquele mundo longínquo que se perdeu. 



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