Necrose Brasileira

Autor(a): Vinicius Gabriel


Volume 2

Capítulo 10: Murmúrios

Era como se eu houvesse dormido por uma eternidade, naufragando em sonhos do mundo que outrora existiu, caminhando por lembranças que durante toda vida lutei para não esquecer, e assim, ao encontrar meu fim, me agarrei a elas, e elas me receberam, tirando de meus ombros o peso de uma longa e desgastante jornada, me confortando para partir.

Não sentia medo, meus arrependimentos e reclamações se tornaram em pó. Eu estava calmo, em paz, aceitei aquele desfecho da exata maneira como se apresentou a mim, estava pronto para partir, contudo, uma brasa permanecia acessa. Alguém esperava por mim, alguém ainda chamava meu nome, alguém me trazia de volta. 

A pouca força que despendi permitiu que meus olhos se mantivessem semiabertos, sendo o suficiente para receber o incomodo facho de luz que parecia ter abandonado suas muitas oscilações.
Somente após meu esforço pífio em me levantar que notei não estar mais usando meus equipamentos de proteção no rosto, entretanto, a dor sentida na tentativa de movimentar meus músculos, cortou este meu pensamento de maneira brutal.  

— Não se mova, você está ferido. — Soou a voz feminina vinda de algum lugar da sala.  

— Quem está aí? — Indaguei, juntando toda lucidez que me restava.   

— Não diga nada. Você está ferido, então não deve se esforçar tanto. — Disse com voz mansa a figura que se aproximava de mim, pele parda e cabelos curtos, todo resto de suas características femininas perdidas no embaraço de meus sentidos.  — Eu escutei o chamado pelo rádio, está tudo bem agora.  

— Qual chamado? Do que você está falando? Onde ele está? — Minha mente fora desligada antes de receber qualquer resposta, não pude fazer muito mais. Seja lá quem fosse aquela pessoa, eu estaria em suas mãos por mais tempo do que gostaria.  

Meus olhos tornaram a se abrir, e embora a confusão parecesse ter se dissipado pela metade, eu ainda não era dono do meu corpo. Murmurei a palavra sede algumas vezes, esperando que o vulto ao meu redor notasse e atendesse meu pedido, e assim aconteceu.  

A jovem garota se agachou ao meu lado segurando uma garrafa d’água em suas mãos, foi quando percebi que desejava o líquido do recipiente como nunca antes e, que ao bebê-lo, estaria confiando em alguém desconhecido, como também nunca houvera feito — ao menos não nesse mundo. 

— Você finalmente acordou... — Ela dizia, enquanto meus lábios secos se encontravam com o hidratar da água. — O tiro perfurou seu abdômen, mas a bala não saiu. Fiz um curativo improvisado e estanquei o sangramento, então, não tem problema em beber um pouco de água agora, mas não exagere, e procure não se esforçar muito também. 

— Então, acho que devo te agradecer. — Respondi com certa dificuldade e estimulei meus músculos a se moverem, intentando me sentar apoiando as costas na parede.  

— Eu sou Robbin. Sou bombeira, se é que a roupa já não me entregou. — Ela disse enquanto me ajudava em meu movimento.  

— Agradeço mais uma vez, Robbin. Me chamo Marvin.  

— É bom encontrar um vivo para variar, Marvin. Embora, se eu tivesse me atrasado um pouquinho mais, você já estaria no outro mundo agora. Bem, por sorte te encontrei pouco depois do disparo. — Ela concluiu se afastando. — Mas, e então, o que você faz aqui?  

— Com “aqui” você quer dizer no hospital ou no chão? — Retorqui com certo humor, tentando ganhar tempo para elaborar uma resposta.  

— Talvez possa me dar as duas respostas?  

— Certo. — Eu disse, aceitando que na situação atual não haveria decisão melhor senão confiar na pessoa que acabara de salvar minha vida. — De maneira resumida, estou aqui atrás de alguns remédios. Tem uma garotinha no meu abrigo que precisa muito deles.  

— Judy? Esse é o nome da garota? — Sua pergunta me cortando a fala.  

— Como conhece esse nome? — Perguntei confuso, pouco antes de vê-la sorrir.  

— Você murmurou ele enquanto dormia, e fez isso muitas vezes...  Além disso, não é como se só você em todo o mundo conhecesse esse nome. 

 “Há coisas que realmente não mudam, não?”, sussurrei para mim pouco antes da resposta.  

 — Não, na verdade, a garota se chama Elizabeth, Judy era minha esposa. A pequena Liza sempre dependeu demais dos remédios, ela tem uma condição clínica diferente do comum para uma criança da idade dela. Eu venho cuidando dela desde que tudo isso começou, mas, acabei descuidando.
E você deve saber, essas coisas ficaram difíceis de se encontrar por aí... Tudo que eu quero é achar essas medicações, seja lá onde o maldito Dr. Wes as tenha enfiado, e voltar para casa.  

— Dr. Wes?  

— Sim, esse é o desgraçado que atirou em mim. Mas, não sei ao certo o porquê. Ele balbuciou um monte de coisas antes de atirar, uma doutora morta, memórias roubadas, ou sei lá o que.
Seja como for, é um homem louco e perigoso, não sei o que você veio fazer aqui e agradeço de novo por ter me ajudado, mas, é melhor ir embora.  

— Bom, isso responde as duas perguntas. — Durante alguns segundos um silêncio reflexivo se instaurou na sala, vi o olhar da garota fitar o chão e soube que algo passava em sua cabeça. — Quando chegou ao hospital, Marvin? — Ela perguntou.   

— Hoje, pouco depois do meio-dia.  

— E havia mais alguém no hospital além de você e o Doutor?  

— Não, não encontrei mais nenhum sobrevivente. O hospital está vazio, e esse é mais um motivo para sairmos daqui. — Respondi e, lancei um olhar sobre meu ferimento e sua atadura improvisada, esperando ter uma ideia melhor da situação.  

— Escuta, estou aqui porque recebi um chamado por rádio. Sabe algo sobre?  

— Desculpe, mas não fui eu quem te chamei aqui. 

— Faz sentido, a voz realmente parecia mais jovem... — Suas palavras reduzidas a murmúrios — Mas, não há mais ninguém aqui com você...  

— Uma voz mais jovem? — Perguntei com certa dificuldade e euforia assim que minha mente voltou a funcionar como deveria — Merda!! Então foi isso... Escute, Robbin, não é? Um pouco mais cedo, encontrei o corpo de uma garota, um pouco mais jovem que você. Estava na farmácia no andar de baixo e tinha um ferimento na nuca, provavelmente de uma pancada, e acho que foi o Dr. Wes quem a matou, não, na verdade, eu tenho certeza disso. Sei que é algo ruim de se aceitar, mas a pessoa que te enviou aquele chamado, a essa altura já deve estar morta. 

— Não, nós não temos certeza e mesmo que tivéssemos, se esse doutor realmente fez isso, não devíamos deixar ele impune... — Sua voz parecia esconder algo, porém, não me senti em posição de questioná-la quanto a isso.  

— Isso não tem a ver com punir ninguém, o mais importante agora é que você priorize sua sobrevivência. Saia do hospital, se quiser pode me esperar em algum lugar mais seguro lá fora e então pode vir junto comigo para o abrigo.  

— Sabe que não vai muito longe com esse ferimento. Se se esforçar demais, vai desmaiar de novo e acabar sendo comido por um “deles”. Não me trate como uma criança, já fazem messes que isso tudo começou e estou nisso a tanto tempo quanto você. Não vou sair daqui enquanto não me certificar da situação de quem me pediu ajuda.  

— Você não está entendendo, seja lá quem esteve aqui, infelizmente, se tornou outra vítima do homem louco. Eu mesmo quase me tornei mais uma...  

— Mas não aconteceu. — Robbin me interrompeu — E isso graças a mim.  E é assim que vai ser, vou procurar o sobrevivente e agora também devo colocar os seus remédios na minha lista de busca. Então, Marvin, pode decidir entre cooperar ou não, mas nesse seu estado não acho que tenha escolhas melhores, não é?  



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