Necrose Brasileira

Autor(a): Vinicius Gabriel


Volume 2

Capítulo 9: Intuição

Minha pequena excursão ao hospital na área sul da cidade encontrou seu fim pouco antes do principiar do sol poente. Meu acesso seria pelos fundos do prédio, a entrada traseira da ala de enfermagem para ser mais exata.

Era esse o exato lugar em que me encontrava agora. Podia ver ao meu redor as marcas do incidente que causou a morte de milhares de pessoas e devastou a cidade, o mesmo cenário corriqueiro que se instaurou sobre nós desde a brutal onda de assassinatos que aquela maldita doença causou.  

As marcas do maior combate pela sobrevivência da história humana — a qual todos os habitantes tiveram de enfrentar — já não me assustavam mais, sangue e corpos podres já não me intimidavam, não depois de tudo o que vi. 

Desarmada, adentrei o prédio passando pela grande porta dupla com dobradiças de alumínio, a borracha de vedação raspou na soleira gerando um irritante som agudo, não muito alto, porém, o suficiente para que a decrepita e bolorenta criatura respondesse com seu gemido abafado.

A poucos metros de distância no lado de fora, perto de uma ambulância em ruínas, se ergueu um corpo em estado similar ao do veículo, senão pior. A carcaça do homem usava um conjunto completo do uniforme de bombeiro, eu conhecia bem a vestimenta — sessenta e três por cento algodão e trinta e sete por cento poliéster, em um verde petróleo acinzentado — iniciaram a troca deste modelo duas semanas antes do caos começar.

O modelo novo possuía fibras de para-aramida aumentando consideravelmente a resistência a chamas e altas temperaturas; característica essa que se provou muito útil  há alguns dias quando quase fui engolida pelas chamas... Contudo, aparentemente, outro de meus muitos colegas de farda não houvera tido a mesma sorte.  

 

Por um instante observei os sinais de desgaste encontrados na cor opaca de sua vestimenta e desejei em vão que pudesse trazê-lo um pouco de paz. No entanto, não possuía comigo qualquer arma de fogo ou branca, passei a depender excessivamente do uso estratégico de molotov's assim que descobri o medo “deles” pelo fogo.  

— Medo esse que passei a compartilhar com “eles” depois de... Não. Esqueça isso... — Limpei a mente com um balançar de cabeça logo quando notei meu toque inconsciente no curativo do braço esquerdo, era preciso parar antes que meus pensamentos ficassem turvos demais. Ceder a ilusória neblina daquela perturbadora memoria me custaria um preço demasiadamente caro.  

Assumi a postura de continência como fora me ensinado na brigada e, com o que poderia ser facilmente confundido a uma atitude de criança, demonstrei meu respeito ao homem que um dia residiu naquele corpo.

Após isso, fechei a porta atrás de mim, ciente de que jamais poderia trazer qualquer resquício de paz ou salvação aquela vítima, entretanto, poderia honrar o seu sacrifício e outros muitos, ao terminar minha missão.  

Alinhei os pensamentos ao meu objetivo e parti em direção ao corredor leste esperando encontrar um acesso ao estacionamento lateral do prédio. Tive uma breve visão do lugar enquanto dava a volta no exterior do edifício, o bastante para conseguir enxergar o topo do posto de segurança montado ali.

Existiam muitos como aquele, espalhados pela cidade, uma tentativa de auxiliar sobreviventes que terminou por facilitar a contaminação e, que agora, não era nada além de outra fração que compunha o cenário atual. Mas, se o que eu busco realmente estiver em algum lugar do hospital, sem dúvidas, estará lá.  

Assim, desci o corredor norte, sentindo meus cabelos curtos grudando em minha pele devido ao suor da caminhada, o ar me parecera cem vezes mais pesado do lado de dentro do hospital. Em passos largos e apresados me movi enquanto a mochila em minhas costas balançava levemente; carregava comigo material suficiente para uns dois ou três molotov's — torcia para não ter de usá-los — além de água, uma pequena quantia de ração militar e outras poucas ferramentas que julguei necessárias para cumprir minha tarefa.  

Já estava quase alcançando a curva do corredor quando tive a sensação de ter visto uma pequena movimentação na porta a esquerda, poucos passos à frente, e de maneira instintiva me agachei em busca de cobertura atrás de uma das muitas macas no caminho.

Em uma observação rasa de alguns breves segundos analisei a cena. Um extenso rastro de sangue se estendia até a porta dupla escura, cuja pequena placa de metal indicava ser o necrotério. Mantive minha posição por um momento mais, uma estranha sensação corria meu corpo, como se houvesse algo me espreitando naquele ambiente, como se o lugar estivesse sob total domínio da morte, ou, ao menos, era o que minha intuição dizia.  

Segui em passos mais cautelosos após isso, fazendo a curva entrando no corredor leste, onde aquele pressentimento não diminuiu uma única fração. Ademais, não havia nada de novo no caminho.

Cheguei a passar por um banheiro fechado onde a sua frente se encontrava uma espessa massa escura, contudo, sem sinal de qualquer um “deles”, fato esse que passou a me deixar mais esperançosa quanto a resolução que meu dia teria. Infelizmente, essa ideia não se manteve muito adiante e encontrou seu fim assim que me aproximei do que deveria ser meu acesso à área externa.

— Fechado. Um pouco de obstaculo para variar. — Sim, fechado com outra barragem improvisada. Macas, tabuas, cilindros e restos de barricadas, todos unidos contra mim em uma muralha desorganizada e abstrata.  

Tentei empurrar o grande emaranhado de coisas algumas vezes, mantendo certo cuidado com qualquer barulho desnecessário. Não senti movimento algum da parte de meu empecilho, exceto pela pequena fresta que se formou quando uma das macas pendeu ligeiramente para o lado e permitiu que o sol atravessasse aquela pequena abertura.  

Sem pensar duas vezes, usei a fissura para projetar minha visão pelo grande pátio. Lá estava o posto de segurança, em melhor estado do que imaginara e sem a presença de um único visitante indesejado.

— Certo, basta encontrar uma maneira de chegar lá e... — Me interrompi no momento em que meus olhos passaram pelo que parecia ser um conveniente milagre. Existia um buraco na parede norte do estacionamento, parecendo ter um pouco mais de espaço do que eu precisaria para passar, teria provavelmente de me agachar para atravessá-lo, porém, desde que não houvesse um “deles” por perto eu estaria livre de riscos.

Minhas jovens feições teriam se iluminado naquele momento, não fosse pela aterrorizante sensação que me sobreveio ao ouvir o alto e perturbador grito vindo de algum lugar acima.  

 

Por algum motivo desconhecido, meu corpo agiu de maneira contrária as minhas intenções e, quando me dei conta, já havia atravessado a primeira porta que encontrara. Ofegante e ainda confusa com minhas próprias ações, encostei minhas costas na porta com força, buscando me proteger de um perigo desconhecido para mim mesma.

Foi quando encontrei minha resposta, de forma súbita e brutal. O motivo pelo qual minha intuição fez com que meu inconsciente escolhe a fuga e não o confronto. Bastou um rápido olhar para o lado e o leve movimento de meus olhos passaram por todos os produtos e materiais de limpeza da pequena sala, fitando a figura a minha direita. 

— Mas o quê?.. — Engoli minhas palavras a seco. 

Um garoto, possivelmente da mesma idade na qual meu interesse pelos bombeiros desabrochou, quando tomei a decisão que mudaria minha vida. O jovem rapaz se encontrava pendurado por uma corda que contornava seu pescoço, como uma atroz serpente esmaga e sufoca sua presa.  Por algum motivo desconhecido e incomodo a cena não me abalou. Pensando melhor, poucas coisas me abalavam agora.

Com a rápida confirmação de ter a porta trancada, passei a investigar o corpo, sentindo minha intuição tinir uma vez mais, lançando sobre mim um grande incomodo; parte pelo real perigo que se encontrava ali, o qual eu ainda nem sequer notara e, a outra parte, pela insensibilidade fria adquirida por mim a pouco.

Sem muito tempo para absorver o acontecido revirei o pesado corpo pendurado como um pedaço de carne em um açougue e encontrei finalmente o que me fizesse dar dois passos para trás em perturbação.

Ainda existia algo vivo dentro de mim. Algo que agora se entregava para um medo confuso devido aquela estranha e incompreensível visão. Ao virar o cadáver pude notar o machucado em seu lado esquerdo, o claro resultado de uma bala. Passei a analisar a parte traseira do crânio e conclui minha observação.

Uma bala entrará pela têmpora esquerda e sairá por trás da cabeça; claro, levando em consideração o estado atual das coisas, aquela não era uma maneira ruim de partir, poderia se conseguir finais bem piores que aquele.  

Entretanto, o incomodo perdurou mesmo após a resolução da minha análise, o tinir não cessou. Algo não estava certo.  

— Mas, se ele realmente se enforcou, então por que atiraram nele? Talvez seria para impedir que se torne um “deles”? Mas não tenho certeza... o corpo não parece estar infectado e, se fosse esse o caso, e se a principal causa da morte foi o tiro, então por que o pendurariam aí?  

Bang!! — Soou alto e claro mesmo que a acústica da sala tentasse abafar o som. Logo, minha mente conectou as evidências em uma irregular linha de raciocínio.  

Seja lá quem fosse o atirador que ceifou a vida do pobre jovem, ou quaisquer que sejam seus motivos, algo dentro de mim dizia em um tom alto e claro, naquele exato momento, ele havia feito outra vítima.  



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