Volume 1

Capítulo 5: O Reencontro

O restante da semana veio cheio de decisões que aborreceram Symon. O Governo decidiu não divulgar informações sobre a Torre de Babel quando foram questionados pelo Departamento de Assassinatos Mágicos, mas revogou a decisão nos dias seguintes por causa da pressão dos funcionários e de desenhistas mais influentes. Apesar disso, a lista das relíquias secretas da Torre vai atrasar. “Estão pensando se realmente devem fazer isso” comentou Symon diversas vezes, furioso.

Valentim sentava-se no banco de uma praça, sob a luz da lua. Estava com uma aparência péssima — a semana de trabalho intenso o consumiu como nunca havia antes. Estava com olheiras, cabelo desajeitado e com uma barba rasa malfeita (se desconcentrou quando desenhou o símbolo para se barbear).

Mesmo sendo noite, a praça estava cheia de gente — principalmente pessoas de idade fazendo aqueles “exercícios estranhos”. Havia também crianças e vendedores de coisas aleatórias. O ruivo não fazia ideia de que vendiam sapatos em praças públicas.

Valentim enfiou as mãos nos bolsos e tirou um maço de cigarro e um isqueiro, porém, quando virou seu rosto para observar o outro lado da praça, viu Loreley se aproximando. A garota parecia outra pessoa: sua franja chegava até a metade dos olhos, estes que não pareciam mais desleixados, estavam estranhamente cheios de vida. Claramente se maquiara, o delineado preto a deixava mais atraente, assim como sua jaqueta de couro.

— Você está horrível — disse Loreley de pé na frente de Valentim, colocando a mão na cintura.

— Você não — respondeu o homem, guardando o maço e o isqueiro. — Totalmente diferente de quando invadiu a minha casa.

— Considere isso um... encontro, que tal? 

Valentim não respondeu, apenas a encarou com uma expressão de “cale essa boca”.

— Vamos lá.

Loreley puxou o ruivo, tirando-o do assento e enrolou seu braço entre o dele. Valentim sentiu um estranho desconforto quando começaram a andar.

— Assim não levantamos suspeitas — disse a garota, sorrindo e aproximando-se ainda mais dele.

— Eu mereço... — bufou ele — E pra onde vamos?

— Para o meu carro. Vou levar você até lá. 

Os dois receberam vários olhares enquanto atravessavam a praça. Um deles quase apavorou Valentim, quando pensara ver Clinton de canto de olho, mas se confundiu com um homem apenas parecido.

O carro de Loreley estava estacionado na frente da praça, um veículo da mesma cor de seus cabelos.

— E aí, o que achou da máquina? — disse ela, apoiando-se no capô.

— Última geração — respondeu ele. — Pelo visto o Governo realmente paga bem.

Valentim foi se aproximando da porta do lado do motorista para então abri-la, mas foi puxado pela parte de trás da camisa.

— Ei, ei. O que você pensa que tá fazendo? — Loreley parecia furiosa.

Ele ficou em silêncio, lançando olhares para o banco do motorista e para ela.

A garota suspirou fortemente, acenou a cabeça em negação, abriu a porta e sentou-se no banco do motorista. Depois de perceber, Valentim deu a volta e entrou pela outra porta. Quando acomodados, Loreley deu partida.

O ronco do motor fez o homem arregalar os olhos, coisa que Loreley notou.

— Novinho em folha — disse ela. — Deve ser um dos carros mais potentes de noventa e nove.

— E agora, pra onde vamos? — perguntou Valentim quando o carro começou a se mover.

— Eu preferiria que evitássemos conversas — disse ela enquanto fazia uma curva. — Me distraio muito fácil.

Valentim não voltou a abrir a boca, passou o resto da viagem pensando no carro enquanto focava-se em observar a janela.

Os movimentos de Loreley no volante eram graciosos — mesmo que a direção claramente fosse hidráulica, ele não podia negar que a garota tinha muitos anos de experiência. Dez minutos depois, o carro estacionou em um local escuro e quieto.

— Cá estamos — disse ela, retirando o cinto. 

Os dois saíram do carro, estavam em uma região separada da cidade, a estrada de terra era muito bem-feita, sinal de que poucos carros passavam por este local. Na frente do carro, havia um grande galpão abandonado e despedaçado. Partes de seu telhado estavam faltando e estava muito sujo. Cercado por árvores, o local parecia um filme de terror.

— Não vá me dizer que ficou com medo — perguntou Loreley, vendo a expressão no rosto de Valentim.

— Imagino que seja um símbolo de disfarce.

— Caramba! — Ela pareceu desapontada. — Realmente não dá pra esconder nada de você, sr. Detetive Sênior.

Loreley desenhou um símbolo demorado, azul-claro. Num piscar de olhos, a visão do galpão mudou irrealmente: parecia novinho em folha. 

— Vamos nos apressar — Loreley foi se aproximando da construção —, se alguém ver isso, estamos ferrados.

Loreley abriu o portão com um símbolo, quando Valentim passou, ela fez o galpão voltar a ter a aparência de morte, e fechou a entrada.

O interior estava escuro, e havia enormes estantes que chegavam a arranhar o teto. Havia caixotes, caixas de papelão, embalagens, tralha e lixo empilhado entre elas. A quantidade de estantes as faziam agir como paredes e corredores. Apesar dos materiais nelas, o chão de concreto estava limpo e liso.

— Como você achou esse lugar? — perguntou Valentim enquanto seguia Loreley.

— Não fui eu — respondeu ela, bruscamente.

Andando, eles chegaram em um ponto onde era possível observar uma forte luz branca. Ambos comprimiram os olhos e continuaram se aproximando. Quando sua vista se acostumou, Valentim viu um homem de costas, sentado numa cadeira de escritório, vidrado em um computador que estava numa mesa à sua frente.

A garota apertou o passo, e o homem que estava sentado se levantou. Quando ambos se aproximaram, para acabar com o entendimento de Valentim sobre o que estava acontecendo, se abraçaram fortemente e seguiram com um beijo.

O ruivo ficou plantado sem mover um músculo. O beijo durou uma eternidade na cabeça dele, e não sabia exatamente o que fazer. Pensou em chamar a atenção, bater palmas e até xingar Loreley (que foi o que mais cogitou fazer). Porém, não agiu, e, quando terminaram, Valentim reconheceu o homem que a beijou.

Moreno avermelhado, um bigode liso em espiral e uma cicatriz que cortava seu olho direito. Sua aparência lembrava uma rocha, e era menor que Valentim.

— Este é... — disse Loreley, sem completar quando viu que o ruivo tinha uma feição de “estou de saco cheio”.

— Mármore — disse Valentim. — Essa cicatriz é única no mundo.

— Viu? — disse o moreno, apontando para seu bigode. — Cumpri minha promessa. Até que não ficou tão ruim.

— Ficou péssimo — caçoou o ruivo. — Loreley, você não me disse que teríamos uma terceira pessoa.

— Deixei pro último momento, sei que você gosta de surpresas.

— Então — Valentim ficou apontando para os dois —, podem me dizer... é...

— Nós nos casamos dois anos atrás — disse ela. — Depois que o grupo se separou, nos reencontramos por aí e... Ah, você sabe como é.

Valentim não sabia. A última vez que tinha sentido algo por alguém foi há muitos anos, e foi por Loreley quando ainda era a Caeruleum. Ele sentiu algo estranho — como se uma mão invisível acariciasse sua barriga — quando ela disse que os dois eram casados. Reprimindo alguns sentimentos, ele disse:

— Meus parabéns. — Ele apertou a mão do velho amigo. — Mas não vejo aliança na mão dela.

— Ela perdeu — disse Mármore — Não mudou nada nos anos que se passaram.

— Só se tornou extremamente perigosa — disse Valentim. — Agora, pode me explicar por que está aqui, Mármore?

— Ela sempre foi obcecada pelo tal Necronomicon, e acho que é dever de um marido ajudar sua mulher no que ele conseguir.

— Muito nobre — disse Valentim. — De todas as pessoas do mundo para me chantagear, tinha que ser logo ela.

— Que tal os dois pararem de conversa fiada e falarmos sobre por que estamos aqui? — atirou Loreley.

O lugar ficou em silêncio por alguns segundos.

— O Departamento já sabe que queremos as relíquias da torre — comentou o ruivo.

— O quê?! — Loreley se espantou. — Se você tivesse investigado cuidadosamente ao invés de sair matando seria muito mais fácil, seu incompetente!

— Não há informações sobre o Medalhão. Já vasculhei tudo que pude. Só encontrei histórias infantis e contos sobre a lenda.

Loreley soltou grunhidos indefinidos e calou-se.

— Isso certamente é um problema — disse Mármore. — Qual o próximo passo do Departamento?

Valentim disse sobre a demora da lista das relíquias secretas.

— E o que vão fazer com a lista?

— Vamos investigar as figuras que têm alguma relação com as relíquias ou que tenham algum motivo para roubá-las.

— Então uma hora ou outra vão chegar em você — disse Loreley. — Você é o herdeiro do Medalhão.

— Quem diria que o nosso Faísca é o descendente de Alícia. Que honra — comentou Mármore.

— Sim, mas eles não têm nada que possam me incriminar. 

— Eles têm sim. — Loreley mostrou a palma da mão. — Se eu desejar, o registro da minha névoa mágica e o que aconteceu nela vai direto pra eles.

Valentim revirou os olhos em desgosto.

— Enfim, nós precisamos dar um jeito de entrar na Torre e conseguir os itens — disse Mármore. — Temos que descobrir a estrutura dela de alguma maneira.

— Nisso eu consigo dar um jeito — disse a garota. — Posso tentar descobrir alguém que tenha conhecimento ou alguma relação com a Torre.

— E se você descobrir, o que pretende fazer com essa pessoa? — questionou Valentim.

— Não vou matá-la, óbvio! — gritou Loreley. — Só esconder a minha identidade de alguma maneira e extrair essa informação dele. Depois, usar um símbolo de esquecimento.

— Você sabe que se vasculharem a memória dele vão descobrir isso, não sabe? — disse Valentim. — Mesmo com o esquecimento mais forte, a memória apenas fica em partes. Se a construírem novamente, você estará em apuros.

— É pra isso que vou esconder meu rosto!

— Você não faz ideia de como detetives trabalham... — Valentim colocou a mão na testa. — Certo. Faça isso. Se te descobrirem, espero que você tenha uma vida boa atrás das grades.

— É o único jeito que consigo pensar — disse Mármore. — Se você conseguir assumir o risco... Sei que você consegue, Loreley.

— Está decidido então. — Ela cruzou os braços. — Até semana que vem eu acho que consigo.

— Então semana que vem encontro vocês aqui — disse Valentim, já indo em direção a saída. — Obrigado pela carona, Loreley.

— Você já vai embora? — perguntou Mármore.

— Não há mais nada para discutirmos. Se ficarmos juntos por muito tempo, sinto que algo pode dar errado. Sábado no mesmo horário.

O ruivo então foi embora, ele sentia um estranho desconforto ficando ali, mas não sabia o porquê. Talvez porque reencontrar os dois depois de tantos anos mexeu com ele, ou porque, por um momento, se viu no lugar de seu antigo amigo?

Valentim soltou uma risada enquanto abria a porta do galpão. Achou aquilo tudo muito, muito patético. 



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