Volume 1

Capítulo 6: O Musical

A noite acabara de iniciar, e o céu limpo brilhava com a lua. Era a segunda vez que Valentim ia de passageiro na semana, primeiro com Loreley, agora com seu parceiro Symon. O carro de seu parceiro era bem mais modesto que o dela, Loreley sempre gostou de ostentar. 

Os bancos do carro de Loreley eram couro puro, bege-escuro. Os de Symon eram bancos comuns de um tecido barato que Valentim não fazia ideia do nome. Mesmo assim, era um veículo confortável.

— Pensei que estávamos indo ver uma simples apresentação, não um evento social — comentou Valentim, caçoando do traje de Symon. Ele vestia um terno cinza-escuro.

— É uma apresentação muitíssimo importante. É a primeira vez de Juliette no palco!

Symon manobrou e parou no estacionamento do teatro da cidade. Ao baterem a porta, viram que várias pessoas — em sua maioria adultos, pai das crianças que iam apresentar — estavam saindo de seus veículos e caminhando até o prédio principal. Ninguém vestia roupas formais.

Entrando no salão de entrada, notaram que o local era muito sofisticado. Um grande saguão com pilares brancos, e o teto alto abobadado, lembrando o casarão de Valentim. Symon ficou tão encantado com o local que apenas o ruivo notou um homem se aproximando. 

— Com licença, detetives Symon e Valentim, estou correto? — disse o homem. Ele era baixo, um pouco careca, uns dez anos mais velho que Valentim. Ao lado dele, uma menina segurava sua mão.

— Ah. — Symon respondeu, sem tirar os olhos da decoração do saguão do teatro — Sim! Podemos ajudá-lo?

— Se for algo relacionado a algum caso, fale na delegacia mágica, não conosco — comentou duramente Valentim.

— Ah, não! Não é nada disso. Meu nome é Robert Strings, sou vice-presidente do Governo. É um prazer conhecê-los. Não imaginei que estariam em um lugar como esse.

Mas é claro, Robert Strings. Valentim não tinha notado o rosto do sujeito, apenas viu que era baixo e um tanto robusto. Já o viu em jornais incontáveis momentos, mas foi a primeira vez que o viu pessoalmente.

— Sr. Strings. — Valentim o cumprimentou.

Os dois apertaram as mãos, e Symon fez o mesmo, surpreso. Pelo visto também não tinha notado que se tratava de Strings.

— Suponho que vieram assistir a apresentação? — questionou o vice-presidente.

— Claro! — respondeu Symon, alegremente. — Minha filha Juliette é a estrela principal.

— Magnífico — disse Strings. — Minha filha Louise também vai fazer parte da apresentação. Consegui arranjar tempo para assistí-la.

Valentim tinha esquecido que a criança estava ali. Strings puxou-a, e ela veio para frente em passos graciosos.

Louise tinha cabelo curto, muito liso, cor de maçã. Uma franja escondia seus olhos. Claramente estava maquiada, e o batom vermelho ficava ótimo em seus lábios. Era alta para sua idade, e mais esguia que Juliette.

E assim começou uma conversa de pai para pai. Valentim ficou escutando diversas coisas sobre como é divertido ter uma filha, tenso em alguns momentos e outras coisas que o deixaram enjoado. Minutos e minutos se passaram com a conversa.

— Ah, vamos até o auditório, se não nos atrasaremos — disse Strings. Ele deixou sua filha nos bastidores e seguiu com os detetives até o auditório.

Lá, Symon parecia espantado novamente: era um salão de orquestra, tendo até um segundo piso com assentos, todos muito chiques e confortáveis. 

— Temos assentos diferentes, não é mesmo? Bom, vamos respeitá-los. Meu assento está mais à frente. Vamos nos divertir bastante com a apresentação — disse Strings, e se despediu dos dois, indo à sua poltrona.

Valentim e Symon acomodaram-se em seus assentos. Ficavam bem no centro, com uma visão esplêndida do palco. 

— Sujeito engraçado, esse tal Strings. É uma figura bem importante do Governo, me surpreende o fato dele ter tempo pra assistir a filha — disse Symon.

Valentim não comentou, apenas jogou suas costas na poltrona. Um tempo se passou, e notou que Symon tinha um olhar franzido. Antes que pudesse dizer algo, o acinzentado começou:

— Espero que ocorra tudo sem problemas. Juliette... ela tem tido um problema estranho ultimamente. Eu não queria ter deixado que ela apresentasse, mas ela insistiu e insistiu tanto...

— O que tem ela, Pombo?

— Tem dormido de repente! Sabe, uma hora ela estava lá cantando na minha frente e no segundo seguinte... simplesmente desabou no chão, dormindo que nem um bebê.

Valentim questionou se realmente era prudente deixá-la apresentar nessas circunstâncias, comentário que fez Symon ficar quieto e um tanto relutante por uns momentos.

— Esse é o momento mais importante da vida dela, eu não podia simplesmente proibi-la.

Momentos depois, as luzes se enfraqueceram e gradualmente os cochichos da plateia cessaram. Para o espanto de ambos, alguém andava a passos fortes na escada.

— Ah, Simon, Valentim! Tive uma notícia de última hora, é uma emergência, tenho que ir embora. Pedi a um funcionário para que viesse buscar Louise. Se possível, podem mandar minhas sinceras desculpas a ela? Até logo!

E saiu dali depressa. Quando foram comentar, uma iluminação repentina os interrompeu. Ela atravessou o auditório, parando no centro do palco. Lá estava Juliette, sendo iluminada pelo holofote.

Estava idêntica ao dia que acompanhou seu pai no trabalho, por exceção de um belo laço dourado em seus cabelos. Segurando um microfone com as duas mãos, começou a cantar uma melodia suave de olhos fechados.

— A mãe dela adorava essa obra. Ficava horas em casa só ouvindo ela. Ficaria extremamente orgulhosa de saber que a sua filha pegou o papel principal.

As palavras de Symon fizeram Valentim mergulhar nos pensamentos. Seu parceiro nunca falou muito sobre sua falecida esposa; sabe que ela também era francesa e extremamente culta quando se tratava de símbolos.

De pouco em pouco, mais crianças foram surgindo no palco. Todas tinham de oito a dez anos, e Juliette era a única que não irritava os tímpanos de Valentim, era muito suave e tranquilo de ouvi-la, e desconfortável quando outro tomava o microfone. Louise não teve nenhuma participação especial, era apenas mais uma que cantava e dançava.

O musical se estendeu por cerca de dez minutos, e o final foi quase idêntico ao início, com apenas Juliette no palco cantando uma melodia lenta até se calar, e para o desespero de Symon, desabar no chão.

Ocorreu tudo muito rápido. As costas de Juliette foram ao chão, e Valentim enxergou uma iluminação suspeita que vinha de cima, no segundo piso. A luz logo se tornou um símbolo e disparou em sua direção. Ágil, o ruivo se levantou e mudou a trajetória do projétil, fazendo-o subir diagonalmente, atingindo o teto. Uma explosão aconteceu.

— Pombo, fique atento! Acabamos de ser alvejados!

O local que o símbolo acertou agora era um grande buraco, os raios de luz invadiram a sala, ao mesmo tempo que estouraram os gritos das pessoas desesperadas. Os escombros do teto acertaram uma das fileiras da frente, e agora o caminho para saída estava congestionado, com uma multidão correndo. Juliette continuava imóvel no palco, ainda com o holofote a iluminando. Havia apenas ela lá.

Valentim olhava loucamente o local de origem do símbolo, procurando quem poderia tê-lo lançado. A multidão atrapalhava muito, e ele começou a suar. Virou-se para Symon, e o acinzentado não estava mais ali, ele disparou até o palco pulando os assentos, mas a plateia desesperada o atrapalhava de maneira descomunal. 

Uma figura subiu correndo até o palco, o que fez Symon parar seu avanço. A figura claramente se tratava de uma pessoa, mas sua identidade estava preservada graças a um manto preto com estranhas formas geométricas estampadas nele. Symon notou as intenções do ser, e lançou um símbolo no palco, que raspou no manto negro do encapuzado. Instantes depois, a figura estava fazendo Juliette de refém, segurando-a na sua frente, enquanto encarava os detetives. O lugar onde deveria estar sua cabeça não tinha nada além de pura escuridão. Um símbolo de disfarce dos podres., pensou o ruivo.

A grande maioria do público conseguiu deixar o salão, ficando apenas Symon, Valentim e o suspeito do palco segurando Juliette.

Os dois na plateia esperavam algum tipo de contato, mas ele nunca aconteceu. Ficaram se encarando por um interminável minuto. Periodicamente, a figura dava pequenos passos para trás, aproximando-se da parede do palco. Valentim suspirou, e o dedo de Symon começou a brilhar em um cinza claro.

O ruivo notou as intenções de seu parceiro, mas era muito arriscado, afinal, era sua filha que corria o risco de ser atingida por um símbolo.

Apodynamono! — gritou Symon ao fazer o símbolo numa velocidade incrível.

Ele arriscou?! Se isso acertar o corpo de uma criança enfraquecida, pode levá-la à morte!, pensou Valentim, acompanhando o projétil com os olhos e mordendo os dentes.

O encapuzado segurou Juliette com mais firmeza, porém, o símbolo passou pela sua direita, e imediatamente assumiu que ele havia errado. Symon, no entanto, continuou sua ofensiva: moveu o dedo ainda brilhante para a direita e então, para trás. O símbolo refez sua trajetória, e acertou em cheio nas costas do sequestrador, fazendo-o ficar de joelhos e soltar a criança.

Proselkysei! — ordenou Valentim, e o símbolo voou até atingir Juliette, e ela começou a flutuar majestosamente, ainda desacordada, até o ruivo. Ele a pegou com os braços.

— Agora... temos que descobrir quem é o desgraçado! — gritou Symon, pulando os assentos o mais rápido que pôde.

A figura, no entanto, lentamente e cambaleando, se levantou. Esse é o preço por redirecionar um símbolo. Ele perde grande parte de seu poder., pensou Valentim, enquanto observava o avanço de Symon. A pessoa no palco começou a murmurar algo e a desenhar um grande símbolo roxo à sua frente.

— Não vai criar um portal não, desgraçado! Apodynamono! — Symon lançou um mais um símbolo, porém, esse voou numa velocidade extremamente baixa, chegando a ser patético. 

O descontrole emocional prejudicou demais o ataque feito pelo acinzentado. Num feixe de luz roxa muito clara, o encapuzado desapareceu dali.

— DROGA! — gritou Symon, chutando o assento da frente com a sola do sapato.

— Pombo, temos que sair daqui. Se fizermos mais algo em um local público como esse, pode dar problema com o Governo.

— E como vamos até o estacionamento? Portal?

— Não posso. Segurando Juliette, ultrapasso o limite de peso. A chance de nos ferirmos é alta demais.

— Então vamos dar a volta. — Symon correu até o palco, e ficou cara a cara com a parede dos fundos. — Aqui atrás deve ter um beco. Vamos atravessá-la.

Enquanto Valentim se encaminhava até ele, Symon desenhou um grande símbolo que fez uma pequena parte da parede parecer estranha, como se estivesse molenga. Nos bastidores ao lado, ele viu algumas crianças que haviam se escondido espiando o palco. O acinzentado fez um gesto de “não contem para ninguém”, e atravessou a parede como se ela não estivesse ali. Valentim andou também olhando para as crianças, e viu Louise escondida junto com elas.

— Seu pai mandou desculpas.

 E atravessou. Agora estavam num beco estreito, com concreto dos dois lados. O beco conectava com duas ruas, uma em cada extremidade. 

— Eu vou imediatamente prestar queixa. Quem e por que está atrás da minha filha?! Ele até sabia que ela ia apresentar hoje. Graças a Deus ele fez um portal, assim dá pra descobrir pra onde ele foi, os rastros vão ficar por algum tempo. — Symon tinha passos fortes, furiosos. —  Por sinal, Valentim... você se importa se eu te pedir um favor? Se ele me encontrou uma vez, vai encontrar de novo. Pode ficar com Juliette por algum tempo? Nunca ninguém irá imaginar que ela está contigo!

— Não sei, Pombo... não me parece uma boa ideia...

— Por favor, cara! É o único jeito de mantê-la segura.

Chegando no estacionamento, Valentim deixou a adormecida Juliette deitada no banco de trás, e ele sentou no passageiro.

— Certo. Mas o Governo está maluco com esse assunto dos assassinatos. Vai demorar pra eles fazerem algo a respeito — disse Valentim.

— Isso, muito obrigado! Vou levá-los até a sua casa, e vou correndo prestar queixa. Eu vou te informando. — Symon colocou o cinto e ligou o motor, e então, fez uma pausa. — Onde é que você mora mesmo?



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