O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 1: A Garota e A Macieira

As pétalas brancas do lírio-do-vale se sacudiram sob a água de minha regadeira. Eram as últimas flores a serem regadas antes do almoço, segundo minha barriga a qual começou a emitir ruídos faminta. Finos raios de Sol atravessavam o toldo abobadado de tecido claro que cobria algumas flores ao sul do jardim. Era passado meio-dia, porém não fazia tanto calor, assim que decidi retornar pelo caminho principal que serpenteava através dos girassóis antes de subir pela colina das macieiras.

A brisa soprava suave contra meus cabelos, no entanto não me entretive a aproveitá-la. Sabia que dispunha de pouco tempo para almoçar antes dele perceber que não havia aparado os galhos das árvores mais altas. Ele pouco se importava com minhas necessidades básicas. Tentar lhe explicar a importância da comida para um corpo era como tentar ensinar a uma pedra a falar. Suspirei. Fazia apenas alguns dias desde minha chegada mas sabia que certas batalhas não valiam a pena.

Os girassóis projetavam seus rostos escuros para o céu quando passei entre eles. Tentei fazer a mesma coisa mas o brilho do Sol me forçou a fechar os olhos e voltar meu olhar para o horizonte. O peso de duas regadeiras mantinha meus braços pendurados impedindo que protegessem minha visão. Voltei a tentar, entrecerrando as pálpebras desta vez. O disco solar ameaçou cegar minhas pupilas. Desisti. Por que era tão difícil fazer certas coisas? A longa lista de tarefas a serem feitas se arrastava em minha mente.

O chão se elevava baixo os meus pés a medida que me aproximava da colina, os girassóis dando passo a grama esverdeada. Podia sentir o cheiro adocicado das macieiras misturado com a brisa.

Um som grave, parecido com um rugido, ecoou em minha barriga. Andei mais depressa. Sequer reparava nas árvores de diferentes tamanhos ao meu redor, afinal de contas, não ousava comer nenhuma daquelas frutas. Pois por mais vermelhas e suculentas que fossem estavam proibidas; elas e todas as outras plantas do jardim. Ele fora muito insistente enquanto isso.

Por esse motivo me detive quando ouvi uma fruta ser arrancada do galho. O som seco cortou bruscamente o silêncio do lugar. Provinha de alguma árvore a minha direita, no entanto a fruta não tinha chegado ao chão. Sai do caminho em direção as árvores mais próximas. Outro estalo seco, nenhuma fruta ao chão. Levantei o olhar escudrinhando a folhagem ao meu redor. A maioria das macieiras não eram muito mais altas que eu e sua folhagem de pouca espessura permitia que visse através das diferentes árvores com facilidade. Mesmo assim, não consegui distinguir nada fora do comum.

— Ah! — gemeu alguém a minha esquerda.

Continuei a procurar com o olhar, agora entre os galhos das árvores mais altas que tinham cerca de seis vezes meu tamanho. O vermelho da casca das frutas reluzia sob o Sol. Outro gemido abafado, seguido do ruído de uma maçã impactando contra o grama. Procurei pelo chão ao redor, encontrando a fruta rapidamente contrastando contra o verde do lugar. Tinha caído da macieira mais alta do local. Me aproximei, os olhos sempre atentos nos galhos. Outro ruido, desta vez algo mais leve que uma maçã caindo. Engoli saliva.

Uma bota de pelagem clara e salto descansava próxima a fruta no chão. Um ladrão? Ele nunca me disse que algo assim poderia acontecer. O quê deveria fazer? Levantei a vista.

Sobre os galhos mais altos da planta, envolta em um halo de folhas, uma garota de cabelo ruivo estava sentada. Aferrando-se ao tronco principal tentava manter o equilíbrio, enquanto fechava os olhos com força. Vestia um vestido azul repleto de babados que a brisa balançava suavemente. Uma bota de pelagem clara parecia prestes a escorregar de seu único pé calçado.

A confusão percorreu meu rosto. Era a primeira vez que via alguém, além dele, naquele jardim.

— Você é uma ladra? — perguntei à desconhecida. Não estava seguro se essa era a melhor abordagem.

Surpresa, ela abriu os olhos.

— Ah! Quem és?

— Você primeiro — insisti.

— Amélia de Soltán, filha do nobre Enrique de Soltán, futura duquesa do sul — declamou orgulhosa.

— Então não é uma ladra?

— Ouviste o que acabei de dizer?

— Tenho que ter certeza — respondi dando de ombros.

— Acaso possuo rosto de semelhante espécie?

— Não entendi.

— Tenho cara de criminosa!? — espetou impaciente.

— Como é o rosto de uma criminosa?

— Se valoras teu pescoço, ajuda-me a descer! — ordenou, em tom desagradável.

Minha barriga protestou faminta.

— Mal educada — murmurei, disposto a dar meia volta e ir almoçar.

— O quê disse!?

— Se você não responder vou atrás da minha comida...

— Ousas dar-me ordens?

— É ou não?

— Não, não sou — interrompeu ela.

— E o que faz aí em cima? — continuei, reparando na maçã que ela segurava em uma das mãos.

— Uma nobre da minha classe não deve explicações à plebe…

Dei meia volta decidido a continuar meu caminho.

— Espere! Espere! — suplicou a garota em cima da árvore. — Está bem! Briguei com meu noivo e corri para refugiar-me no jardim do castelo. Isso foi logo antes do desjejum, então estava com fome. A única árvore frutífera que temos é esta macieira então pensei em escalá-la para pegar alguma das frutas. Dizem que quanto maior a altura melhor o sabor, mas após subir não soube descer de novo. A empolgação dada pela raiva fez-me esquecer meu temor as alturas…

Me detive, ainda dando as costas à Amélia.

— Este jardim é seu? — murmurei.

— Claro que sim! Por qual motivo haveria de mentir? — Se apressou ela a responder.

Ele sabe disso?

— Ele? Refere-se ao jardineiro? Claro. Por favor, ajude-me a descer e lhe prometo que meu noivo lhe dará uma condecoração. Talvez ganhe até um pedaço de terra!

Aquilo me confundiu ainda mais. De todas formas, deixei as regadeiras no chão e me dispus a ajudar, porém não tive tempo sequer de tocar na macieira.

— Não posso nem deixar você sozinho — bocejou uma voz atrás de mim — Não devia podar árvores do outro lado do jardim?

Os pelos em minha nuca se eriçaram.

— Eu ouvi algo estranho e vim ver o que era — expliquei, ainda disposto a subir na planta — Ela parece precisar de ajuda…

— Deixa comigo! — anunciou a criança alegremente — Pode voltar ao trabalho.

— Mas…

— Não se preocupa — insistiu ele — É só pedir.

Olhei para o menino detrás de mim. Po afundava suas mãos nos bolsos de seus shorts marinheiros enquanto sorria para a árvore. Seus olhos, de um vermelho intenso, pareciam arder em seu rosto pálido de feições pequenas e sobrancelhas arqueadas. O cabelo, escuro como a noite, destacava-se contra a roupa de marinheiro branca que a criança sempre vestia.

— Senhor Macieira, pode por favor descer a moça? — pediu Po.

Um estalar de madeira inundou o jardim. Cuidadosamente a árvore a nossa frente se curvou. Como uma enorme mão vegetal, abriu seus galhos revelando a garota ruiva que tremia abraçada a seu tronco. O movimento foi tão delicado que nem sequer uma folha caiu no processo. Uma enorme rede galhos estava deitada agora sobre nós próxima ao chão. Entre a folhagem vi Po estender a mão para Amélia.

— Me permite? — sugeriu o menino, levantando a mão em direção a garota.

Seus dedos longos se fecharam com força ao redor da mão de Po. Tremiam. E então, a garota pulou de volta à grama. Em um curioso e hábil retorcer de galhos a macieira se reergueu voltando a sua posição anterior.

— Obrigado pela ajuda — agradeceu a criança, ainda sorridente.

Silêncio.

Meu corpo estava paralisado sem entender muito bem o que tinha acabado de ocorrer. Algo dentro de mim dizia que plantas não deveriam poder fazer isso. O soluçar de Amélia borbulhou a minha esquerda. A garota antes arrogante agora abraçava Po emocionada.

— Não precisa agradecer — começou o menino separando-se de Amélia — Eu peço desculpas pelo atraso. Preparei algo para comer. Vamos?

Amélia concordou inclinando levemente a cabeça.

— Solano, pega o calçado da moça — ordenou Po.

Procurei o calçado no chão, o encontrando rapidamente. No entanto, a maçã que tinha caído alguns instantes atrás...já não estava lá.

— Solano! — repetiu Po.

Ainda pensativo entreguei a bota à Amélia. Suas mãos a tomaram de mim em um gesto violento; a garota afundou a perna na bota e espanou o pó do vestido. Juntos enveredaram em direção ao centro do jardim sem sequer se voltear para me convidar. Minhas tripas se retorceram famintas dentro de mim. Por que era tão difícil fazer certas coisas?



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