O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 2: Regras e Desafios

Terminei de aparar os caquis ao pôr do Sol. O céu alaranjando pairava sobre minha cabeça quando desci da última árvore. Empurrando o carrinho de mão repleto de galhos cortados, me dirigi ao armazém do jardim. Não conseguia deixar de pensar no ocorrido de tarde, na macieira se curvando sozinha para deixar uma desconhecida no chão. O fato da garota afirmar que aquele era seu jardim deixava tudo muito mais confuso. Pois em duas semanas Po não tinha me explicado nada sobre o assunto. Aliás, o quê ele tinha me explicado em todo esse tempo?

Já não soprava brisa alguma no jardim e o silêncio se estendia em todas as direções. O único barulho era o dos pensamentos em minha cabeça. Lembrei do dia que acordei no armazém, deitado em feno esverdeado. Po estava inclinado sobre mim, seus olhos vermelhos fixos em meu rosto. Uma expressão de desdém se desenhava em suas feições.

— Onde estou? — balbuciei, o corpo entumecido.

— No meu jardim — começou a criança — Desde agora você trabalha para mim.

Olhei ao redor, para o enorme armazém de madeira branca polida no qual me encontrava. Instrumentos de jardinagem e algumas maçanetas repousavam dispersos no lugar. Por algum motivo consegui reconhecer todos e cada um dos materiais ali presentes, como deveriam ser utilizados e para quê serviam, porém...

— Quem sou eu? — articulei, após tragar saliva. — Quem é você? Você está sozinho?

Po suspirou cansado.

— Você é você, meu ajudante de agora adiante. E eu sou o dono do jardim, Po.

— Eu tenho nome?

A criança colocou os olhos em branco.

— É...Acho que deve ter… Não lembra?

— Não consigo lembrar de nada. — Me incorporei, cobrindo a testa com a mão. Po deu um passo atrás separando-se de mim — Parece que só tenho jardinagem na cabeça. Nomes de plantas, instrumentos, adubo…

Uma faísca de satisfação atravessou o olhar de Po.

— Então...Ajudante. Seu nome é Ajudante.

— Isso não é um nome.

— Achava que não lembrasse de nada.

— Nada sobre mim.

— Solano, seu nome é Solano — sentenciou Po.

— Como o arbusto?

— Sim, como o arbusto — respondeu aborrecido — Por enquanto isso é tudo que precisa saber. Isso e que há tarefas a serem feitas, todos os dias de agora em diante — apontou para sua cabeça — Você já deve saber quais são. Seria bom se começasse agora — ordenou afundando as mãos nos bolsos de seus shorts marinheiro antes de dar meia volta e sair do armazém.

Aquilo foi tudo o que disse durante os dois primeiros dias.

Todos os dias ao amanhecer, ao meio-dia e após o Sol se pôr um prato de comida aparecia, acompanhado por um copo de água, na porta do armazém. O seu conteúdo variava entre carnes, peixes e verduras, mas sempre me saciava. A não ser claro que não conseguisse terminar as tarefas antes da hora de comer e Po me impedisse ir buscar as refeições.

Como ocorreu no terceiro dia.

Eu não tinha conseguido terminar de regar as peras do oeste do jardim quando minha barriga rugiu furiosamente. Assim como sabia sobre como devia cuidar de cada planta do jardim, sabia que não devia comer ou arrancar nenhuma delas, mas aquele dia a fome foi mais forte que qualquer precaução.

Lembro de estender a mão em direção a uma pera esverdeada, de tocar sua casca macia, de suspirar ao sentir seu aroma… e do gemido seco do meu pulso entre os dedos de Po. A criança deveria trabalhar do outro lado do jardim. Sequer a vi ou ouvi se aproximar.

Abafei um grito.

— Achava que já conhecesse as regras do jardim — murmurou impassível.

Como uma garra, sua mão se fechava ao redor de meu pulso disposta a não me soltar. Seus dedos afundando em minha pele com uma força esmagadora. Tentei puxar o braço de volta mas o menino não soltou. Sua força era maior que a minha.

— Preciso confiar em você — disse apertando meu pulso — E não confio em quem não segue as regras.

Uma agulha de dor atravessou minha pele.

— Eu só estava com fome — articulei.

— É proibido comer ou arrancar qualquer planta deste jardim. Sem importar o motivo.

— Eu…

A pressão da garra aumentou. Uma tonalidade escarlate parecia ter tingido os olhos de Po.

— Não vou mais… Prometo não arrancar ou comer nada… Eu prometo — sabia que não aguentaria caso o menino aumentasse a pressão. Sabia que desmaiaria.

Um sorriso se desenhou nos lábios de Po.

— Que bom — concluiu me soltando — Que bom que entendeu.

E tal como chegou, desapareceu.

Meu pulso se recuperou em menos de um dia, não restando marca alguma na pele. Nunca mais tive interesse algum em arrancar ou comer qualquer planta do jardim. Mas por que havia sido tão rigoroso comigo e não com Amélia? Ela arrancou não somente uma mas duas maçãs. Será porque era mesmo a dona do jardim? Torci a boca pensando enquanto me aproximava da porta do armazém. Algo me dizia que Po não mentia enquanto ser dono do jardim. Então…

Empurrei a porta do armazém com a ponta do carrinho de mão. Fosse qual fosse o motivo, naquele momento, estava cansado demais para pensar sobre. Atravessei o lugar onde os instrumentos de jardinagem e minha cama de feno eram guardados. Após esvaziar o carrinho de mão poderia comer, me deitar no feno e descansar. O dia parecia ter sido mais exaustivo que de costume. Do outro lado do armazém, coberto por placas de madeira, um poço de pedra perfurava o solo a minha frente.

O cheiro azedo da compostagem inundou o armazém enquanto retirei as tábuas. Do fundo do poço a escuridão parecia espreitar o mundo sobre ela, silenciosa. Sendo o mais rápido possível, esvaziei o conteúdo do carrinho de mão no orifício do poço. Era de lá que extraíamos todo o adubo necessário para o jardim.

Corri para a porta do lugar após colocar a última tábua sobre o poço, desejando encher meu peito de ar limpo. Ainda não entendia como aquele cheiro horrendo de compostagem não atravessava aquelas tábuas tão finas. Mesmo assim, era preciso deixar as portas do armazém abertas durante um bom tempo para melhorar o odor do lugar, pois mesmo após duas semanas o cheiro ainda me incomodava.

Sentei próximo das portas e descalcei minhas botas. Meus pés doíam de tanto andar. A minha frente, um campo de amapolas rubras era tingido de dourado pelos últimos raios de Sol do dia delimitado por árvores de caqui de folhagem amarelada. Deslizei meus olhos pela paisagem até distinguir longe, a minha esquerda, a colina das macieiras.

Suspirei.

Uma silhueta de vestido subia a colina decidida a internar-se nas árvores. Entrecerrei os olhos tentando confirmar minhas suspeitas. Dando passos longos, Amélia desaparecia entre as plantas. Parecia apressada, porém antes de sumir atrás da folhagem de uma das árvores mais baixas se deteve, olhando por cima do ombro em minha direção. Enfurecida deu meia volta e, levando a mão ao lado da boca, pareceu dizer algo. Estaria falando comigo? Levantei a mão para acenar. Ela repetiu o que tinha dito, o corpo tremendo de raiva. Sim, estava falando comigo. Porém não ouvi nada, o que agradeci erroneamente a distância. Finalmente, a moça deu meia volta e desapareceu na macieira. Por quê?

— Você chateou mesmo ela — gargalhou Po, sentado ao meu lado.

Com o coração sobressaltado encarei a criança a minha direita.

— Eu não entendo porque você precisa aparecer sempre assim…

— Por isso ela ficou chateada — apontou o dedo em minha direção — Não posso culpar ela.

— Você nunca me disse que havia outras pessoas aqui — respondi, voltando a vista à paisagem.

— E não há.

— Ela é o quê então?

— Uma visitante. Uma visitante que precisava de ajuda — explicou.

— É isso o que você faz? Ajuda pessoas?

— Eu não, o jardim — sentenciou Po me oferecendo um prato repleto de comida. Alguns instantes atrás não parecia ter ele em suas mãos.

O cheiro de carne recém-cozida penetrava em meu nariz. Um garfo prateado espetava a comida a minha frente. Aceitei o prato e me dispus a comer.

— Por que nunca me falou sobre esses visitantes? — perguntei antes da primeira garfada.

— Porque você nunca me perguntou.

— Você não pode fazer perguntas sobre algo que não sabe que existe — respondi afundando o dente na carne.

— Nem responder — disse o garoto — Por que disse visitantes? Achava que só tivesse visto ela.

— Por que você parecia saber como tratar pessoas. — Garfada. — Nunca falou comigo daquele jeito. — Garfada. — Aliás mal fala comigo sobre nada...

— Não sabia que tivesse tanto interesse — murmurou.

— Por que ela foltou para as maxieirax? — Mastigando.

— Não é obvio?

Neguei com a cabeça. Po permaneceu em silêncio observando minha janta. Seus olhos procuravam ávidamente algo em mim. Fosse o que fosse, não encontrou. A criança se levantou, limpando o pó de seus shorts.

— É melhor assim — concluiu, voltando a vista para a paisagem.

— Por quê? — insisti.

— Boa noite, Solano. — Se despediu dirigindo-se ao caminho de mármore branco que serpenteava dos caquis até o armazém.

— Eu posso ajudar! — tentei, sentindo meu pulso estremecer — Pessoas que ajudam, precisam também de ajuda.

— Com certeza você atrapalharia.

— Cuido desse jardim não cuido?

Uma expressão de diversão atravessou o rosto de Po.

— É mesmo? — inquiriu ele.

— Desde que cheguei, cumpri sempre todas minhas obrigações e…

— Tudo bem — declarou ele me encarando, os olhos arqueando-se de diversão — Pode ser divertido.

Sorri.

— Mas com uma condição — começou ele — Se você não aceitar vai ter que deixar essas suas perguntas de lado para sempre. Concorda? — A criança se inclinou em minha direção.

Um calafrio recorreu meu corpo. Engoli saliva, o arrependimento batendo atrás de minhas costelas.

— Tudo bem — respondi finalmente.

Algo não andava bem, sabia disso. Po nunca concordaria tão facilmente.

— Preciso que você consiga algo para mim antes do amanhecer.

— Hoje?

— Sim, hoje. — Sorrindo. — Já desistiu?

— Não.

Deixei o prato vazio no chão. Depois, como se estivessem feitas de plomo pesado, calcei minhas botas.

— Tem uma flor ao norte do jardim — continuou, me oferecendo um copo de água — O próximo visitante vai precisar dela. Ele tem pressa. Se conseguir trazer essa flor vou te deixar receber os visitantes comigo.

— Mas não vai me explicar nada...

— Por que você é tão chato!? — espetou aborrecido — É isso ou nada. Vai continuar?

— Sim, eu…

— O nome da flor é narciso e você vai reconhecer quando ver. Ela fica bem no meio do lago. Eu vou esperar com o visitante na cúpula no centro do jardim. Você já tem tudo o que precisa saber aqui. — Levou o dedo à frente.

E, como se sempre houvesse estado lá, o caminho do armazém ao lago se desenhou em minha memória.

— Eu de você teria pressa — apontou Po — O caminho é mais longo do que parece.

Com o sabor da janta ainda na minha boca e o frio da desconfiança em minha barriga, enveredei apressado em direção ao norte do jardim.



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