O Mestre da Masmorra Brasileira

Autor(a): Eduardo Goétia


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 52: Catástrofe

Meu consciente conseguiu escapar das garras do profundo inconsciente. Os primeiros sons que alcançaram meus sentidos foram os da minha respiração contínua e lenta. Em seguida, a sensação de toque gelado também voltou para minha pele, como se naquele momento eu estivesse nascendo.

Tentando abrir os olhos, lutei contra um peso imenso. Consegui os abrir depois de muita dificuldade, mas era como se nunca tivesse aberto. Pude ver apenas o absoluto nada.

Havia apenas escuridão profunda. 

Tentei mover meu corpo e felizmente consegui. Meus braços e pernas ainda estavam no lugar e até meu rabo balançava de um lado para o outro.

Sentei no chão gelado e arenoso e me recostei num objeto atrás de mim que supunha ser uma pedra por seu toque duro e afiado.

Um pouco melhor, tive tempo para pensar na minha situação. Tempo para lembrar.

As imagens fluíram pela minha cabeça como um filme em stop-motion. Minha vida inteira, a nova vida, passava diante dos meus olhos.

Apareci numa floresta negra e construí um corpo impressionante para mim. Depois criei uma torre que cortava o céu. Criei monstros e criaturas. Ordenei e assassinei.

Viajei com companhia para longe. Enfrentei criaturas e resgatei beldades. Retornei para casa. Salvei crianças e fui convidado para um leilão.

Fui levado até este novo ambiente. O verdadeiro mundo me foi apresentado. Conheci novos seres. Lutei e ganhei — lutei e perdi.

Derrotado, sucumbi. Fui de encontro ao meu outro eu. Ele me convenceu. A fúria me consumiu e outra vez lutei — lutei e ganhei.

Em troca de que? Os seres que apenas poderia descrever como celestiais decidiram brincar com a minha vida. E eu era apenas uma criança indefesa entre eles. Aprisionaram-me contra o chão e me julgaram.

Meus olhos, porém, prestavam apenas atenção para a companheira que me seguiu até o final, lutando para me proteger e chorando por mim.

— Cristal... 

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[Habilidade: Visão Noturna] Adquirida

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Meus olhos coçaram um pouco e eu passei a mão neles. 

Neste momento, o ambiente escuro se iluminou um pouco. A escuridão era a mesma, mas agora eu conseguia enxergar formas e profundidades. Ainda não conseguia ver cores, então era ainda tudo obscuro e assustador.

Ah. Onde eu estou.

Assim como imaginei, era um lugar totalmente estranho. O chão era de terra preta, as paredes como as de uma caverna, escorrendo umidade, e o ar era pesado, parado, difícil de respirar, claustrofóbico.

Eu me encontrava recostado numa das paredes e não numa pedra. Era um corredor vazio e só havia direita ou esquerda para ir.

Ambos os lados sem diferença alguma.

 Além do som da minha respiração e dos meus batimentos cardíacos, nada mais havia naquele espaço.

Com esforço, fiquei de pé. Segurei meu peito com uma mão e escolhi seguir para a direita sem razão alguma. Prossegui para aquele lado lentamente e cambaleante.

Conforme andava, o corredor continuava a parecer infinito. Eu conseguia ver apenas pouco mais de dois metros na minha frente, então aflorei os outros sentidos ao máximo para captar qualquer perigo.

Após mais uma hora de caminhada, cheguei a um ponto diferente.

As paredes da caverna mudavam subitamente um metro na minha frente. Deixavam de ser pedra nunca trabalhada para ser uma parede bem-feita e lisa, também feita de pedra, mas claramente construída por mãos vivas e não pela influencia do ambiente. 

Chegando mais perto, de repente meus olhos foram atacados por uma luz súbita e eu caí no chão, tapando o brilho vindo da frente.

Quando meus olhos se acostumaram com a luz, pude ver o que havia.

Era uma gigantesca porta de metal e madeira. Todo o espaço era maior e havia pedras que se iluminaram com a minha chegada. 

Investigando, notei dois pilares que se estendiam lado a lado entre o portão e esculpidos com caveiras em sofrimento. Acima, havia esculpido na rocha, os rostos de terror e morte. Um pouco abaixo estava escrito.

O Reino dos Mortos é um Caminho sem Retorno

Vendo o portão negro e a mensagem, qualquer pessoa daria um passo atrás e não entraria... 

E eu era como todas essas pessoas. Dei meia-volta e comecei a andar na direção oposta. Antes de tomar um decisão precipitada, decidi ver o que havia do outro lado.

Passado mais algumas horas, descobri que o outro lado da caverna não existia. Era apenas uma parede. Busquei por passagens secretas e até tentei passar pela parede de pedra, mas não tive resultados.

Depois de muita tentativa e fracasso, estava de novo de frente para os portões do Reino dos Mortos.

Suspirei e investiguei tudo, tentando descobrir o que esperava do outro lado. 

Será que realmente morri e este era o purgatório me esperando? 

Baboseira.

Eu já havia morrido antes, então sabia muito bem o que acontecia do outro lado. 

Alguém havia me colocado nessa situação e provavelmente estava brincando comigo, tratando-me como um boneco em um jogo psicótico.

Eu estava sob controle de alguém. A imagem do gigantesco esqueleto louco passava pela minha mente, porém também poderia ser o homem dos olhos de sangue. Qualquer um dos dois parecia louco o suficiente para isso.

Suspirando, mesmo inconformado com a situação, dei um passo para frente. Se fosse para me matar, eles já teriam o feito.

Com toda a minha força, empurrei os portões do Reino da Morte. 

O outro lado tinha um clima diferente. O espaço no meu campo de visão era amplo. O teto era alto e o chão era de pedra lisa, mas, olhando ao redor, havia rochas, pedras, paredes baixas e passagens.

Havia até alguns cristais nas paredes que iluminavam fracamente a região.

— Tem alguém aí? — ressoou minha voz e ecoou mais uma dúzia de vezes pelo lugar escuro.

Era um completo vazio solitário. Segui alguns poucos passos para frente. Meu campo de visão ainda era de alguns poucos metros. Seguindo em frente, cheguei até uma intercessão.

Havia dois caminhos. Um levava para a esquerda e o outro para a direita. Eu precisava escolher de novo.

Ambos os lados eram iguais. Cacei qualquer diferença ou outra coisa que pudesse me apontar o melhor lugar para ir, mas nada me dizia qual era o certo.

Ainda mais, como eu poderia saber? Toda essa minha preparação na verdade adiantava de algo? Cada passo meu deveria estar sendo observado e registrado neste jogo maligno.

Sem ter alternativa, segui outra vez para a direita.

Atravessei o longo corredor que lentamente se ampliava até uma sala ampla e vazia. A única coisa no centro dela era um buraco escuro no teto.

Aproximando-me, senti minhas roupas mais leves e meu cabelo flutuando na direção do buraco. Ele era pequeno, mas grande o suficiente para alguém passar e tinha uma força de sucção atraindo as coisas para ele.

Será uma armadilha?

Investiguei o restante da sala, mas não havia mais nada de relevante. 

Dei meia volta e segui na outra direção. Era perda de tempo tentar adivinhar o que era aquele buraco no teto já que não conseguia ver do outro lado.

Andei um pouco mais, até que uma outra mensagem soou:

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[Habilidade: Visão Noturna] Subiu de Nível

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Meus olhos coçaram de novo. Um pouco menos dessa vez e após algumas piscadas conseguia ver bem melhor no escuro. Os objetos eram mais nítidos e meu campo de visão melhorou um pouco.

Eu não era mais uma toupeira cega; agora eu era um rato cego.

Prossegui para o corredor da esquerda e andei bem menos do que eu achava que andaria. Se continuasse naquele ritmo, provavelmente eu morreria de sede ou fome muito antes de ver tudo.

A caverna e as paredes de pedra natural tornaram-se paredes lisas e bem-feitas outra vez e eu comecei a escutar os sons de algo. Eram como cascos batendo contra o chão.

Andando mais um pouco, o corredor se encerrou e deu lugar para uma sala ampla. Assim que cheguei, algo se ativou.

Cristais de luz azul foram se iluminando de pouco em pouco de ambos os lados do salão até a outra ponta da sala onde havia um buraco na parede. 

Vendo os aspectos daquela sala, a sua disposição e as luzes se acendendo, fiquei boquiaberto. Reconhecia aquele ambiente.

Era idêntico a uma sala de chefe de andar como as que eu havia construído em Vanglória.

Engoli em seco e dei um passo para trás, escutando o som de cascos se aproximando. 

Saindo do buraco na parede do outro lado do salão, primeiro vi os cascos e a pata que tinha os ossos a mostra. Com mais um passo, a cabeça zumbificada de um cavalo saiu. Ele não tinha um dos olhos e a carne caia do corpo apodrecido.

Dando outro passo, escutei o assovio de uma respiração morta. Como se o ar entrasse dentro de um pulmão vazio e apenas escapasse pelos buracos.

O ser enegrecido surgira montado no seu cavalo morto-vivo. Completamente vestido numa armadura negra com afiadas lâminas ao redor. Usava uma espada de cor obsidia numa das mãos e era tão longa que arrastava no chão, soando os gritos de medo do arranhar.

Seu capacete deixava revelar o par de olhos vermelhos brilhantes que me encaravam profundamente e havia um par de chifres de carneiro feitos de metal subindo acima do capacete.

Automaticamente ativei minha habilidade, já sabendo do que se tratava aquele monstro de contos cavalheirescos de terror. 

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Habilidade Olhos da Ambição] Ativada

A Ambição do Usuário é menor que a do alvo

É possível ver suas informações, porém com muitas limitações

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[Informações]

Nome: Sem Nome

Raça: Cavaleiro da Morte | Nível ???/???

Raridade: Lendário | Grau: 7

Emblema: Morto-vivo | Morte | Nobre

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A clássica vertigem me assombrou, embora eu não pudesse me dar o privilegio de passar por ela suavemente. Não tinha tempo para normalizar minha visão. Virei e, com o restante da minha força, corri. 

Escutei o som dos cascos do cavalo se intensificarem.

Um cavaleiro da morte era como um caçador selvagem no topo da pirâmide alimentar. Estava no meu top três monstros que nunca gostaria de encarar.

 Eram extremamente capazes em combate individual, apesar de terem o costume de andar em grupos, como se fossem realmente uma cavalaria.

Sozinho, um cavaleiro da morte poderia confrontar e derrotar uma fortaleza lotada de soldados bem treinados. Eram fisicamente fortes, tinham reflexos brutais, tinham alto Q.I. de combate, capacidade de caça, resistência infinita e tantos outras capacidades que seria impossível listar. Os soldados perfeitos, diriam alguns.

Além de tudo, seus corpos exalavam e expeliam a energia da morte, e, como uma infecção, transformavam os inimigos caídos em mortos-vivos naturalmente. E os seres retornados do outro mundo seguiriam o Cavaleiro da morte, matando aqueles que pouco antes chamavam de companheiros.

“O exército de um homem só”. Eram como os jogadores de Vanglória apelidavam aquele monstro.

Suor começou a descer pela minha testa. Eu já estava cansado de andar tanto de um lado para o outro e meus ferimentos ainda eram recentes.

O som terrível dos cascos e o arranhar da lâmina negra proibiam meus sentidos de fraquejar. Essa já era a minha terceira vida.

E eu não quero uma quarta vez!

Atravessei o corredor da caverna, tropeçando em pedras e buracos. Finalmente chegando a uma encruzilhada. Atrás de mim, vinha o cavaleiro lentamente e na minha frente havia apenas o buraco negro no teto, sugando tudo.

Meus pensamentos e dúvidas voavam sem rumo. Ficar e morrer. Entrar e talvez morrer. Eram péssimas duas opções. Minhas únicas duas únicas péssimas opções.

Quando um arrepio subiu pela minha espinha e o olhar do morto-vivo cruzou-se com o meu, eu tomei minha decisão, saltando no portal e flutuando na sua direção. 

Antes de ser completamente absorvido, vi a figura chegar na sala e olhar em meus olhos. Por um momento senti alívio, porém o desejo de matar dele ainda continuava forte.

Ele agarrou o cabo da espada no final e, como se fosse uma lança, arremessou contra mim em pleno ar. Numa velocidade alucinante para o tamanho do objeto, ele voou na minha direção e eu fechei os olhos, vendo minha terceira vida ir.

Quando o reabri, estava em outro lugar. Tinha todos os aspectos de uma caverna como os outros, porém não era o mesmo. Suspirei aliviado quando vi que o ataque resultou apenas em um corte raso no meu antebraço.

Eu joguei meu corpo contra o chão e estendi a mão na direção do teto de pedra, agradecendo aos céus, pois...

Eu estava vivo.


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