O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 10: Algo está diferente

Aquele pedaço de macarrão me admirava. Como pode algo ser tão gostoso? A cada mordida aquele sabor suculento parecia explodir e se dissolver na boca. Quando a garganta ficava cheia, um copo de suco de uva que me fazia salivar era uma das melhores coisas do mundo.

Já um pouco menos surpreso com esse gosto conhecido, meus olhos percorreram o restaurante: minha mesa só com meus talheres, grupos com mesas conectadas, todos rindo e bebendo juntos, embora com cortesia e refino da nobreza. Uma alegria moderada.

Molhei minha boca com o suco. Para que eu precisaria de conversar com todos? Por que iria ficar triste vendo Violette conversando com outras pessoas, o Cyle incluído na conversa, enquanto estou aqui? Melhor para mim. Posso focar na minha própria paz.

Suspirei. Paz... Esse é o preço que se paga por não ser sincero comigo mesmo?

Um pedaço de macarrão caiu na minha calça. Peguei-o e coloquei de volta ao prato depressa. Olhei por todos os rostos do restaurante. Ninguém percebeu. Ninguém viu a minha vergonha. Isso era reconfortante, mas também...

A cada mordida, o macarrão se tornava mais amargo. Ele já estava ficando frio e duro. O molho excessivo começava a me dar gastura. A sensação de salivar com o suco passava a ser mais desconfortável que saborosa.

Talvez tudo seria melhor com Dolgan aqui. Guinevere e Violette estão com amigos, e duvido que seria sem consequências sociais virem conversar comigo aqui. Onde está Dolgan? E Aithne? Por que não comem com todos aqui?

Levantei-me em silêncio — não que fizesse diferença, ainda não seria escutado. Saí do restaurante e andei pelo corredor bem-iluminado do dormitório, as esferas de fogo ao teto deixando o ambiente quente e claro.

Essa academia é incrível... Tem uma estrutura mágica inteira para guiar e auxiliar os estudantes, até mesmo na tranca da porta. Somente a minha mana poderia abrir a minha porta, como se fosse um cartão magnetizado de hotel.

Como um teste disso, cheguei na porta do meu quarto e coloquei mana na maçaneta. O orbe transparente brilhou em verde e um som do mecanismo da trava ecoou. Abri a porta e entrei no meu quarto escuro usual. Fechei a porta e espreguicei, como sempre.

Ah... Lar doce lar. — Depois de tudo, meu corpo e mente estavam exaustos. Estudar e praticar feitiçaria sugou minhas energias.

Meus olhos passaram pela adaga e livro aberto antes de me jogar na cama. Porém, me levantei da cama e olhei novamente para a adaga negra. Ela estava na minha mesa, descansando ao lado do livro. Tudo normal, como sempre, mas...

“A posição dela...”

A lâmina estava virada à porta, à direita, direção oposta do livro. Como sou destro, quando a coloquei na mesa, a lâmina estava apontada para o lado do meu corpo, na direção do livro à esquerda. Um detalhe sútil, quase imperceptível, mas...

Não fui eu que fiz isso.

Meus olhos perscrutaram a escuridão não mais habitual do meu quarto. Onde a escuridão era preenchida com “ausência de luz” normalmente, agora era preenchida com qualquer ser que pudesse me espreitar durante o sono, bem do meu lado, sem eu jamais perceber.

A despeito da necessidade de reexaminar meu quarto, tensão me consumia. O que moveu a minha adaga? Se olhar para trás nesse instante, será que...

Virei-me para trás. Tudo que via era a mesma escuridão parcial que cobria meu quarto, nada de anormal. Será que estou alucinando sobre a adaga? Quer saber, eu vou é fugir desse lu-

Toc.

Algo bateu na minha janela. Olhei para ela e vi que as cortinas estavam fechadas — o que nunca fiz. Isso estava errado. Muito, muito errado. Alguém esteve — e está — aqui.

Meu coração batia freneticamente no meu peito. Precisava sair dali. Urgente. Mas...

A Academia é segura, não é? É um projeto pelos maiores magos das três raças humanas. É impossível haver alguma coisa errada aqui. Ainda assim...

Vou fugir de novo? Vou ter que ver Lucas me dizendo novamente que fujo das minhas responsabilidades? E, se eu abandonar meu quarto agora, como terei coragem de voltar aqui? Com medo ou não, é aqui que tenho que dormir.

Essa academia é segura demais. Confio mais nos grandes magos que em mim. Devo ter brincado com a adaga e não ter percebido. É lógico que vai ser isso. Agora preciso ir olhar a janela, senão nunca conseguirei dormir em paz aqui de novo...

Caminhei em meio à escuridão, cada passo meu ecoando no quarto sombrio. Algumas pisadas estalavam a madeira do chão com rangidos altos. Meu coração recusava-se a desacelerar, e sentia que o ar não entrava no meu peito, mesmo respirando profundamente. Se houver um ser lá fora, ouviria eu me aproximando...

Finalmente cheguei à janela e abri as cortinas grossas. Vi o lote recheado de grama, iluminado pelo fraco poste que constantemente falhava. Nada havia de estranho. Apenas a visão de sempre.

Não tem nada de errado. Sempre soube disso. Mas...

Apesar dessa certeza, meu coração quase explodia em meu peito. Deveria virar e retornar à minha cama, descansar. Contudo...

“Há algo aqui”. Algo que, neste exato instante, pode estar atrás de mim. A batida na janela foi forte e real demais para não ser nada. Queriam que eu viesse aqui. Era uma armadilha.

Lentamente me virei. Minha visão percorreu cada centímetro da parede, até chegar na... porta. Nada. Não havia nada.

Sabia. Estou ficando maluco. Eu...

Dum. Dum.

A porta do banheiro bateu forte duas vezes seguidas, a madeira indo para frente e para trás. O que...

Dum.

Merda, merda, merda, merda. Atrás de mim, está uma janela que só termina em um pátio bem abaixo. Se pular daqui, a queda será bem feia, e também algo bateu na janela, então...

Dum.

A cada batida impetuosa, mais a porta do banheiro parecia que iria ceder. Encarei a porta principal do quarto, tão perto do banheiro, e a vontade de correr invadiu meu peito. Se eu for muito rápido, consigo sair do quarto antes que derrubem a porta. Mas se não...

Dum.

Corri com tudo. Quanto mais me aproximava da saída, mais me aproximava também do banheiro. Cheguei até a porta principal, puxei a maçaneta, e naquele mesmo instante ouvi a porta do banheiro sendo arrombada atrás de mim com um estrondo alto.

Abri a porta e... Algo preto apareceu na frente dos meus olhos. Um par de mãos segurou fortemente meus braços. Morri, fui pego, eu...

— Você está bem, Flamel? — soou a voz de Guinevere acima de mim. Seus olhos azuis me fitavam com preocupação. — Você está pálido...

— Eu...

Virei-me e encarei a porta do banheiro. Ela estava... normal, fechada.

— Você não ouviu nenhum som estranho vindo do meu quarto?! Tipo uma porta batendo, nada do tipo?!

— Eh... Não?

Tão preocupada quanto seus olhos era sua mão, que começou a percorrer entre meus cabelos gentilmente. Um conforto absoluto de paz e ternura após tudo... Mas...

— Tem algo no meu quarto! — Meus olhos se encheram de lágrimas. Poderia ter morrido. Eu...

— O quê?

Os olhos dela percorreram o meu cômodo bagunçado por um tempo.

— Não tem nada, Flamel.

— Mas...

— Estou usando feitiçaria de alto nível para confirmar isso. Flamel...

Antes que pudesse protestar, seus braços me envolveram e levaram minha face ao seu peito. Guinevere continuou a acariciar minha cabeça com suavidade...

— Está tudo bem, Flamel. Está tudo bem.

— Mas Guinevere, realmente tem algo lá!

— Não tem como ter nada na Academia Bauchir, bobo. Você está passando por muita coisa... Flamel, vem cá. — Ela me soltou e pegou minha mão. — Vem dormir no meu quarto hoje.

— Dormir no seu quarto?

— Sim. Você não está falando que tem algo aí? Vem cá. Você dorme comigo hoje, e amanhã chama um mago da escola para avaliar seu quarto. Assim fica tudo bem. Ok?

— Não vou te incomodar?

— Não mesmo. Vem. — Ela começou a andar, me puxando junto.

Segui-a em silêncio. Caminhamos pelo iluminado e quente corredor. Tudo exalava proteção e segurança. Nada poderia me ameaçar aqui.

Íamos em direção contrária à saída do dormitório, mas havia diversos quartos por aqui. Andamos por um tempo. Não sabia que ela morava tão longe de mim.

Segurava a mão dela com cuidado, mas mais e mais ela apertava a minha, até começar a doer. Doer mesmo, meus ossos eram comprimidos.

— Guinevere? O que você...

Minhas palavras morreram. Ela andava no seu próprio ritmo forte, calada, segurando minha mão com agressividade. Isso não estava certo. Tentei retirar minha mão, mas não era capaz.

— Guinevere?!

Encarava-a em confusão. Porém, algo de estranho havia em sua silhueta. Em meio ao cabelo loiro, mechas negras e ressecadas surgiam, até que tomaram o cabelo por completo.

Não era ela. Somente então que percebi que sua altura era maior que o normal. Como não me dei conta disso antes?...

Abaixei meus olhos, e vi a mão pálida dela consumida por feridas abertas e dilacerações, expondo a carne vermelha ensanguentada e o osso do braço. As mangas do terno da escola se partiam e caíam no chão, até sobrar uma camisola tingida de sangue escuro e seco que a fez dura como pano velho.

Meus ossos começaram a se quebrar com o aperto dela. Parei meus pés e tentei sair dela com toda minha força, mas então ela começou a me arrastar pelo corredor, como se toda a minha força fosse insignificante.

Seu rosto se virou para mim. A pele se descascava, revelando uma carne escura apodrecida. Seus olhos possuíam um brilho vermelho vivaz.

Você irá comigo. — Sua voz tornou-se distorcida e rouca.

Não havia o que fazer. Não importa o quanto lutasse, não consegui impedir de ser rastejado pelo corredor...

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