O Meu Caminho Brasileira

Tradução: Rafael-AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 16: Ciúmes

A natureza é tão viva, complexa, interdependente, exuberante... O rubor verde intenso das folhas dos pinheiros costumava dominar a atmosfera, quase encontrando o mar verde gramado do chão, separados apenas pelas pontes escuras da madeira. Por elas, se observar bem, perceberá minúsculas vidas escondidas, um macaco que sorrateiramente troca de galho, formigas das mais diversas cores e tamanhos subindo e descendo...

Hoje, porém, o oceano de seus olhos encontrou a falta de toda aquela vida. Soterrada pela neve, a vibrante paisagem usual dos arredores da Academia estava seca. Galhos sem vida, finos, pálidos. Toda vida animal escondia-se. Apenas madeira e neve podiam ser vistas por toda floresta.

No silêncio da manhã, a jovem apalpou o crucifixo dourado em seu peito, preso por uma fina corrente de ouro em volta do pescoço. Seu dedão acariciava a superfície metálica ainda vibrando o calor do corpo dela. Que ironia pensar que esse mesmo cordão, outrora da pessoa que mais amava, agora descansava em seu peito...

Os olhos fitavam incessantemente a neve. A mesma neve que, no dia em que perdeu tudo, foi a única coisa que a consolou. A sensação da fria e suave neve caindo nos ombros, enquanto chorava e gritava pela própria incapacidade diante a tragédia. A mesma neve que escondeu todo o sangue escuro que irrompia dele.

Se ela fosse mais forte...

Todos sabem que a vida é frágil, mas poucos contemplaram a brutalidade com que tantos sonhos, expectativas e planos podem se desfazer em um mísero segundo. Nada pode se fazer sobre algo tão frágil e vulnerável quanto a vida humana.

Tão frágil e substituível... Morreu-se ele. Importância? Função social? Papeis familiares? Pouco importam. Na tarde seguinte, o crucifixo que simbolizava toda a glória da existência dele já repousava no peito de Guinevere, fadada a carregar o papel do irmão como se sempre tivesse sido a herdeira, como se ele nunca tivesse existido.

Se ela fosse mais forte...

Mas nem as manhãs nevadas conseguia odiar, apesar de tudo. Suspirou e agradeceu à neve pelo conforto que recebera. Para tudo na vida há valor e beleza. Se o calor aconchega e anima a alma vazia, o gelo da neve esfria-lhe o peito ardente e traz o sossego necessário para a alma.

Sorriu. O mesmo pequeno sorriso que mostrava a todos. Uma lágrima desceu-lhe pela bochecha. Ele não era um mísero papel social. Era mais que isso. Era um ser humano. Ele era um sonho em meio a um mundo de carne, que fere, que sangra — e como sangrou...

Beijou o crucifixo. Que descanse em paz....

O Sol, que surgia com um brilho dourado que coloria a neve, também iluminou seu coração nevado; sentia as bochechas se aquecendo pelo toque suave dos raios solares.

Suspirou a brisa gelada que complementava o nascer do sol e se voltou ao armário. Já era hora, deveria começar a se arrumar ou chegará atrasada à aula.

Vestiu o uniforme, que, mesmo na sua impessoalidade, falhava em esconder os contornos do corpo. Olhou-se no espelho. As tonalidades de preto e branco eram tão neutras e impessoais. Esse mesmo uniforme que ouvia as pessoas reclamando sobre ser restrito demais, mas que, para ela, acostumada a ter que vestir camadas e camadas de tecido de vestidos, não era nada além de sonho.

Desprendeu os cabelos e deixou-os cair nas costas. Hoje sairia assim. Queria. Mas... assim que tocou a maçaneta, não aguentou. Voltou e fez um penteado mais bem-elaborado, com uma trança depois de cada orelha que se encontravam atrás da cabeça e formavam uma só trança, que seguia abaixo junto do restante do cabelo suave.

Viu-se no espelho mais uma vez. Agora sim. Estava apresentável.

Pegou a mochila de couro refinado, saiu do quarto e andou pelo corredor. Era o mesmo corredor de sempre. Silencioso e tranquilo, como todas as manhãs. Mas...

“Será que o verei aqui de novo?”

O coração dela palpitava com certa alegria ansiosa. Ele...

“O Flamel mudou.” Desde aquele bom-dia trocado, ela sabia. O tímido e quieto garoto, que sempre vivia recluso em seu canto estudando e fugindo dos olhares de todos, parecia não mais existir. Algo mudou nele. Desde aquele “bom-dia” nesse corredor, Flamel estava com a postura mais altiva, confiante, mais animado e bem-disposto. Havia um brilho nos olhos que há muito havia se perdido.

Continuou Guinevere a recapitular as falas que trocaram um com o outro com certo deleite, até que...

“Seu avoado”, as palavras dela naquele dia passaram em sua mente. Avoado?! Ela não tinha uma palavra menos cafona para usar? “Meu Deus...”

Os lábios formaram um sorriso natural enquanto o coração tremia. Vergonha, alegria e ansiedade consumiam seu peito. Queria vê-lo de novo, usar palavras melhores com ele. Na enfermaria, aquele conforto e abraço foi tão...

— Oi, Guine! — disse uma garota de cabelos azuis encaracolados que desciam até os ombros, e óculos redondos e finos na frente dos olhos amarelos. Ela correu até chegar ao lado da garota loira. — Bom dia! Como você está?

— Bom dia. — Guinevere riu. Era tão bom ver Anna tão animada como sempre. — Estou bem. E você?

— Pois é... — Anna desviou o olhar e seguiu com um caminhar caótico, colocando um pé na frente do outro, inclinando-se para o lado com cada passo. — Não sei...

— Não sabe?

— Não. É o Jean...

— O Jean?

— Sim.

— O que tem ele?

— Então... — Anna riu, meio envergonhada. — É só que ele... — A voz dela morreu, indecisa.

— Ele...?

— Não ficou comigo no restaurante ontem. Ficou comendo com os amigos. Será que ele realmente não tem interesse em mim?

Guinevere não conseguiu não rir um pouco, mas logo parou os passos e encarou o rosto da amiga.

— Anna. Você é maravilhosa. Não precisa se preocupar com nada.

— Mas se ele...

— Não me diga que alguém bonita e divertida como você vai se preocupar com algo assim? Eu sei que é difícil e dá medo, mas... opções que não são problema para você! Você merece mais se preocupar em arranjar alguém à altura do que ficar preocupada com pessoas específicas. 

— Mas ele é tão legal...

— Você também é. — Riu a Guinevere. — E vocês ainda nem saíram juntos, Anna. Sabe... amanhã, a professora Hayek vai passar uma atividade em dupla. Por que já não o garante como sua dupla?

— Seria ótimo! Espera, amanhã tem atividade em dupla?!

— Não. Considere isso apenas um segredo da assistente da Hayek.

Ambas riram e continuaram caminhando pelo corredor do dormitório, trocando olhares alegres. Mas Anna parecia também curiosa, encarando-a como se tentasse ler algo na face da Guinevere.

— Aliás, hmm... Aconteceu alguma coisa? — disse Anna.

— Como assim?

— É que você estava sorrindo igual boba antes de eu chegar.

— É?! — Guinevere olhou para ela com a face mais vermelha e os olhos arregalados. — Eu não...

— Eu sabia! — Anna riu e saiu correndo pelo corredor à frente da amiga, balançando os braços em alegria. — Alguém finalmente derreteu o gelo do seu coração e fez você cair numa paixão terrível!

— Não! Não mesmo, eu só-

Hahahahahaha! — ecoaram pelo corredor inteiro as risadas, o que fez Guinevere querer se esconder do mundo.

Não era assim... Ela não gostava do Flamel... Só... Ele era agradável... e gentil... É só isso. Não tem nada demais em achar alguém legal, né? Guinevere balançou a cabeça em negação e correu atrás da Anna, que, se não fosse parada, logo acordaria todo o dormitório.

 

 

No silêncio do banheiro, sozinho, a paz que eu sentia com a Violette, quando conversamos no quarto dela, deu lugar à usual inquietação da alma, aos sentimentos de culpa. Porém, dessa vez, me olhei no espelho. Não mais forçado como fui por Lucas, meu falecido irmão, mas agora porque eu quero.

Pela primeira vez, encarava abertamente o rapaz que chamam de Flamel. Aqueles cabelos pretos lisos que cobriam uma parte lateral da testa, os olhos escuros, a tez clara... Era igual a mim em praticamente tudo, como se fosse minha projeção nesse mundo paralelo incerto e caótico. 

Meu peito gritava em desconforto, queria fugir dali, não encarar a mim. No fundo do espelho, vi aqueles olhos, aquela face, aquele ser... Quem mais errou, quem me fez mais frustrado do que qualquer outro. O rapaz que nunca conseguiu avançar numa simples promessa com o irmão, que deixou-o morrer por falta de atenção, e que...

Engoli em seco. No fim, esse mesmo jovem culpado também foi uma boa pessoa. Meus olhos molhados me mostram uma alma mais inocente do que julgo. Posso morrer em paz mesmo, como disse para Violette? Falei aquilo no conforto do calor com ela, mas meu juízo final não seria ruim, seria? Não acho que seria... Então por que sempre me tratei assim?

Toquei o espelho e acariciei aquele rosto atormentado, mas tudo que sentia era a fria superfície... Será que simplesmente me sentia melhor ao me punir, como criminoso que vê merecimento e significado na punição e na dor? Será que me sentia mais ético fazendo isso?

Ou será que ainda, no fundo, não é nada disso, mas simplesmente eu descontando uma frustração comigo mesmo que nada tem a ver com a promessa do Lucas, mas sim porque vivi minha vida de forma tão limitada?

Ri. Ri de mim mesmo. Ri da figura do espelho. Apenas isso. A partir do momento em que comecei a aproveitar melhor minhas oportunidades, que comecei realmente a viver, o fantasma de Lucas me assombrou menos. Não teve nada ver com nossa promessa, mas com a culpa de mim para mim. Sou meu carcereiro e justiceiro, e não o Lucas.

Sim, declarado culpado por mim mesmo, e inocente pelo mundo. Talvez eu nem quisesse culpar quem cometeu o descuido que acarretou na morte de Lucas. Talvez quisesse preencher o vazio da minha alma com dor. Que ironia...

Eu-

— Flamel? — gritou Violette através da porta.

Tomei um susto com ela e me pus a prontamente vestir o uniforme da escola, despindo-me das roupas elegantes com que ela havia me vestido.

— J-já vou!

Aprontei-me e me encarei no espelho. Lá estava Flamel. Não, não era Flamel, mas Michael, o mais novo estudante de magia. Era minha vida. Sou eu.

Vou viver dessa vez. Como será que seria minha vida se me punisse menos, se não cortasse minhas asas sempre que tentasse voar? Como seria se pudesse dormir em paz, se fizesse de mim um amigo, um companheiro?

Cerrei os punhos. Não mereço isso. Sentia o sangue subindo à minha cabeça e me deixando nauseado, entorpecido pela fatalidade do meu reflexo. Queria me culpar mais. Precisava disso. Estava viciado na culpa. Viciado em me punir. Mas...

A morte me espreita. Posso morrer a qualquer momento. Agora mesmo, no fundo desse ralo, pode surgir uma mão monstruosa que agarrará meu pescoço e me estrangulará até a morte. Nesse mundo nada é impossível, o absurdo é cotidiano. Talvez até a Violette que me aguarda possa ter sido substituída por um monstro que dará um fim em mim.

Em uma vida permanentemente ameaçada pelo fim, porém, não sinto o intenso pavor aterrorizante de lutar incessantemente pela minha vida a custo de tudo. A única coisa que quero é...

Estar em paz comigo mesmo. Se eu for morrer, quero que seja com um sorriso. Não há sentido em ficar me culpando incessantemente, em ser o lobo e a ovelha de mim mesmo.

Talvez isso significaria inocentar um culpado? Talvez. Mas sou mesmo tão culpado assim?...

— Tá tudo bem? — falou Violette, a voz mais preocupada.

— Sim! Desculpa, só... Já vou!

Sou responsável pela morte do Lucas... mas também não sou. Sou alguém que merece a dor, mas também que merece a felicidade.

Essa paz que senti nos últimos dias. Essa paz artificial que, por um momento, me deu forças para me perdoar mais e aceitar seguir em frente. Finalmente entendi. É o grito da minha alma que já não aguenta mais estar aprisionada em mim mesmo. Tanto amei a todos, mas agora eu também desejo meu amor.

Desculpa, Michael. Você merecia melhor. Merecia um coração que perdoa a si tanto quanto perdoa todos os outros.  

Ajustei a gola da camisa e saí do banheiro. Ao abrir a porta, dei de cara com os olhos aflitos de Violette que brilhavam em uma mana violeta. Encarei-os, perdido neles. Ela escondia algo, e não tentava nem um pouco manter isso em segredo. Mas essa mesma garota...

Andei até ela e a envolvi em meus braços, em um impulso que dominou meu corpo. Ela me abraçou de volta, e, no silêncio de seu calor, apreciei o infinito que se abria em meu peito. Ela era vida. Era calor. Era conforto. Era mistério. Era o desconhecido que enchia meu coração desses sentimentos desconhecidos, tão estranhos à minha alma.

— Obrigado — sussurrei.

— Por?

— ...

Apertei-a mais no abraço. Talvez, afinal, essa fosse uma resposta mais verdadeira e honesta que qualquer palavra poderia expressar. Uma resposta que mostrava minha gratidão, minha felicidade em tê-la conhecido.

Mesmo que acidentalmente, ela já coloriu minha vida e me fez perceber que sou mais merecedor do que sempre acreditei. A presença dela me ajudou a prosseguir com minha vida de forma tão natural...

Quero estar mais com ela.

 

 

A caneta nas mãos de Guinevere, que rodopiava por entre os dedos, parou. Ignorando o monólogo do professor Kuhn ao fundo, a garota suspirou, os olhos percorrendo a sala.

Enquanto analisava quieta o rosto dos colegas, notou Cyle encarando-a de longe. Ele sorriu quando se viram, mas ela o ignorou e continuou a prestar atenção em todas as fileiras de mesas dos estudantes.

...Flamel não estava ali. Será que alguma coisa aconteceu com ele? Tanta coisa estranha tem ocorrido ao redor dele... E se ele tiver sido perseguido por outro monstro? Ninguém tem notícias dele após sair da enfermaria. Se alguma coisa acontecer a ele...

Guinevere apertou o tecido da calça, que mantinha o corpo quente com magia. Por que o Flamel? Logo ele? Já não bastava tudo que sofreu, ainda se torna vítima de infortúnios misteriosos e de... Cyle. Os olhos dela fitaram o rapaz de cabelos lambuzados novamente, que sorria para a garota sem perder a confiança mesmo tendo sido ignorado.

Embora Cyle demonstrasse aquele caloroso sorriso, tudo que encontrou de Guinevere eram olhos gélidos ainda mais frios do que o mundo fora da Academia.

“Por que ele quase matou Flamel? Não bastava humilhá-lo em tudo que fosse possível toda hora, ainda queria assassiná-lo?”, angustiava-se ela a cada instante que encarava os olhos daquele rapaz.

Não sabia o que era pior: as intenções de Cyle ou a gritante impunidade de todos os atos. Inclusive ela chegou a protestar com a sra. Hayek sobre todo o ocorrido, mas tudo em vão. Nem sequer uma ação disciplinar leve foi aplicada.

Porém, o que fazer?... Não havia nada que-

Uma risada ecoou baixinho pelo corredor. Uma risada que tinha tudo para ser normal, para ser só mais uma. Provavelmente alguém matando aula, mas... Por que era tão familiar? Isso... Era dele. Só pode ser ele. Seus olhos fitaram a entrada da sala com expectativas tão fortes quanto o calor crescendo no peito.

A porta da sala se abriu. Passou por ela uma estudante de cabelos ruivos que desfilavam pelo ar, roubando a voz do professor e tomando toda a atenção da sala para si, como se lhe fosse natural, devido.

Em silêncio, com uma face inexpressiva, subiu pelas fileiras de carteiras e sentou-se ao lado de Sara, uma garota de cabelos castanhos presos em um rabo de cavalo e olhos da cor de âmbar. Ela imediatamente começou a conversar com Violette, perguntando-lhe por que não veio mais cedo.

Senhor Kuhn pigarreou e continuou as explicações dos círculos mágicos desenhados no quadro. Guinevere encarou a garota ruiva com uma expressão triste. Será que aconteceu alguma coisa mesmo? Violette nunca se atrasou antes... Será que-

Algo no canto dos olhos de Guinevere fez seu coração pular. Entrando na sala, estava Flamel, com o cabelo preto despenteado, mas passos confiantes e postura altiva. As roupas eram o uniforme da Academia, e não havia nenhum machucado visível. Ele estava bem... Estava bem... Até com um pequeno sorriso simpático que o tornava ainda mais convidativo. Mas...

Algo aconteceu. Kuhn não parou a aula, então sua presença parecia apenas se misturar à classe. Mas aquele sorriso se desfez e deu lugar a uma expressão séria. Flamel encarava...

Cyle.

Flamel, o garoto que sempre entrava naquela sala de cabeça baixa e ombros caídos, caminhou pela sala com passos seguros. Para surpresa de Guinevere, ele simplesmente ignorou a existência de Cyle, que ainda o encarava com uma atmosfera pesada e grave, e subiu pelas fileiras em paz. Passou pelo lado de Guinevere e...

Olhou para ela. Aquela expressão fechada e séria dele, como num passo de mágica, se iluminou e brilhou com um sorriso ao vê-la. Ela engoliu em seco, sentiu o coração acelerado e sorriu de volta. Flamel seguiu seu caminho, mas o nó que ela sentia no estômago continuou a fazer sua face quente. Desviou o rosto para a janela, mas o mundo gélido pouco lhe importava mais.

Ele estava diferente... Sim, ela tinha certeza. Desde no dia em que ele a cumprimentou no corredor, estava muito mais vivo e confiante. Daquele menino machucado e humilhado nascia um rapaz mais maduro, sério, mas capaz de sorrisos tão simpáticos que...

“Seu avoado”, as palavras dela daquele dia no corredor repetiram em sua mente de novo. O rosto ficou ainda mais vermelho. Não podia ela ter dito qualquer coisa melhor? Será que ele a achava uma esnobe pelo palavreado?...

Ele se sentou ao fundo da sala. Pegou um caderno preto que Guinevere nunca havia visto antes e começou a fazer anotações da aula. Dolgan normalmente sempre fica com ele ali, onde está o anão hoje?

Tem tanta coisa estranha...

Ela ficou movendo a caneta de um lado para o outro durante a explicação do Kuhn, a qual já havia ela estudado pelos livros ontem.

Durante o restante da aula, continha-se para não olhar para Flamel. Ela devia prestar atenção no professor. Contudo, sempre que se distraía, pegava-se pensando nele de novo, ora preocupada, ora relembrando as conversas que tiveram juntos.

Era tão estranho e misterioso como que em tão pouco tempo ele se tornou mais aberto e confiante... Ele realmente...

Os sinos do colégio ressoaram por toda a aula. Kuhn recolheu o material didático, despediu-se e liberou os alunos para o intervalo do almoço.

Era agora. Os olhos de Guinevere miraram Flamel, ela se levantou e-

— Guine! — falou Anna, correndo até ela.

A jovem loira a encarou com um sorriso confuso e meio acanhado.

— Oi, Anna... É que...

— Ahhhh eu não aguentava mais essa aula do Kuhn!

— Filosofia da magia é difícil, né? — Guinevere tentava dar passos em direção ao Flamel, mas Anna a seguia ainda mais perto, impedindo-a de andar livremente até o rapaz.

— Sim! Preciso de férias logo! — Anna riu e segurou a mão da amiga. — Vamos para o restaurante? Tô morrendo de fome.

— Ah... É-é... — Uma gota de suor escorreu pela testa de Guinevere.

— O que foi? Vem logo, antes que acabe a carne de cioba!

— Ok... — Guinevere andou com ela para fora da sala. Antes de passar pela porta, olhou uma última vez para Flamel. Ele ainda estava relendo as anotações da aula. Sempre tão dedicado... Mas está tudo bem, terá outras chances de conversar com ele...

Andaram pelos corredores em meio a estudantes de outros períodos. Como nova herdeira da Casa Cromwell, ainda se lembrava de como, vestida de incontáveis camadas de roupas e acessórios, teve que seguir tantas regras de etiqueta durante festas e reuniões vazias com essas pessoas.

Da mesma forma vazia, paravam no corredor alguns alunos para cumprimentá-la com sorrisos e palavras gentis. A cada vez que respondia, mais o peito de Guinevere protestava a ir para o restaurante.

Queria ver Flamel. Ele era diferente dessas pessoas. Aquele brilho no olhar dele, aquelas risadinhas nervosas fofas, aquele abraço... Precisava mais daquela naturalidade, daqueles olhos que olham para ela, e não para a herdeira dos Cromwell.

Precisava disso mais.

— Anna... Preciso ir no banheiro. Vai garantindo meu prato?

A amiga expressou aprovação com o polegar erguido e um sorriso.

— Claro! Vou ir lá correndo então.

E lá se foi Anna pelo corredor, tão veloz e entusiasmada como sempre.

Guinevere suspirou. Doía um pouco enganar a amiga assim, mas ela entenderia. Foi ao banheiro, lavou as mãos e retornou ao corredor amontado de estudantes que até no falar exibiam uma cortesia exagerada. Mas isso não lhe importava. Apressou os passos até chegar à porta da sala.

Finalmente poderia falar com Flamel e saber se estava bem, finalmente ela...

O coração de Guinevere doeu profundamente como se fosse apunhalado. Na frente de seus olhos, encontrou a sala de aula vazia, sem nenhum estudante, exceto dois estudantes que conversavam entusiasticamente...

— Não?! Sério, como você consegue usar tantas magias assim e ainda saber lutar com todas aquelas armas?! — A face de Flamel exibia um dos mais genuínos e encantados sorrisos que Guinevere já viu dentro dos círculos nobres.

— Ah... não são muitas. — Violette, que estava sentada de pernas cruzadas em uma das mesas, desviou o olhar com um sorriso e colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha, deixando o pescoço à amostra.

— São sim! Faz aquilo de novo?

— Você quis dizer... isso?

Um vento repentino soprou e balançou os cabelos de Flamel. Lentamente, a imagem da Violette com um sorrisinho provocador foi se tornando mais borrada, até desaparecer junto das rajadas de vento.

— O que...

Pouco a pouco, Violette se materializou atrás de Flamel, uma mão descansando quase sem peso no ombro do rapaz, enquanto a outra delineava suavemente a linha da sua mandíbula.

— Oi — ela sussurrou em seu ouvido, uma risada sutil escapando de seus lábios. Flamel pulou de susto por um instante e logo se virou para ela com os olhos brilhando de ânimo.

— Como você consegue?!

— Segredo. — Violette riu e fechou os olhos por um breve momento. Quando se abriram, encontraram diretamente os de Guinevere. O sorriso de Violette se abriu ainda mais, mas havia algo de diferente. Era um prazer, um triunfo, um ar de superioridade tão escancarados que fizeram o sangue de Guinevere borbulhar. Sem hesitação, a atenção de Violette retornou ao Flamel, ignorando Guinevere.  — Mas ouvi dizer que...

“Chega.” A palavra reverberou em sua mente como um grito silencioso. Guinevere saiu daquela porta e se atirou no corredor com passos atormentados sem rumo. Nunca vira Flamel feliz daquele jeito, e ainda com a Violette!.... Aquela vagabunda, não bastava ter obviamente algo tão errado com ela, ainda é tão descarada assim? E, para completar, lhe lançou um olhar venenoso como aquele?

A cada batida do coração, era uma facada que tornava a respiração mais pesada de Guinevere. Por que, de todas as pessoas, ele se interessou nela? Violette, a mesma que nunca recusava um convite para um banquete da nobreza, sempre se mantendo distante com aquela aura de superioridade indiferente... Agora ela estava mostrando interesse por Flamel? Que ironia...

— Guinevere?

Despertando-se das chamas que consumiam sua cabeça, Guinevere olhou para o lado e encontrou Dolgan. Os cabelos alaranjados dele estavam presos em uma trança atrás da cabeça. O sorriso típico dele estava ausente, o que tornava sua expressão fechada mais parecida com a de um anão normal.

— Dolgan? — Ela se surpreendeu. Ele não foi à aula hoje, não é?

Ele riu e exibiu os dentes em um grande sorriso.

— O próprio! Você viu o Flamel por aí?

— Ah... Ele está na sala...

— Olha só. — Os olhos dele fitaram a porta da sala mais à frente do corredor, e depois retornaram à face de Guinevere. Ficou um instante em silêncio, e continuou: — Bora?

“Bora”, ela riu em sua mente. Era tão estranho ouvir algo tão informal nesse colégio.

Pensou melhor na pergunta dele e deu de ombros.

— Pode ser...

Se fosse sincera consigo mesma, queria fugir daquela sala e ir o mais distante possível. Ela nem sabia para onde caminhava, pois o restaurante ficava na direção oposta à que ia. Mas qualquer lugar era melhor que aquilo...

— Então “vamo”!

Dolgan andou até a porta e Guinevere veio atrás. Quando entraram na sala, a conversa cessou abruptamente e voltaram seus olhares para eles em um silêncio denso. A jovem ruiva apoiou as mãos na mesa em que estava sentada e encarou os olhos de Dolgan, que exibia um óbvio incômodo que pouco tentava esconder, enquanto Guinevere encarava Flamel com os lábios apertados.

— Oi! — Flamel abriu um extenso sorriso, os olhos brilhando em alegria, e andou até eles. — Como vocês estão?

Dolgan correu até ele e apertaram as mãos firmemente com uma risada retumbante.

— Grande Flamel!

— Grande Dolgan!

— Nem tão grande assim... — falou Violette, que se levantou também e se uniu aos três.

— Olha quem fala — disse Guinevere, avançando até a Violette. Então tentou ficar o mais alta possível perante a garota ruiva.

— Três centímetros mais alta e está se achando assim? — Violette riu em deboche.

— Três centímetros e meio mais alta que você. — Guinevere cruzou os braços em vitória.

— Desculpa, fala de novo? — Violette abaixou-se um pouco e encarou o rosto de Guinevere. — Não consigo te escutar daí de cima...

Flamel riu e colocou a mão sobre a cabeça da Violette.

— Você não está se soltando demais? — disse ele.

— Ela que começou — falou Violette, seus olhos buscando o Flamel. Aproximou-se dele e envolveu seus ombros em um abraço lateral.  

Angústia apertou o peito de Guinevere ainda mais. Dolgan observou seu rosto, notando o desconforto da garota, e encarou de volta Violette com uma expressão séria, quase repreensiva. Mas ela fingiu não notar enquanto abraçava Flamel, que estava sorridente e meio sem jeito.

— Desde quando vocês se tornaram tão próximos assim? — Guinevere desconfiava das artimanhas da Violette.

— Ah... — tentou Flamel falar, mas as palavras pareciam fugir dele.

— Hoje de manhã. Ele é um amor, não é? Aliás, vamos ir almoçar?

“Hoje de manhã? Eles mataram aula juntos? O Flamel e a Violette? Ela?” Guinevere fitou os olhos de Flamel. “Como isso foi acontecer?... Não vai me dizer que eles...” As bochechas dela ficaram rosas, e simplesmente deu de ombros.

— Certo... — disse Guinevere com uma tristeza súbita, escondendo a face.

— Você está bem? — perguntou Flamel, preocupação visível em sua voz.

Ela o encarou, mas não queria respondê-lo. Ele está saindo com ela? Não, não. Guinevere virou-se e caminhou até a porta.

— Vamos logo — disse ela, antes de sair da sala e deixar os três sozinhos. Aguardou por eles no corredor, dando seu melhor para não permitir que sua respiração se descontrole. Ela tem que ser firme...

Era muita coisa para sua mente processar. Ela, Guinevere, não gosta do Flamel, né?... Então por que... Não é sobre nenhuma paixão, mas é o desconforto de ser a Violette, não é? Sim... É a Violette. Aquela víbora...

Apertou os punhos. Quando seus companheiros chegaram até ela, porém, Guinevere já havia prometido uma coisa para si mesma:

“Não deixarei que brinquem com o Flamel novamente.”

Convicta disso, andou em silêncio com os três pelo corredor, por vezes ela trocando olhares sérios e desafiadores com Violette.

Assim, entraram no restaurante juntos, mas com os corações tão distantes uns dos outros.

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