O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 33: Outsiders

Os estudantes da Academia ocupavam as grandes mesas do refeitório. Junto do delicioso cheiro de comida fresca, espalhava-se o som das múltiplas vozes misturadas, conversando na mesma intensidade que os talheres batiam contra os pratos de porcelana.

Mesmo que não falassem tão alto, eram contagiantes o sorriso e os movimentos animados dos nobres, às vezes fazendo gestos quase teatrais enquanto contavam histórias, embora sempre com um certo decoro subliminar. Até quem ouvia reagia com intensidade, recolhendo-se na cadeira com risadas pequenas e o rosto repleto de rubor, ou retornando a piada ou fofoca com ainda mais vida.

Essa visão me pegou um pouco desprevenido. Esperava ver cada nobre no seu canto, com uma dignidade artificial que esconde a podridão de dentro tanto quanto as roupas chiques escondem as imperfeições do corpo.

Mas era o oposto que acontecia. Até Cyle aparentava conduzir uma orquestra enquanto contava algum caso, suas palavras fazendo flutuar o humor de quem o ouvia para cima e para baixo, como se fosse um maestro a ordenar o coral de violinos.

Havia mesas mais agitadas e acaloradas, como a de Cyle, e outras mais quietas e pacíficas, como a de Guinevere. Não importava a personalidade da pessoa, ela encontraria um lugar para si aqui.

Interessante era notar que todo calor se irrompia de jovens vestindo o mesmo uniforme sem vida e sem cor, como se as regras formais da instituição tentassem padronizá-los, mas as almas, enraizadas no frescor da juventude, não pudessem ser sufocadas.

A cena me fez sorrir. Era tão convidativo. Mas...

Eu estava andando por entre as mesas carregando uma bandeja de comida. Meus pés me conduziam a diferentes grupos com auras tão distintas, mas nenhum parecia ser receptivo a mim. Se alguém me olhava, era por um rápido instante, antes voltar à conversa ou discretamente apontar o dedo com um sorrisinho, fofocando.

Ver todos meus colegas daquela forma era como observar uma pintura de uma grande festa. Porém, no fim, não deixava de ser uma pintura, uma arte feita para se observar, não para viver.

Foram cinco minutos à procura de uma mesa para me juntar numa caminhada quieta — ou bem inquieta, se alguém parasse para me analisar só um pouco.

Cheguei até a mesa de Guinevere. Ela olhou para mim, mas, quando ia me chamar, sua amiga Anna roubou-lhe a atenção com uma fofoca súbita. Enquanto conversavam, Anna dirigiu um olhar ríspido para mim, como se dissesse “cai fora”.

Respirei fundo e me distanciei. Sentia-me como um mendigo que vê pela vitrine da casa uma cesta com dezenas de pães, mas, ao bater a campainha, o dono diz que não tem nada para doar. Não restava outra coisa além de uma resignação silenciosa, sem reclamar ou se desanimar, e ir de casa em casa, à procura de um lugar.

Porém nenhuma casa me quis. Não tendo uma mesa vazia, e não encontrando Violette ou Aithne lá, já ia saindo do refeitório para comer sozinho, quando ouvi uma voz bem familiar:

— Ô Flamel, chega aí!

Virei-me e vi Dolgan sorrindo com um pedaço de feijão entre os dentes, a lateral dos lábios colorida por um molho amarelo. Sorri e fui até a mesa.

Ele estava comendo junto de dois rapazes e uma garota. Fiquei um pouco nervoso, já que há dias só via a Aithne, sem ter que fazer novas amizades. Contudo, logo me acalmei. Naquele mundo, não havia alguém que conhecesse, então começava a me acostumar. O sentimento de “nervosismo social” era ruim, mas não mais amedrontador.

— Oi, gente — falei, suprimindo uma apresentação de mim mesmo, caso já conhecessem o Flamel. Esse cuidado com as palavras era outra coisa que com que já me habituava, e que o tempo passado com a Aithne me fez desejar que não o tivesse.

— Oi — respondeu a garota de cabelos brancos com mechas negras, que me lembraram o contraste da lua com o céu noturno.

As orelhas dela eram pontuadas e extensas para o lado, e a pele clara exibia um rubor natural e intenso, como se a natureza vibrasse dentro dela. Suas írises eram brancas e suaves como leite, embora um círculo preto as marcasse bem do restante do olho.

— Então você é o Flamel... — disse um rapaz de tez tão escura quanto a noite, também de orelhas grandes e pontiagudas. Ele me examinou de cima para baixo com olhos carmesins.

— O próprio. — Sorri.

O último garoto ao lado era careca, com um colar de esferas coloridas. Abria pouco os olhos e permanecia em um silêncio eterno. De alguma forma, ele me lembrava do arquétipo de monge guerreiro.

— Prazer conhece-los. — Fiz uma pequena reverência e me aproximei de uma cadeira que ficava ao lado do que julgava ser um “elfo negro” e à frente da “elfa alta”. — Poderia eu me sentar com vocês?

— Claro! — Dolgan riu. — Senta aí. E sem formalidades, por favor.

— Ok. Foi mal.

Ajeitei-me na cadeira e estiquei a coluna, um pouco cansado após as aulas. Quando notei, a elfa encarava meu prato de comida com curiosidade. Ela percebeu meu olhar e sorriu sem jeito.

— Desculpa, ainda me surpreende a culinária humana — disse ela com um sotaque carregado que achei fofo. Então trouxe um pedaço de uma maçã à boca, se deliciando com um longo: — Hummm...

No prato dela havia um mamão, uma banana e uma fruta azul que, mesmo sem saber o que era, fazia minha boca salivar só de ver. A cor era a mesma da energia de mana.

— Acho muito louco como os elfos do Norte se alimentam pouco e praticamente só de frutas e legumes — comentou Dolgan, dando uma garfada no bife do prato dele.

Comecei a comer também. Mas, sempre que me distraía por um instante, meus olhos subiam até as orelhas da garota, ou viam de soslaio o elfo negro. Tentei conter o sorriso que lutava para crescer nos lábios, mas era difícil. Estava realmente em um mundo de fantasia, e não conseguia não ficar animado com isso...

Obviamente havia o lado ruim da magia e dos monstros que geralmente não eram tratados de forma realista nas histórias, mas... eram elfos. Elfos! Igual meu personagem de Skyrim, o Mago Supremo. A raça dos magos mais poderosos nos jogos...

— Pode olhar à vontade. — O elfo me fitou com um sorriso divertido. — Pela sua cara, aposto que nunca viu um elfo negro antes. Talvez nem um elfo sequer, porque você não para de olhar para a Melissa também. — O sotaque dele soou mais grosseiro e abafado.

— Tannivh! — repreendeu-o a elfa. — Deixo-o em paz, ora. No primeiro semestre você vivia dizendo que não aguentava mais conviver com “medíocres”. Dê um tempo para ele.

— E esses que se julgam humanos não são medíocres? Veja. Flamel — ele se virou para mim com olhar orgulhoso —, qual seu talento maior?

— Eu... — A pergunta foi muito repentina. Não sabia tanto do mundo para conseguir me comparar com os outros. Mas foi então que me lembrei da reação da Violette no duelo. — Feitiço duplo?

A expressão de Tannivh perdeu um pouco do brilho inicial.

— Ainda muitos podem fazer isso. Basta conjurar ou arquitetar dois feitiços interligados. Tá vendo? — Ele olhou para os amigos e o sorriu se alargou em triunfo. — Esses “humanos” não são nada demais. Medíocres.

— Dois feitiços de elementos diferentes sem qualquer interligação nas runas — corrigiu Dolgan. — Você pode fazer isso?

Os sobrolhos do elfo se uniram em perplexidade.

— O quê? — Tannivh me encarou. — Como assim?

O rapaz sem cabelos abriu os olhos para me fitar. A serenidade ficou mais... Apreensiva? Tal qual um lago calmo em que surgem pequenas vibrações que quebram a paz. Melissa também me encarava com surpresa.

— É tão raro assim? — perguntei, ignorando o coração se contorcendo com o que Tannivh insinuava sobre a minha “raça” ser medíocre. Que descarado...

— Poderia nos mostrar? — disse o jovem careca.

— Posso tentar...

Na biblioteca antes do duelo com Violette e nas aulas de hoje — aproveitando os tempos vagos de quando o professor pedia que os alunos resolvessem um exercício —, aprendi alguns feitiços básicos. Além dos que já usei, os outros eram coisas simples, como fazer uma bola de água do tamanho de um punho ou um suave redemoinho no copo de água.

Escolhi fazer a bola de água e o fogo ao mesmo tempo, um em cada mão.

Imaginei as duas runas até começaram a se materializarem num azul profundo, acima das palmas abertas. Ao feitiço de fogo, dei a desordem e o caos, injetando mana em diferentes pontos focais; a mana se alastrou desses pontos como fogo que espalha pela madeira.

À runa de água, trouxe a fluidez e a calmaria do elemento, deixando que a mana pingasse ao centro e escorresse até as bordas.

Um filete de suor escorreu pela testa; me invadiu a sensação de ter a mana sendo puxada para as runas, tal qual se força o sangue para fora do braço por uma seringa. Depositei a quantia certa e as runas brilharam. Todo processo se deu em poucos segundos.

Acima da mão direita, surgiu um pequeno e constante fogo; na esquerda, cresceu uma esfera de água azul-escura, com uma textura macia e reluzente.

Um sorriso se alastrou em meu rosto de orelha a orelha. Era a primeira vez que realmente tentava esse feitiço de água e consegui de primeira. Foi uma conquista pequena, mas o progresso me fez tão feliz quanto dominar uma fórmula de física que no começo não entendia bulufas do que o professor explicava.

— Uau... — Melissa sorriu. O jovem calvo fez um aceno de aprovação com a cabeça. Mas Tannivh...

— São feitiços básicos. Qualquer criança consegue fazê-los.

— Então faça dois ao mesmo tempo igual ele — retrucou Dolgan, um tom de voz um pouco irritado.

Tsc. — Cruzou os braços e se virou para frente, fugindo o olhar de mim e do anão. — Isso pode ser algo bem raro, mas não deixa de ser inútil.

— Santa Luna, Tannivh. — A elfa bateu a mão na perna. — É assim que se recebe um amigo novo? Já pensou o que teria acontecido se tivesse tratado Benkei assim?

— O Benkei é diferente. Olha para ele. É um monge. Dedica-se à paz espiritual desde pequeno. Acha que pode compará-lo com um simples nobrezinho de merda que se acha no direito de sentar com a gente só por causa do status dele? “Hihihi, eu sou um senhorzinho que gosta de brincar de bonequinha com meus súditos, hihihi”. Ah, vai se-

Tannivh. — A voz de Dolgan foi anormalmente seca e cortante. — Ele é o meu amigo que te contei sobre. Cala a porra da boca, ou vai caçar seu rumo com a prostituta que te-

É ele? — falou o elfo, interrompendo Dolgan. Então ele se virou para mim com uma expressão assustada e arrependida. — Desculpa! Desculpa mesmo. Não imaginava isso. É só que os nobres daqui são tão...

— Te entendo. — Coloquei a mão no ombro dele e o acariciei.

Claro que meu coração queimava e eu queria socar o rosto dele até fazê-lo se arrepender em cada canto da alma. Mas, mesmo que odiasse aquilo, conseguia entender. Os humanos como eu se autoproclamavam de humanos como se o resto fosse inferior, e, por causa de Cyle, entendia bem o quão mesquinho um nobre pode ser... — Está tudo bem.

Nós dois suspiramos. Nós todos, na verdade.

— Mas, ei, de fato, a sua raça tem um problemão com magia — ele comentou, coçando a cabeça um pouco mais acanhado.

— É?

— Sim. Vocês não têm muito contato com a natureza, aí ficam dependendo de feitiço para isso e aquilo, sem nunca se tornar um com a mana do mundo.

— Isso é verdade. — Melissa concordou com a cabeça, sem muito ânimo. — Benkei tem feito meditação atrás de meditação desde pequeno, e só agora ele começa a ter a mesma afinidade mágica que uma criança élfica.

Cocei a cabeça ao ouvir aquilo.

— Espera... A grade da minha sala é lotada de feitiçaria, e só uma matéria de magia pura. É por isso que... — minha voz desfaleceu, mas um sorriso animado se abriu no rosto. Era uma grande descoberta e surpresa que começava a vislumbrar que explicava muito bem o porquê do cronograma das aulas.

— Isso mesmo. O método de vocês é muito “humano” — respondeu Dolgan. — Compensam a falta de afinidade com magia através de feitiços e mais feitiços. Os anões, por exemplo, têm muita afinidade com magia de alguns subelementos de terra e fogo, como metal e magma. Muitos dos feitiços que aprendemos aqui são inúteis, porque conseguimos fazer mais com magia pura.

— Os feitiços não economizam mana?

— Não necessariamente — respondeu Dolgan. — Nos livros eles ensinam isso, mas só porque são humanos que não exploraram magia direito. Se você se habituar a fazer uma algo com magia, será tão fácil quanto lançar um feitiço com o mesmo efeito. Só demora bem mais do que aprender uma fórmula de feitiçaria...

De uma certa forma, esse tema não era tão estranho ao que vivia na Terra. Não pude deixar de refletir...

Nas escolas, usamos diversas fórmulas que são como “atalhos” ao raciocínio. Em vez de explorar a beleza da ordem das coisas, nos limitávamos a usar fórmulas que condensam toda uma estrutura lógica, e, por vezes, sem nunca aprender o real significado delas.

Quando tive que estudar osmose, era fácil decorar que “a água passa do meio menos concentrado para o mais concentrado”. Ou ainda pior: que “o sal puxa a água”, como alguns professores de cursinho diziam. Mas são fórmulas mentais, e aprendê-las é tão divertido quanto ser obrigado a aceitar um brinquedo sem graça.

Como e por que a água faz esse movimento de osmose? Como as moléculas de água se comportam? Por que o sal altera o fluxo delas?

Refletir sobre isso e aprender essas respostas mais avançadas dá uma beleza impressionante que os olhos não são capazes de admirar. É impagável poder olhar para a água de um copo e saber que lá tem bilhões de moléculas de água em movimentos aleatórios, às vezes conectados a diversos sais minerais.

É algo pequeno e que alguns até julgam inútil, mas colorem o cotidiano com assombro e espanto pelo quão complexo e magnífico o universo é... São, afinal, as pequenas belezas da vida que nos cercam que nos fazem viver com mais cor e alegria.

Talvez esse seja o mesmo caso dos estudantes de magia daqui. Estudam fórmulas de feitiçaria e manipulam a natureza através dela, mas jamais conseguiram se conectar bem com o mundo, compreendê-lo a fundo. Talvez nem se esforcem para isso. E eu os entendo, já que raramente os professores esperam algo melhor deles.

Não que eu pudesse dar muita lição de moral. Era apenas um estudante que, apesar de amar o conhecimento, não conseguiu ter uma rotina consistente de estudos e não conseguiu entrar no curso que queria. Se tivesse focado mais no prazer de estudar que na pressão de ter boas notas, então talvez teria conseguido me manter mais motivado...

— Entendo — falei, saindo dos meus pensamentos. — Isso é interessante. Tenho a impressão de que nós, aprendendo feitiçarias, somos como papagaios repetindo aquilo que os professores ensinam, e nada mais. Recentemente fiz uma pergunta na aula da Zanyt sobre a aplicação de um feitiço de outra forma, e nem isso parece que ela gostou. Querem tudo muito “quadradinho”.

— Isso mesmo! — Tannivh riu. — Só sabe o quão incrível é a liberdade da magia quem pratica. De qualquer forma, esses feitiços não são inúteis de aprender, porque eles não passam de uma “transcrição” da magia real. Executar um feitiço e ver como as runas o produzem ajuda a gente a ter muitas novas ideias de como manipular a magia. Senão, nem teria sentido estudar aqui.

— Mas... — O que ele falou fazia sentido, mas algo me incomodava. Cocei a cabeça, me perguntando se estaria tudo bem perguntar isso: — Vocês elfos não têm uma Academia de Magia que foque mais na magia e não na feitiçaria?

— Pois é... — Melissa intercedeu, suspirando fundo. — Temos sim. Pelo menos os elfos altos sim... — Quando lembrei que as terras dos elfos negros ao Sul foram destroçadas, congelei por dentro. Merda, fiz uma pergunta horrível... — Só que não é uma Academia de Estudo. Até porque não tem tanto o que estudar em magia. É um caminho individual, da pessoa em contato consigo e com a natureza. Só os “humanos” que-

Medíocres — corrigiu o elfo. — Com exceção do Flamel. Ele parece ser diferente.

— Cala a boca. Tsc. — Ela deu um suspiro profundo e seu tom de voz se fez irritado. — Enfim, só os “humanos” que chegaram a fazer teorias mais “objetivas”. Tudo que temos na literatura élfica são centenas de obras muito pessoais e pouco didáticas. Por isso, apesar de tudo, vale muito mais a pena estudar aqui.

Acenei que sim com a cabeça e caí em uma momentânea meditação. Recapitulei os conteúdos que estudei do livro de capa brega da biblioteca, e o agradeci por ter sido aprofundado mais do que deveria, a ponto de me contextualizar sobre a cultura dos elfos. Por causa disso que pude sequer pensar nessa pergunta:

— Caramba. Não sabia disso. É realmente muito melhor poder estudar as coisas a fundo. — Sorri meio sem jeito. — Mas não sabia que os elfos tinham contato assim com outras raças. É proibido casamento “interracial” para vocês, não é?

Melissa me fitou por um momento, como se processando tudo que ouvira. Então começou a rir com a mão tampando a boca, a postura encolhida no assento.

— Até certo ponto é verdade. Mas... — parou a fala para ajeitar o cabelo que havia caído sobre a face enquanto ria. — Nós temos muitos clãs, né? Temos a cidade de Elkrut que junta a maioria deles, mas há terras de outros clãs mais isolados, com outros entendimentos do que pode ou não ser feito. O meu é um desses, e ele não liga muito para isso. Um dos fundadores era até um elfo negro.

— O quê?! — Tannivh fez parecer que Melissa falava um tabu de tão boquiaberto que ficou. — Vocês? O povo mais racista que tem?

— Os elfos negros também não tem nenhum histórico de se associarem a outras raças, senhor Tannivh. — Ela cruzou os braços e o encarou com tanta intensidade que uma artéria pareceu pulsar em seu rosto.

— A gente não tem preconceito disso. É só porque nos distanciamos de tudo para conduzir nossas pesquisas em magia...

— Não tem preconceito? — perguntei em um tom irritado, após todos comentários dele. Talvez tenha cometido um grande erro, porque...

— Não se trata de preconceito. Se trata de uma raiva muito válida a uma raça mesquinha igual a sua, que viu meu povo morrer e não fez merda nenhuma além de ficar comendo banquete roubado dos lavradores e coçando o cú depois de cagar das janelas dos palácios.

— Tannivh! — Dolgan gritou, fazendo alunos de outras mesas se virarem para ver o que acontecia. — Já chega — passou a cochichar, evitando mais atenção. — O Flamel tem nada a ver com isso...

Respirei fundo, muito fundo. Era horrível e totalmente injusto ser culpado por algo que não fiz, apenas porque carregava o sangue de algum imbecil. Sentia meu peito borbulhando, ardendo como um caldeirão. Esse Tannivh...

Foi então que senti algo coçando a minha perna de levinho. Fiquei curioso e olhei para baixo. Notei que era o sapato de alguém; mais especificamente o sapato de Benkei, o qual sorria para mim com uma paz que lembrava a brisa serena do mar de quando me sentava na praia. Amava descansar a cabeça lá quando me sentia sobrecarregado...

A ação dele quebrou a mistura fervilhante do meu coração, lançando um pouco mais de compaixão nela. Agradeci mentalmente ao monge e surpreendentemente ouvi-o dizer:

— Perdoar é difícil, mas vale muito a pena.

Não importava quanto olhasse em seu rosto, não via os lábios se mexendo enquanto falava. A voz foi em tão alto e bom tom que era como se ouvisse minha própria mente.

— É apenas uma pequena magia mental, não fique surpreso. — Ele riu, mas a expressão de seu rosto permaneceu calma e imóvel. — Tivemos que aprendê-la para falar sem incomodar os outros monges que meditavam. Aproveito também para dizer que sua mente está aberta e pouco protegida. Posso te passar alguns mantras de proteção, se quiser.

Um sorriso torto se alastrou pelos meus lábios. Aquilo era uma linha tênue entre algo que deveria me causar tanto admiração quanto medo. Afinal, embora fosse magnífica a possibilidade, ele conseguiria ler meus pensamentos o quanto quisesse?...

— Não, não posso ler seus pensamentos livremente — respondeu-me ele telepaticamente. Meu coração parou por um segundo com essa resposta inesperada. — Ninguém pode, na verdade. Magias da mente não podem tirar a liberdade de alguém. Se estou ouvindo seus pensamentos, é porque você tem o desejo de falar comigo, no caso de me perguntar sobre suas inquietações.

“No máximo”, continuou ele, “um mestre pode aumentar o desejo de alguém por algo, mas jamais obrigar a mente ou o coração a fazer algo que verdadeiramente não quer.”

Aquilo era... Fantástico. Mas e feitiçarias de obrigar a falar a verdade, como a que Tokewater havia usado em mim? Então...

— É natural do ser humano ter vontade de expressar suas dores e verdades. Ajuda a aliviar o peso do peito. Talvez ele apenas tenha feito essa vontade sua ser irresistível, mas também porque você permitiu que ele o fizesse, não foi?

De fato eu havia o ajudado. Deixei que Tokewater pusesse as mãos na minha cabeça e aceitei qualquer feitiço que ele produzisse...

Mas, mesmo que Benkei estivesse me ajudando, falar assim na minha mente e ler meus pensamentos era inconcebível.

Finalize a conexão antes que pense mais, disse minha mente. Imagine um cordão azul que conecta você e o monge se partindo no meio com a espada sagrada do deus da Justiça ou do combate. Ou, melhor, pense em São Jorge fazendo isso por você.

Não sabia se eu deveria me impressionar que ele sabia sobre-

Não pense mais. Faça isso logo. Agora.

Obedeci às ordens e imaginei a conexão sendo rompida. O monge levantou uma sobrancelha com o acontecido, mas sua expressão não se alterou mais que isso.

Só então que respirei pesado, o coração acelerado. Percebi que quase refleti sobre como a voz na minha cabeça conhece até a religião cristã do meu mundo...

A conversa do grupo se prosseguiu, mas não consegui largar da cabeça tudo que acontecia. Até onde o monge leu meus pensamentos? O que diabos era aquela voz para saber de São Jorge? E...

Não importava quanto meus olhos percorressem o restaurante, não via a Violette em lugar algum. Ela estava bem? O rosto dela se fez tão frio no final da conversa... E a silhueta dela andando, geralmente balançando os quadris, tinha se tornado reta e pesada como um tronco de árvore...

Talvez ela simplesmente tenha se revoltado com algo que fiz. Talvez eu devesse ter dito que aceitaria a responsabilidade dos meus flertes com prazer. Fui um idiota, mas não seria verdadeiro e honesto com ela e nem comigo mesmo se decidisse seguir aquele caminho...

Pior ainda, porém, era saber que a Academia podia não ser segura. Se ela não estava aqui com todos...

Não consegui mais me concentrar nem me encaixar no diálogo, apesar de Dolgan tentar me incluir nele diversas vezes...

Internamente perdoei Tannivh, conforme Benkei me orientou. Assim que a raiva passou, consegui pensar com mais impessoalidade e pude perceber que não era fácil para ele. Teve a própria raça dizimada, não contou com apoio da minha e ainda veio parar numa Academia em que os “nobres humanos brancos” devem pegar no pé dele. Se eu sou nobre e branco, então ele...

Isso pouco justificava, claro, como me tratava inicialmente. Era nojento. Não carrego responsabilidade por aquilo que não fiz, mas era entendível a raiva dele. Entendível o bastante para perdoar.

De toda forma, mesmo que me sentisse bem com todos ali, tinha preocupações maiores que a conversa. Foquei em terminar o macarrão rápido para procurar pela Violette. 

E assim o fiz. Em cinco minutos, me despedi de todos, agradeci pela recepção, Tannivh pediu desculpas que eu prontamente perdoei, e me pus a perambular pelos corredores em busca de Violette.

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