O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 34: Cafuné à luz da lareira

Limpei o suor da testa e chequei as horas no relógio que a Hayek me deu. Os ponteiros indicaram faltarem cinco minutos para as aulas de tarde retornarem, às 13h.

— Merda...

Procurei a Violette pela sala de aula, biblioteca, corredores, pátio... A Academia era gigante, com diversas instalações, mas vasculhei as mais prováveis de encontrar um estudante normal... sem resultado algum. O que aconteceu com ela?...

O lado bom é que, na biblioteca, lembrei de pedir a Tokewater pelos livros das disciplinas. Foi uma pilha quase maior que eu. Deixei-a na porta do meu quarto do dormitório, sem coragem de adentrar nele, para procurar livremente pela garota. Mais tarde transportaria aquela montanha de conhecimento ao cômodo subterrâneo.

Espreguicei os braços cansados e fui até o quarto dela, minha última parada antes da aula. Bati na porta, alto suficiente para ser ouvido sem dúvidas. Aguardei segundos, um minuto... Nada. Bati outra vez.

— Violette? — falei alto.

Mais outro minuto se passou. Sem resposta.

Suspirei fundo e cocei a cabeça, sem saber ao certo o que fazer. Talvez ela já tivesse voltado para a sala de aula enquanto a procurava. De qualquer forma, faltavam dois minutos para o primeiro horário de tarde. Merda.

Corri, primeiro até a pilha de livros para pegar os materiais das próximas aulas, depois me disparei à sala. Estava preocupado se eu perderia a pontualidade, mas muito mais ansioso com o paradeiro misterioso da Violette...

 

 

Ela também não estava na sala de aula. A única pessoa nova que lá encontrei era um professor que não soube se deveria chamar de homem ou mulher. As laterais do cabelo eram raspadas com degradê, a parte superior descolorida e abundante penteada para trás. Os traços do rosto branco eram finos e delicados. O usual uniforme da Academia era recoberto por uma jaqueta preta com correntes, que me lembrava do estilo rock ‘n roll.

Só soube que era o professor por causa do brasão vermelho que carregava no peito, marca característica do magistério. Usualmente ela vem junto de um longo robe que desce aos pés, dando a impressão de ser um mago místico e poderoso. No caso deste professor, era só a insígnia ao peito que revelava sua identidade, sem a capa.

Não importava no que prestasse mais atenção nele, tudo era distinto. Diferente desse professor, todos que conheci nesse lugar, embora ligassem para a aparência, não faziam disso uma marca tão distintiva da identidade própria, ao menos não de forma intensa. Os acessórios que usavam pareciam ser mais simbólicos que estilosos; eram os gestos, palavras e crenças que atuavam como o bálsamo que diferenciavam cada um.

Vê-lo era como estar em um museu de obras clássicas e antigas, e então de repente se deparar com uma arte pós-moderna que quebrava toda a harmonia e “perfeição” dos quadros realistas.  

— Pois bem — soou o professor, com uma voz mais feminina do que eu esperava. — Vamos continuar nossas lições de feitiçaria de raio com algo mais... teórico hoje. — A turma deu um suspiro longo em uníssono. — Sei que vocês queriam algo novo como sempre, mas às vezes não dá. — O professor coçou a cabeça, a testa parecia que suava um pouco. — Estamos um pouco atrasados no conteúdo, então vamos focar hoje?

A aula que se seguiu foi surpreendentemente agradável. A professora, que logo descobriria que se chamava Carla Martinez, era atenciosa com os alunos. Talvez até demais, do tipo que, se pedirem para dar trabalho em vez de prova, ela estaria disposta a barganhar — o que de fato ocorreu.

Foi uma experiência singular observar os nobres, tão pomposos em seus modos exceto quando comiam juntos, assumirem o papel de estudante sobrecarregado e injustiçado, clamando por misericórdia nas avaliações. Até o Cyle entrou nessa:

— Professora Carla, será que realmente não pode nos dar um trabalho no lugar da prova? — havia perguntado ele, enquanto a professora tentava boçar uma resistência que ninguém levaria a sério. — A professora Zanyt não cansa de dar trabalho para a gente... O professor Kuhn toda aula é um livro inteiro para ler. Claro que a nossa sala tem alguns elementos estranhos que conseguem acompanhar o ritmo... — Ele olhou de soslaio para mim com um sorriso irônico. A sala percebeu e riu. Que filho da... — Mas estamos tãaaaoo sobrecarregados...

Alguns colegas lhe dirigiram um olhar repleto admiração e respeito, como se Cyle fosse o arauto das boas novas, o guardião dos interesses da turma. Seria algo engraçado e bonito de se ver, se aquele descarado não fizesse isso por mero interesse próprio, ou ainda só para ganhar reputação...

Afora questões como essa, Carla seguiu com diversos feitiços, explicando detalhadamente como usá-los, em quais contextos poderia ser viável...

Nem mesmo a professora escapava de entender o clarão amarelo como raio, em vez de eletricidade. Mas, mesmo assim, parecia capturar bem a essência do fenômeno, pela forma como falava da violência e rapidez do raio. Ela associava a justiça fervorosa à brutalidade do trovão.

Era engraçado e didático ouvir isso. Humanizar a eletricidade como uma entidade justiceira me remetia a mitos religiosos de algumas religiões. Talvez, pensei eu, se magia se trata de uma conexão individual com o elemento, então humanizá-los pode me auxiliar a compreendê-los de forma mais pessoal...

Os feitiços ensinados em sala também foram incríveis. Carla nos deu um tubo de metal oco aberto em um só lado, que era coberto por uma lente de vidro. Estava encantado com uma longa cadeira de runas; ela ensinou a sequência de quais ativar e como, para que...

O tubo acendesse, igual uma lanterna. O brilho era amarelado e fosco. Carla dizia que era o “clarão do raio” que se multiplicava atrás da lente de vidro, emitindo a luz constante. Fechamos as janelas para observar isso melhor. No começo foi tentador explorar o potencial disso, mas...

— Haha! Tira isso do meu rosto! — gritou Anna, tomando uma “lanternada” de luz do Cyle. Outros alunos seguiram o mesmo plano diabólico, fazendo ela se tornar um chafariz de luzes. As risadas cresceram a ponto de esconderem a voz da Carla, que tentava reconduzir a aula.

...Até nobres, com educação refinada, conseguem se tornar esses animais se permitidos...

Não que eu pudesse julgar, porque fiz o mesmo com Dolgan, apenas para receber o fraco brilho da lanterna de volta. Rimos e, no instante seguinte, encarei a cadeira vazia de Violette. Minha lanterna a iluminou, mas não se refletiria em quem mais queria ver ali...

Era um momento feliz para todos, mas a falta da Violette ressoou com a mesma inquietude de uma nota errada e estranha no meio de uma sinfonia...

Parei de brincar com a lanterna e a empunhei firme, primeiro para descontar a aflição no peito, depois porque isso me lembrava da espada que segurei durante nossa luta. Era a primeira vez que empunhei uma arma para valer...

Minha mente estava dividida entre prestar atenção na aula e querer procurá-la. Não aceitando viver algo meia-boca, me concentrei na professora. No intervalo faria outra busca por ela.

O horário de estudos acabou e me coloquei nos corredores antes que Dolgan ou alguém tentasse me distrair do que mais importava.

 

 

— Merda...

Ao meu redor havia apenas grama, árvores e alguns insetos andando pelos troncos. Estava no local perto do dormitório, onde começava a trilha que descia ao riacho e à floresta com lobos. Fiquei de pé na entrada do caminho.

Havia procurado Violette por todos lugares que poderia com meu acesso de estudante. Sem sucesso.

Agora dava a volta por aqui, na esperança de encontrá-la por acaso. Por quanto mais locais passava sem a achar, mais pesado era puxar o par para os pulmões. Ela conseguiria se proteger se algo como aquela mulher-monstro aparecesse?...

Meus olhos fitaram a mata com mais intensidade. Diante de mim, abria-se um caminho estreito entre as árvores sem vida, com um teto feito de galhos ressecados pelo frio invernal. A luz do Sol adentrava timidamente, tornando o local mais escuro. Era como uma passagem de um bosque obscuro, do tipo em que jamais entraria por vontade própria.

Dei uma pisada à frente, mas hesitei e parei. Não fazia sentido ela estar lá. Por que vim para cá, a começo de conversa? Seria mais fácil bater na porta dos banheiros e...

Uma lembrança sutil percorreu minha mente. Quando quase morri nessa floresta, foi ela quem me encontrou e me resgatou. Em algum momento, passou pela minha cabeça a possibilidade de reencontrá-la aqui, e só agora essa informação era recuperada. Mesmo tendo esquecido disso, meus passos continuaram até aqui.

A forma como o cérebro humano funciona me fez sorrir de ironia. São tantas camadas de pensamento...

Respirei fundo, afirmando para mim mesmo que estaria tudo bem entrar lá de novo. O que tinha a temer? Estava mais preparado que antes. Certamente estava... Era claro que eu...

Ahh... — Suspirei fundo. Mentir para mim mesmo não adiantaria. Ainda assim, não deixaria a Violette passar por risco...

Assim que dei outro passo, ouvi o som de um galho se quebrando atrás de mim. Um arrepio se espalhou por todas minhas costas.

— Flamel? — disse uma voz que era a de... Guinevere, logo atrás de mim.

Virei-me e meus olhos encontraram a face da garota loira, as sobrancelhas dela unidas em confusão. Vestia o uniforme da Academia, o cabelo tinha uma franja que descia até a altura dos olhos, e atrás de cada orelha começava uma trança, ambas se encontrando atrás da cabeça em um nó. Era igual à Guinevere que vi no refeitório e nas aulas. Mas...

A possibilidade de ser um monstro de novo me fez recuar um passo. Senti meus membros perdendo o calor do sangue e se tornando gélidos.

— Guinevere? — falei, a ansiedade fez minha voz sair estridente e trêmula.

Ela deu um passo para trás e os olhos se abriram em espanto, até começar a sorrir desajeitadamente, de um jeito meio apologético.

— Desculpa, acho que te assustei...

Engoli em seco e analisei cada fragmento visual dela outra vez. Examinei-a da cabeça aos pés. Não parecia ter nada de errado. Mas o que se poderia esconder atrás da aparência, onde os olhos não podem enxergar?...

Recebendo meu olhar penetrante, os lábios dela murcharam, os olhos preocupados. 

— Flamel? Tá tudo bem?

— Por que você está aqui?

— Estava... — Ela desviou o olhar e juntou as mãos, inquieta. — A janela do meu quarto dá uma vista boa daqui. — Guinevere virou e apontou na direção do dormitório, mas as árvores não me deixaram ver o lugar. — Vi você aqui e achei estranho, então vim checar se está tudo bem...

— Entendo. — Assenti, ainda meio receoso. — Você... — deixei a voz morrer, refletindo se realmente valeria a pena ser tão insistente com ela. Mas segurança estava acima de ser agradável... — Consegue provar que é você? Desculpa, é só que...

— Está tudo bem. — Ela sorriu de um jeito tão meigo que senti meu coração vibrar por um instante. — Não poderia te julgar, passou por muita coisa... Posso andar até aí? — perguntou ela com tanta delicadeza, num tom tão compreensivo e preocupado que instintivamente relaxei um pouco. Ela sempre soava como uma cama confortável após um dia de trabalho pesado...

— Pode. — Assenti, mas logo balancei a cabeça para os lados e comecei a andar até ela. — Não, perdão, vou aí.

— Não, pode deixar. — Ela começou a andar até mim também, até pararmos na frente um do outro.

Guinevere era um pouco mais baixa que eu, mais alta que Aithne e “três centímetros mais alta que a Violette”. A memória de ela falando isso na sala de aula me fez sorrir.

Entreolhamo-nos em silêncio por alguns segundos. Procurei em seus olhos algum resquício de anormalidade; não encontrei, mas a beleza daquele mar profundo que recobria suas pupilas me fez encará-lo mais do que deveria.

— Então? Posso? — Guinevere levantou a mão e a aproximou lentamente da minha testa. Fechei os olhos, aceitando que me tocasse.

— Sim.

A pele quentinha dela abraçou o topo da minha face, bem suavemente. O calor aumentou um pouco, se fazendo ainda mais confortável, e se irradiou para o rosto e a cabeça inteira...

Era a Guinevere, definitivamente era ela. Seria impossível não reconhecer aquela mana carinhosa. Quem já bebeu um suco que amou sabe como é impossível não reconhecer quando acabar se reencontrando com a mesma marca ao acaso.

Inconscientemente dei um passo tímido à frente, querendo sentir mais daquela energia. Sentia-me como alguém que, após passar um dia inteiro sem beber água, agora tinha sede finalmente saciada, querendo beber o máximo que pudesse.

Ela deu uma risadinha feliz.

— Ei! Para de puxar minha mana, seu bobo.

Ri também. Mas, em vez de tentar parar, imaginei a mana dela fluindo com ainda mais intensidade em mim. Um sorriso travesso tomou conta da minha face, expondo minhas intenções criminosas.

Ai! — Ela riu mais, como se fizesse cosquinhas nela. — Para, Flamel. É sério.

Já satisfeito com meu pequeno furto, freei um pouco o fluxo de mana. Fiquei surpreso com o controle que agora tinha sobre a mana, mesmo que fosse uma conquista pequena. As sessões de meditação com a Aithne realmente foram eficazes...

— Muito bem.

A despeito das palavras dela e de ter provado quem era, ela não retirou a mão da minha testa.

— Guinevere?

— É... Sabe, a mana... A mana pode ser replicada por algum monstro, não é? É... não, esquece... não pode... — desmentiu ela mesma. — Mas eu poderia ser outra pessoa disfarçada! Então... não é o bastante só te mostrar minha mana. Talvez eu deva ter que... te mostrar uma memória nossa?

Ela estava... tentando criar uma desculpa para isso? Memórias juntos? Fiquei curioso sobre o que ela planejava com tudo aquilo... Abri os olhos e a fitei, mas a mão dela rapidamente se abaixou, tampando meus olhos.

— Sem bisbilhotar.

— Guinevere...

— Sim ou não? 

— ...Vai em frente.

A mana dela pareceu dar um salto de euforia dentro de mim, alegre. Podia prever o sorriso que esbanjava no rosto dela.

— Ok! Então... Se lembra de quando seu pai veio visitar o meu para conversarem sobre negócios e você veio junto? E, para não ter que pegar estrada à noite, vocês dormiram lá?

— Eh... M-mais ou menos. — Das opções que tinha para falar, a única que parecia me expor a menos riscos seria essa.

Arrependi-me um pouco ao sentir a mana da Guinevere retraindo, triste, um pouco atingida. O contraste que isso fez com a mana dela outrora alegre e saltitante foi como uma flor murchando, perdendo suas pétalas e seu perfume.

Engoli em seco, uma vontade de confortá-la arranhando meu peito. Ela não merecia isso...

— E-está tudo bem... — disse ela com uma voz realmente chateada, apesar de me confortar. — A gente era pequeno... É só que... Posso te mostrar essa memória? Só ela? Aí você vai acreditar que sou eu?

— Eu já-

— Shhh. Você precisa de mais provas. Posso te mostrar?

Demorei para responder, receoso de que abrir minha mente poderia significar expor minha identidade. Ela continuou:

Por favor...

Não haveria alguém que se diga humano que recusaria o pedido dela naquele momento. Minha mente também não apitou contra isso, então deveria ser seguro...

Fiz que sim com a cabeça e repousei a mão em seu ombro, o dedão acariciando a pele através do tecido do uniforme.

— Claro — falei. — Por favor.

Esperava não me arrepender da escolha. Era uma pequena, mas, não raramente, são os pequenos momentos que deixam marcas profundas no coração e que mais se gravam na memória, tanto para aquecer o peito quanto para insistir em uma lição que ignoramos.

— Obrigada — disse ela. — Aguarde um minuto, por favor. Não sou muito boa com magia da mente...

Percebi a modéstia em suas palavras quando, em pouquíssimos instantes, o mundo começou a rodar. Manter-me em pé às vezes era como estar dependurado no teto, mas com o peso sobre os pés, ou me manter ancorado na parede lateral. Uma descrição melhor seria tentar ficar de pé em um skate percorrendo um loop.

Estava prestes a desabar no chão, quase vomitando. Assim que iria ceder, parei de sentir meu corpo. Não rodava mais. Não havia peso sobre os pés. Nem pés havia. Era como se eu tivesse parado de existir.

Aos poucos, pintou-se diante de mim um corredor iluminado por tochas vermelhas que mal quebravam a escuridão do local. As paredes eram de madeira escura, lustrosa e bem-polida, com pinturas de grandes senhores bem-vestidos, a maioria de cabelos loiros.

No chão, sentada no grosso carpete marrom, estava uma menina de cabelos leves e dourados. Com as pernas unidas e abraçadas, ela repousava a testa nos joelhos, escondendo-se do mundo. Era muito pequena no corredor sombrio, um único traço de vida quase imperceptível, frágil.

De repente, um raio fez clarear o corredor. Poucos instantes após, rugiu dos céus um fervoroso trovão que fez a mansão tremer e o brilho das tochas oscilarem, recobrindo de escuridão onde ela estava.

Como se fizesse parte do edifício, ela tremeu também. Pude sentir em mim o frio na barriga que com certeza a atormentou, o coração acelerado e palpitando com medo e explosividade em cada batida...

Desci ao chão e tentei tocar-lhe a cabeça, mas minha mão a atravessou sem qualquer resistência...

Outro trovão retumbou do céu tempestuoso. Ela soltou um grunhido abafado, amedrontada e desamparada, sem lugar para ir. Sentei-me ao lado dela e aguardei pelo que aconteceria, tentando entender por que ela estava lá.

Então notei que, do outro lado do corredor, uma luz amarelada se aproximava, rompendo as trevas e trazendo a luz dourada que os majestosos quadros mereciam.

Chegou perto até parar na frente da garota. Era... um menino igual a mim quando pequeno, de cabelos negros e pele branca, carregando uma pequena luminária.

Ele olhou para ela por um tempo, piscando os olhos, como se certificasse de que a garota não desaparecia como um espírito.

— Guinevere? — disse ele, antes de se ajoelhar ao lado dela. Cochichou perto do ouvido dela: — O que está fazendo aqui?

Ela o encarou com olhos tão trêmulos quanto os braços que se recusavam a se aquietar. Abriu os lábios e disse baixinho:

— Flamel... Quadros. Muitos quadros... Esses — apontou para os perto deles —, seguros. Aqueles — esticou o dedo na direção do outro lado do corredor —, medo.

Flamel suspirou e sorriu.

— Tudo aqui me dá medo também.

Guinevere apontou para o quadro logo acima dela.

— Papai.

Os olhos do garoto seguiram a indicação e vislumbraram um senhor de barba loura extensa como uma juba de leão, os olhos afiados e intensos. Expandia o peito como um bravo guerreiro, senhor do mundo. Nada poderia ir contra aquele homem.

— Mhm. — Ele estendeu a mão para a menina depois de observar o quadro. — Vamos voltar para os quartos? Posso te acompanhar.

Ela balançou a cabeça para os lados ferozmente.

— Não. Aqui. Pinturas lá.

— Ok... Quer vir para meu quarto? É logo ali. — Ele apontou para uma porta próxima deles. — Meu pai estava soltando muitos puns. Por sorte, quando fui ao banheiro, encontrei um mordomo indo se deitar. Ele deixou que eu dormisse nesse outro quarto.

— Sério? — O semblante dela se abriu com esperança nos olhos.

— Sim. Vem. — Pegou a mão dela e a levou até uma porta de madeira, trazendo a luminária na outra mão.

Flamel a abriu, a madeira velha rangendo ao ser empurrada. Da abertura, encontraram um quarto espaçoso e luxuoso como o restante da casa. Uma lareira exibia um fogo exuberante, cortando a noite com um farfalhar relaxante. A iluminação dela era clara o bastante para dar segurança e conforto, suave o suficiente para não atrapalhar o sono.

— Uau... — Os olhos dela encararam tudo com um brilho fofo de se ver.

Hehe. — O pequeno Flamel deu um sorriso orgulhoso e feliz.

Esse Flamel... Ele sabia encantar o coração dessas pequenas damas, não é? Que garanhão... Talvez fosse estranho, mas ver minha versão em miniatura se dar bem assim era reconfortante, até por eu ter sido o oposto disso na Terra.

Em pouco tempo, os dois reencontraram na cama o conforto que tanto buscavam, sentados um do lado do outro. Guinevere, com os olhinhos pesados de sono, recostou o ombro no dele. Ele se surpreendeu por um segundo, mas sorriu e envolveu seus ombros com o braço.

Tentada pelo conforto, a garota começou a fechar os olhos contra a vontade. Cada vez que o fazia, a cabeça caía junto, acordando no mesmo instante com um pequeno susto. Em uma dessas recaídas, ela deslizou pelo ombro dele e parou em seu colo. Já ia se levantar, quando Flamel começou a acariciar suavemente o couro cabeludo dela.

Como um cachorrinho recebendo carinho do dono, ela se enrolou no colo dele e suspirou fundo, relaxada.

Hummmm... — ronronou ela, parecendo a menina mais feliz do mundo.

Logo parou de se mexer, com exceção dos cabelos com que Flamel brincava de pentear gentilmente.

Para Flamel, ela estaria dormindo, debaixo do sorriso meio sem jeito dele. Contudo, para mim, que observava a cena pela porta do cômodo, vi que de vez em quando ela beliscava o próprio dedo, em uma secreta tentativa de se manter acordada para aproveitar mais o carinho.

Após um longo tempo, Flamel bocejou e, tendo certeza que ela dormiu, começou a se preparar para deitar. Nesse momento, Guinevere se mexeu um pouco agarrou a perna dele mais forte. Ele sorriu, meio cansado, e continuou a coçar a cabeça dela.

Esse ciclo continuou a se repetir de novo e de novo. Talvez ele se perguntasse como ela sempre acordava assim que terminava de acariciá-la, como se tivesse um alarme que a alertava sobre o imenso crime de parar com o cafuné.

Um sorrisinho quente cresceu em minha face.

Quando já era por volta de uma hora daquele carinho, Flamel começou a cair no sono mesmo sem deitar. Guinevere percebeu e o deixou finalmente adormecer, aninhada junto dele. Em algum momento da noite, ele a abraçou como um travesseiro, e ela, como uma mochila, se encolheu em seu peito.

Outros trovões cortaram a chuva forte da noite, mas, se ela tremeu, não consegui perceber. Era um calor que se erguia contra a frieza do temporal.

O mundo começou a se borrar, como se meu grau de miopia aumentasse a cada segundo. As formas vagas dos dois eram coloridas pelo laranja da lareira e recheadas pelo som da água respingando contra a janela ritmicamente. No céu atrás dos vidros, estendia-se uma noite nublada e tormentosa, mas, se olhasse bem, veria que mais adiante, no fundo da paisagem, o tempo estava claro, com o vago brilho da lua a iluminá-los.

Tudo se tornou embaçado o suficiente para que não pudesse mais nada ver, mas o carinho que vi continuou acalorando o coração.

Satisfação tomou minha mente por, além de tudo, ter ganhado uma nova peça do quebra-cabeça: essa cena que presenciava era a mesma que imaginei no dia em que acordei na enfermaria e cocei a cabeça da Guinevere, após ser perseguido pelo monstro. Lembrava-me apenas da lareira desse quarto. Era uma memória que o cérebro desse corpo tentava desesperadamente invocar, como algo importantíssimo e querido, mas sem sucesso.

Talvez Flamel fosse eu em “outro universo paralelo”. Ou, mais provável, eu permanecia com algumas de suas memórias, tal como tinha seu dom.

Ou, ainda... Lembrei-me do garoto que vi na beira do rio. Tendo visto Flamel quando criança agora, não me restava dúvidas de que eram a mesma pessoa. Lembrei de ele ter me dito que era difícil estar longe da família, e que eu sabia quem ele era. Era tão óbvio, e não tinha sido capaz de perceber...

Abri os olhos, sentindo-os ardendo com algumas lágrimas contidas, e me vi diante de Guinevere, que estava igual a mim. Sorrimos um para o outro, mas uma angústia fincou meu coração...

— Você sempre foi uma pessoa especial para mim, desde aquele dia — disse, as palavras que não eram minhas fluindo de mim, pegando emprestado não só minha garganta, mas o coração que latejava em uma dor profunda. Cada batida dele era como uma facada que o rasgava ao meio. — Mas por que nunca mais aceitou me ver?... Por que fugiu de mim?... Mesmo te vendo aqui, achei que me queria longe...

Ela me encarou e começou a chorar. Lágrimas escorreram do rosto tão intensas quanto uma cascata.

— D-desculpa. Desculpa mesmo... Na manhã seguinte, uma empregada nos viu dormindo juntos. Contou ao papai, que me proibiu de nos vermos outra vez...

Ela não tinha culpa. Nenhuma. Eu, Michael, tinha pena e empatia por ela. Mas o sentimento de abandono e de ter sido ignorado e desprezado fez meu sangue se tornar ácido, e o coração, machucado. Queria protestar, espernear, mas...

Suspirei fundo. Muito fundo, mais do que jamais o fiz. Esse sentimento não me pertencia. Não. Não sabia se o Flamel era uma projeção das memórias dele, como uma personalidade inconsciente, ou se o espírito dele realmente ainda estava me acompanhando. Independente disso, não seguiria esses gritos do coração dele.

— Está tudo bem... — falei, tentando soar o mais positivo possível, mas o tormento interno ainda tornando a voz meio fria. — Eu te entendo. Não é culpa sua...

— Você se sentiu abandonado, não foi? — Ela se aproximou de mim e atirou a face ao meu peito, escondendo-se nele semelhante a como fez naquela noite quando criança.

Sem uma pista sequer do que fazer, a abracei de volta. Deixei-a descansar por longos minutos, o choro dela abafado no meu uniforme.

Não esperava isso de uma garota de alta classe como ela, galanteada por Cyle e vista com admiração por todos. Diferente de Aithne, a história dela com Flamel pareceu ter somente esse episódio marcante. Era curta e breve. Ainda assim, ela parecia nunca ter sido capaz de encontrar outra pessoa que trouxesse o mesmo conforto que aquele que sentiu na frente da lareira, infligindo dor em si mesma só para não dormir e aproveitar mais...

Diferente de quando aconteceu com Aithne, não iria revelar para Guinevere a verdade sobre Flamel. Agora eu tinha com quem desabafar e buscar conselho. Procuraria a Aithne antes... Uma pessoa sabendo sobre quem eu era já bastava...

Essa decisão pouco mudava o fato de que tinha uma garota chorando no meu peito, e que, mesmo sem intenção, falei coisas ásperas. Queria acariciá-la igual fiz com Aithne, confortá-la por completo, mas...

“Desculpa, Guinevere. Não quero que nutra um amor por mim que nunca poderei ser capaz de retribuir”, pensei. Apenas a abracei, como um porto-seguro em meio à tempestade que, embora fosse confortável e seguro, estava fadado a ser temporário.

Quando ela finalmente deu um passo para trás, escondeu o rosto e se virou de costas.

— Vamos — disse ela, caminhando em direção da saída da trilha.

Acompanhei-a no percurso de volta. Fiquei um bom tempo me perguntando o que poderia lhe dizer, mas não havia o quê. Ao mesmo tempo que queria que ela soubesse seu valor, não poderia a iludir...

Mordi os lábios e pronunciei, ousando no meio da incerteza:

— Eu te perdoo, Guinevere. E te entendo. E, na verdade, eu menti para você. Nunca me esqueci daquele dia.

Os passos dela pararam. Olhei para ela e a vi me encarando com os olhos arregalados e as bochechas rosadas. O rosto ainda estava molhado com as lágrimas de antes.

— O-o quê?...

Engoli em seco. Estava nas minhas mãos um coração puro igual o dela. E, sem dúvidas, uma garota como ela era o que eu mais queria na minha vida. Alguém com quem construir um lar seguro e confortável, beijá-la toda manhã com um sorrisinho no rosto... Alguém que eu sei que estaria lá por mim quando precisasse, para me abraçar, me confortar, e me deixar fazer o mesmo...

Era um futuro que eu poderia ter com ela. Bastava fingir ser Flamel e conseguiria explorar todo aquele conforto e paz. Tê-la só para mim, segura no meu peito. Não só pagaria o preço de coçá-la por uma hora de madrugada, como o faria sorrindo de orelha a orelha. Eu a protegeria e a valorizaria como ninguém faria...

Sem perceber, meu coração pulou dentro do peito como uma borboleta alçando seu voo. Estava nervoso. Ansioso. Ela era linda. Simpática. Gentil. Esforçada. Disciplinada. Podia-me perder em cada traço do rosto, contemplar as profundezas do oceano nas janelas de sua alma, admirar os cabelos belos como o nascer-do-Sol. Mas...

— É. Foi uma lembrança que me aqueceu por muito, muito tempo. Você me foi muito especial. Só tenho a agradecer pelo nosso passado.

Falei aquilo e, com toda coragem do universo, me virei de costas, seguindo pelo corredor sem esperar por ela. Naquele dia, senti meu coração sangrar, dilacerar-se. A gota de sangue que escorria em meu peito era tão doída quanto a lágrima que veria descer pelo rosto de Guinevere naquele momento, se a olhasse.

Sim, para ela, agora o Flamel era muito grato a ela, mas pelo passado já sentenciado, já finalizado. Os dois eram uma memória.

Se Deus existisse mesmo, esperava que me perdoasse por ter feito uma garota inocente chorar... Mas, quando se tratava do certo, nenhum pensamento ou consequência o faz deixar de ser certo. Não conseguia pensar em uma escolha mais ética que essa. Apesar disso...

Em um só dia, magoei Violette e Guinevere.

Não conseguia mais pensar direito. Como um robô, mantive meus passos mecânicos até entrar na sala de aula. Sentei na cadeira e fingi ver uma aula que não via.

Nem Guinevere e nem Violette estavam lá. Não as veria mais no dia. E talvez as coisas nunca mais seriam as mesmas...

O que eu não imaginava, porém, é que minha conversa com a Guinevere não foi tão secreta igual como pensava. Não só os ouvidos atentos, mas os olhos violetas cintilantes viram muito mais do que qualquer outro poderia...

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