O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 44: O mundo se fez quente

Meus sapatos afundavam na terra fofa e úmida, ao lado do rio que seguia em seu ritmo constante pelo vale. Observei o fluxo da água cristalina carregando alguns galhos. Ela fluía imperturbável, como fez ontem e como fará amanhã. Vi os passarinhos que, sabendo que aquela fonte de água nunca mudaria de lugar, cantarolavam em árvores próximas com alegria, cujos esconderijos também sabiam que não seriam atacados por predadores.

Tudo em perfeita harmonia, em absoluta previsibilidade. A beleza das águas doces e da densa mata era estonteante, e, junto dela...

Meus olhos se apoderaram de uma beleza que fez meu coração saltar. Em meio às curvas da grama, erguia um corpo feminino com curvas ainda mais delicadas e largas. Sua tez alva contrastava com a exuberância verde selvagem ao nosso redor, mas o vermelho indomável dos lábios e o rubor tímido das bochechas que tentavam esconder um sorrisinho provocador eram como se exalassem a obra-prima da natureza em seu mais alto nível.

Cada passo parecia uma dança, o quadril indo de um lado para o outro tão indefeso, tão animado. Enquanto ela encarava a floresta, levantou os braços para ajeitar o cabelo bagunçado nos ombros, em um movimento tão aberto que era como se escancarasse as portas de seu corpo para eu explorá-lo, me convidando para conhecer as curvas que se escondiam debaixo do uniforme, com vislumbres visíveis com o suor grudando o tecido contra a pele, com a roupa roçando seus seios e pernas enquanto andava.

Queria sentir aqueles contornos com minhas próprias mãos. Segurá-los, agarrá-los, roubá-los só para mim. Queria abraça-la, derrubá-la no chão, beijar seu pescoço e...

Hm? — entoou ela com curiosidade, olhando para onde pisou. Eram duas palavras desenhadas na terra. Diziam “Omnix Beytran”.

Era o que Flamel havia escrito no solo quando me encontrou à margem do rio. As letras estavam um pouco borradas, mas, a despeito de toda chuva e neve, lá permanecia legível, como uma maldição que ignora o fluxo do tempo para me assombrar.

Meus braços se estremeceram, subitamente fracos. O que será que deveria fazer? Será que...

Gulp.

De repente, uma revelação horripilante arrebentou clara como o dia, fazendo meu intestino se revirou ainda mais, um frio gélido se espalhando por todo meu corpo.

Aquele nome me perseguia. O livro Magia da Alma que peguei da Biblioteca era escrito por Omnix Beytran, o cavaleiro que encontrei tem esse nome, o Flamel já falava sobre ele. Não havia mais nenhum outro...

Será que havia alguém me manipulando, observando cada passo meu desde que entrei nesse corpo? Fui inocente de acreditar que poderia fazer o meu caminho livre, justo quando mal sei como parar aqui? Eu...

— Flamel? — Violette inclinou a cabeça para o lado, pensativa, em um gesto tão fofo que me fez relaxar um pouco. Suspirei e sorri, mas então...

Então seus olhos brilharam. Naqueles olhos cintilantes, que usualmente me encaravam com tanto desejo, não vi carinho algum, o rubor das bochechas desaparecendo para me encarar com um rosto pálido e afiado.

De suas írises iluminadas, uma névoa escura surgiu, densa e esguia. Naqueles olhos sempre tão animados e traquinas comigo, vi suspeita. Vi um medo gutural, do tipo capaz de me atacar primeiro para se defender de um possível perigo.

Não sabia explicar como um rosto apático podia soar tão agressivo e perigoso. Era o mesmo sentimento que tive quando tentei fugir dela após ser pego treinando magia da alma. Meu corpo clamava para fugir. Por quê? Ela estava lá, imóvel, sem ter feito nada, mas meus instintos gritavam perigo. Por quê?...

De repente, vi, no centro daquela escuridão sufocante, como se adentrasse em sua mente, uma pequena Violette sentada numa cama, a cabeça escondida nos joelhos em volta do grosso cobertor. Ela chorava, chorava e chorava... Até que alguém bateu na porta, e...

Antes que pudesse encontrar uma resposta, seus olhos se apagaram e recuperaram o brilho natural, como um quarto que tem a luz artificial da lâmpada apagada para ter as janelas abertas e receber a luz do Sol brilhar em seu resplendor.

Minha respiração, que estava presa com o peso daqueles sentimentos, se soltou e ofeguei profundamente. O rosto dela recuperou a cor, mostrando uma vida pura, tão linda e imprevisível quanto os cabelos soltos e espalhados sobre os ombros, cuja espontaneidade e liberdade combinavam muito mais com a Violette alegre.

Apesar da tranquilidade retornando ao peito, aquilo foi intenso demais para mim. Minhas pernas ficaram bambas e caí no gramado perto da terra, sem energia.

Ouvi os passos da Violette correndo até mim. Ela tocou meu ombro e, quando abri meus olhos, a vi diante de mim, o rosto preocupado.

— Você está bem?!

Examinei seu olhar, perscrutei cada canto de seu rosto, e só achei preocupação. Susto. Medo, mas um medo doce, medroso, empático, como o medo que se tem ao ver sofrer uma pessoa muito amada. A escuridão de antes parecia como um pesadelo distante, do qual acordei e tudo que via era uma doce e preocupada Violette.

Ela repousou a mão no meu peito e o acariciou. O toque me fez arrepiar, as ondas de afeição se chocando contra a ansiedade remanescente no corpo, me fazendo estremecer como um choque térmico.

— Eu- — tentei falar, mas algo me interrompeu subitamente. Uma eletricidade correu entre meu peito e a mão dela, como se ela me puxasse para si. Seus olhos se arregalaram, mostrando a mesma surpresa que a minha. — O que foi- — Outro puxão se fez ainda mais forte, como se fosse uma seringa puxando o interior do meu tórax para ela. 

Quando percebi, minha mana fluía para dentro dela, se espalhando pelas cavidades do corpo. Da mesma forma, a mana dela fluía através do meu, explorando a pele da barriga, o interior do meu torso, fluindo através dos órgãos...

Mas a mana dela era densa e forte, ardente, difícil de engolir. A forma como meu interior pegava fogo e rodopiava com ela era igual me sentia após virar um copo inteiro de rum. Aquele calor me envolveu a ponto de começar a suar.

O sentimento de roubou de tal forma que, quando a vi, ela já estava subindo no meu colo e me encarava com olhos ainda mais ferventes que sua mana, o cabelo desarrumado meio jogado no rosto a fazendo parecer ainda mais desesperada por mim.

Ela segurou a gola da minha camisa e me puxou para si, me roubando um beijo longo, delicioso, seus lábios se espremendo contra os meus como se quisesse absorver cada gota de mim. A cada toque dos nossos lábios, nossas manas se bagunçavam ainda mais, tal qual um caldeirão bagunçado posto ao fogo.

No vai-e-vem das nossas manas, nossos corpos quiserem participar da troca íntima e profunda... Segurei a cintura dela firme, afundando meus dedos em sua carne e a pressionando contra mim com força, o que a fez se contorcer e soltar um gemido abafado que me deixou ainda pior.

— Flamel... — Sua voz saiu quente e abafada como uma sauna.

— Viol...

Talvez, se parasse para pensar por um segundo, notaria o simples fato de que estávamos a céu aberto, no meio da floresta, em um lugar que, embora ninguém fosse vir, poderia ser perigoso. Mas...

Meus pensamentos se perderam quando ela ergueu a coluna, se colocando acima de mim, e me empurrou contra a grama, me encarando com um olhar de quem vai tomar algo para si e nada no mundo a impedirá, o rosto rubro de desejo.

Eu já estava explodindo. Queria tê-la, nem que fosse ali mesmo. E ela pouco me ajudou a me segurar. Forçando-me contra a grama, balançou sua cintura no meu colo, para frente e para trás, roçando nossas roupas uma contra a outra. Mordia os lábios, tentando abafar os próprios gemidos, me encarando com volúpia e um toque de autoridade e comando.

Segurando a minha bochecha, ela desceu o torso até o meu, os seios macios se espremendo contra meu peito, seu perfume se tornando tóxico de tão intenso.

— Viol...

Até que...

— Ai!...

Ela mordeu meu pescoço, os dentes fincando minha carne.

Você é meu, Mel — disse ela, em uma voz profunda.

Meu rosto ficou vermelho como um tomate, o coração acelerado a mil, surpreso e envergonhado com a maneira que ela me atacava.

Era difícil aceitar, mas era irresistível a forma como ela se colocava sobre mim. Mesmo assim, não podia deixar brincar comigo desse jeito. Queria lhe dar o troco. Agarrei a bunda dela e a puxei mais forte contra mim, me perdendo no quão maravilhosa era aquela maciez.

Você também é minha — proclamei com a voz tão assertiva quanto a dela.

Senti a bochecha dela no meu queixo ficar ainda mais quente, como um vulcão em erupção. A mão dela em meu rosto desceu para minha gola, agarrou-a com firmeza, e...

— Você é meu... — sussurrou ela.

Foi uma fala igual à outra. Mas...

Seu tom. Foi mais carregado, pesaroso... No calor do momento, quando já não conseguia pensar direito, alguma coisa estava errada de imediato, e isso fez meu coração doer. Quase que de imediato minha consciência voltou, como se tivesse tomado um balde de água fria.   

Violette?

Não houve resposta, exceto minha gola ser ainda mais puxada. O calor que emanava da mana dela no meu corpo se fez frouxo, quieto e mudo. A queimação foi embora. Era como se sua mana se tornasse um lago parado, deserto, sem qualquer movimento.

— Viol... — Acariciei a cabeça dela, que repousava escondida no meu peito.

Meu corpo ainda estava agitado, os hormônios à flor da pele. Queria muito continuar, beijá-la, apalpá-la mais, senti-la contra meu corpo, mas...

Vê-la assim era semelhante a uma centena de cacos de vidro serem fincados no coração. Toda volúpia em pouco tempo se fez inquietação.

A mão dela soltou minha gola e deslizou seus dedos pelo meu pescoço, um toque gentil e lento, pesado de emoção, antes de a mão se estremecer. A mana dela em mim vibrou junto, perdida.

— Por quê?... — falou ela, com uma voz tão silenciosa e ao mesmo tempo tão pesada. — Por que você sempre me faz sentir assim?...

— Sentir como? — Abracei-a forte, como se fosse capaz de a proteger do mundo, de toda dor do seu coração.

Ao menos era o que queria ser capaz de fazer...

— Eu...

Ela me deu um soco fraco no peito e se escondeu ainda mais fundo nele. Não sabia o que fazer, nem o que pensar da situação. Odiava vê-la assim, tão desamparada e sem nunca conseguir socorrê-la. Começava a ter medo de eu ser incapaz de ajudá-la, de fazê-la feliz...

— Se você soubesse... — continuou ela, com a voz trêmula.

Dos cabelos dela, vi a mesma névoa escura de antes. Quanto mais observava aquela energia, mais ela parecia me sugar, até que...

No quarto em que a Violette criança chorava, a fechadura da porta rangeu com uma chave e a porta se abriu. A garota, tão pequena e tão desprotegida, tremeu igual um cachorrinho amedrontado. Seus olhos, como os de um cadáver, fitaram o vão sombrio da porta sem emoção alguma, embora carregassem um resquício de medo que tentava ser escondido. Encaravam uma escuridão que fazia seu quarto mal-iluminado parecer dia. Uma escuridão fria, densa, tão palpável quanto seu corpo.

Daquela escuridão, entrou no quarto um homem que parecia um ator de cinema: alto, mandíbula bem-marcada, queixo definido, barba minuciosamente feita. Vestia um terno preto luxuoso e carregava uma bengala que, embora batesse no chão a cada passo, não fazia barulho algum. Mesmo seus sapatos com pequenos saltos eram impossíveis de ouvir.

O homem levantou sua mão, passando ao lado de sua barba milimetricamente aparada, e a parou no chapéu preto, que pouco impedia a franja ruiva de cair no nível dos olhos escondidos pelas sombras. Puxou a borda do chapéu, como um gesto de polidez impessoal, e ergueu o outro punho, observando as horas em um relógio de prata. Abriu os lábios e...

— Flamel? — Violette me chamou, me tirando daquela visão. Ela estava com o queixo apoiado no meu peito, me observando com olhos curiosos um pouco molhados.

— Oi. — Sorri sem jeito, talvez o sorriso mais agridoce que já dei.

Ela suspirou fundo e jogou seu corpo para frente até seus lábios chegarem nos meus, me amarrando em um beijo súbito. O toque da boca dela era lento, melancólico, mas, sempre que ameaçava terminar o beijo, vinha mais outra vez, parando apenas para arfar, antes de se mergulhar na minha boca outra vez.

Quanto mais sentia a textura macia de seus lábios, mais nossas manas se conectavam, como se uma ponte fosse feita entre nossos corações. Uma ponte de emergência, de dois corações machucados, cansados, em necessidade um do outro.

A mana dela voltou a arder, mas suave, carinhosa e manhosa. Se a queimação fosse álcool, agora sentia-me nadando num mar de vinho branco doce e suave, do tipo que aquece e conforta durante uma tempestade de neve.

— Eu te odeio — disse ela entre os beijos, antes de segurar meu cabelo e roçar nossos lábios uns contra os outros com ainda mais intensidade, quase como se estivesse com raiva, mas uma raiva ardentemente amável e carinhosa.

Não sabia se era uma piada ou se realmente falava sério... E menos sabia ainda o que responder. Sem ter tempo de pensar direito, respondi do que meu coração estava cheio:

— Eu... Gosto muito de você... Me preocupo com você...

O beijo cessou, nós dois ofegantes com a face rubra. Ela me empurrou contra a terra para se levantar, me usando de trampolim, e então virou o rosto, escondendo-se da minha vista. Caminhou em silêncio até o rio e ficou lá, se abraçando solitária enquanto assistia as águas correndo. Tudo aconteceu em tão poucos instantes que era como se ela tivesse escapado das minhas mãos...

Porém, vendo-a se afastando passo por passo, me senti cansado e esgotado. Permaneci deitado, refletindo sobre aquilo que vi nela. Procurava uma resposta que me ajudasse a entender seus problemas, mas não havia nenhuma.

Sabia apenas que sua família era rica e da alta nobreza; que, naquele dia em que fingia dormir no quarto dela, ela subornou alguém que não parecia ser da Academia; que havia recebido extensivo treinamento com inúmeras armas; que acreditava que todo mundo era egoísta; e que, de vários presentes, sua família lhe deu justamente uma espécie de “bunker”.

Com todas essas informações, ainda não sabia deduzir quem seria aquele homem, e nem vislumbrar melhor qual seria o passado dela. O passado dela...

Meus olhos a miraram. Observando-a daquele jeito, perdida nos pensamentos na frente do rio, me fez imaginar como seria se eu conseguisse a ler de verdade. Se conseguisse acessar suas memórias, ver o que ela queria esconder...

Se eu, com um sorriso tranquilo e cheio de amor no coração, conseguisse a abraçar, conhecendo-a por inteira, cada problema, cada defeito, cada erro... E mesmo assim, olhando no fundo de seus olhos, a beijasse e a amasse. Será que ela conseguiria se perdoar melhor? Será que conseguiria trazer alguma paz para aquela pequena Violette que tanto chorava no quarto?

Calei-me. Calei meus pensamentos. Ouvi o rio fluindo, as gaivotas grasnando enquanto voavam. Vi como elas cortavam os céus em bando, como que então se dividiam em grupos menores, em três, em dois... E permaneciam caminhando em pares, até se separarem, solitárias, antes de se juntarem num só grupo, unido.  

Vazio. Senti vazio. Tudo se passou em um, no máximo dois minutos. Naquele tempo, vivi uma paz estranha, uma paz que não tinha, e que mesmo ali só fingia ter. Um lugar sem turbilhões, sem agitações, sem uma montanha-russa de emoções e preocupações. Pude fechar os olhos. Finalmente. Eu...

Meu coração se apertou e se fez doer, como se uma mão o espremesse entre os dedos. Se eu fosse ser sincero comigo mesmo... Sentia-me incapaz de fazer qualquer coisa por ela. Era doloroso. Amargo.

Isso me fez lembrar de quando o Lucas morreu. Fiquei meses praticamente trancado no quarto. Meus pais tentaram de tudo: pediram tanto o sushi que eu amava que ficaram apertados financeiramente. Tentaram de tudo: passeios em família, me chamar para fazer viagens, sair para jantar...

E nada, nada me fazia sorrir mais do que por uma fração de segundo. Será que foi assim que se sentiram comigo, incapazes de fazer qualquer coisa, de compreender aquilo que me afetava? Sentiam que nenhum de seus esforços conseguia tocar meu coração? Mas...

Apesar de tudo, no fundo, eu só queria um abraço. No fundo, sonhava com alguém que iria ignorar a parede invisível que eu colocava entre mim e todos e me obrigaria a abraçá-la. Alguém que, mesmo se eu reclamasse e tentasse expulsá-la, ainda ignoraria todas minhas palavras e me abraçaria. Até que eu chorasse e, aos prantos, finalmente contasse para alguém sobre como era um inútil, sobre como deixei Lucas morrer de forma tão patética e pouco progredi na nossa promessa.

No fundo do coração, não queria presentes nem viagens. Queria apenas alguém para abraçar. Alguém que insistisse em saber como estou, que insistisse em querer me ouvir. Que insistisse pacientemente, sem me forçar, mas sem me deixar fugir do abraço. Que não me deixasse fugir, mas que me desse espaço para confessar cada problema no meu tempo...

Olhei outra vez a Violette lá, parada, sozinha. Como estaria seu rosto? Será que ainda chorava? Não... Certo que não. Só conseguia imaginá-la apática, sem emoção, igual àquela Violette-criança ao olhar para o homem que adentrou no quarto. Uma Violette que não queria incomodar ninguém. Que não queria ser vulnerável. Que queria se esconder e tinha medo de se abrir. Uma Violette, que, talvez como eu, queria que alguém quebrasse seu casulo, que a abraçasse e não soltasse, mesmo se não quisesse isso.

Havia a possibilidade de ela não ser assim. Talvez, eu queria apenas que ela fosse como eu. Talvez só queria uma solução de como confortá-la. Mas é que...

Eu vivi aquela dor. A dor do silêncio, da falta de um abraço. De não ser entendido. A dor de, sabendo que eu estava completamente errado, ainda ouvir meus pais reclamando sobre não estar fazendo nada da minha vida. A dor de ouvir deles o julgamento que já repetia exaustivamente para mim mesmo. A raiva que ficava deles com isso, raiva essa que era ainda maior comigo mesmo. Raiva essa que já havia se tornado um ódio, e a única pessoa que podia culpar era o espelho.

Suspirei fundo e me levantei. Bati a terra das roupas e caminhei até ela... Consolar alguém, dar esse tratamento privilegiado não faria o Michael do passado ser curado. A ferida em mim não se cicatrizaria com isso. Mas, se ele existisse, estaria orgulhoso de que ao menos tentei dar a alguém tudo que um dia ele mais sonhou. Ele sorriria. Ele ficaria feliz.

E, no fim...

Como eu poderia deixá-la sozinha, quando meu coração sangrava com isso? Era a mulher que me salvou tantas vezes; que, junto de Aithne, se tornou uma espécie de porto seguro nesse mundo de agitações e terrores. Não podia deixá-la sozinha. Seria covardia, ingratidão.

Meus passos somente cessaram ao lado dela. Violette encarava o rio da forma como imaginei: muda e morta, com olhos de cadáver. Tanto olhava para as águas, mas nada realmente vendo.

Da forma como ensaiei diversas vezes na mente, envolvi meu braço por seu ombro e a puxei para mim. Senti o resquício de sua mana em mim explodir em desconforto, como se desejasse que eu a soltasse.

Sim, Viol. Ser vulnerável é doloroso. Permitir que vejam seu sofrimento é como rasgar o peito para verem o coração dentro. Me desculpa por isso, de verdade, mas...

Beijei-lhe a testa. Não a deixaria sozinha, e ficaria ali com ela até que seu coração ficasse melhor. Jamais a cobrarei de me contar qualquer coisa, mas permanecerei ao seu lado.

Depois do beijo, o desconforto dela se tornou mais sensível e incerto. Aos poucos, a mana caótica se acalmou, e senti como se acariciasse cada órgão meu, como um beijo gentil e agradecido. Beijei-lhe a testa outra vez, um sorrisinho se abrindo nos lábios, e toda sua mana se fez quente.

Meu sorriso cresceu, e os olhos dela recuperaram o brilho, um brilho tão lindo que não pude deixar de admirar. Eles eram vivos. Vivos e lindos, o meu par de ametistas que jamais cansaria de admirar.

Ri de levinho, e ela também o fez, antes de mergulhar no meu peito e me abraçar com força, como se me dissesse para nunca mais ir.

Ali, naquele rio frio que molhava nossos sapatos, o mundo se fez quente.



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