O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 53: Escuridão da noite

Meu coração ainda batia depressa, e as pernas começaram a perder as forças enquanto caminhava para a cama da Violette. A mesma cama que, de alguma forma, eu estive vindo parar sempre que surgisse um novo monstro.

Sentei-me no colchão macio e, enquanto colocava a lança e os livros ao meu lado, encarei a jovem, sem saber o que dizer. Por detrás dos cabelos bagunçados, seus olhos estavam perdidos em um dos livros abertos da mesa, o qual tinha uma poção alaranjada desenhada na página, talvez uma que tivesse bebido nos frascos de vidro, cujos fundos estavam manchados com uma cor parecida.

Queria perguntar-lhe sobre isso, mas me calei. Pela reação dela, não apenas a interrompia, como poderia ser um assunto sensível... Gravei bem o desenho na mente para depois pesquisar a respeito.

Encarando o desconforto dela, me curvei um pouco.

— Desculpa por ter te interrompido.

Da janela aberta, soprou um vento gélido da noite, preenchendo o silêncio entre nós e fazendo balançar a cortina carmesim. Sem olhar para mim, a jovem andou até a janela e a fechou. O silêncio retornou. Um silêncio mais quente, mas não por causa dos nossos corações.

— V...

Ia chamá-la, quando a vi se comportar de um jeito que quebrou minhas expectativas. Ela sentou-se na cadeira, colocou as solas do pé no estreito assento e mergulhou o rosto nos joelhos. Ela...

Fiquei preocupado e tentei me conectar à mana dela. Desejei ardentemente sentir o que se passava em seu peito com a magia da alma. Porém, não houve resultado. Não tive acesso algum. Era como se ela fosse um livro fechado a cadeados.

No momento em que eu ia suspirar, perdido, ela suspirou primeiro. Inspirou profundamente o ar e deixou-o ir lentamente. Então, sentou-se em uma pose normal, como se nada tivesse acontecido. Ajeitou os cabelos e olhou para mim com um rosto impassível. 

— Certo. O que aconteceu?

Apesar da pergunta dela, minha mente se focou em outro pensamento. Acima de tudo, eu estava preocupado. Nunca a tinha visto assim... Imaginei que poderia ajoelhar-me diante dela, pôr as mãos em seus joelhos e os acariciar, talvez beijar-lhe a coxa e mostrar um sorriso reconfortante. Imaginei cenários como esse, que eu prontamente executaria se não estivéssemos constrangidos um ao outro.

Constrangidos um ao outro...

— Eu... — Só então comecei a pensar sobre a pergunta dela, e um arrepio cortou minhas costas quando me lembrei do ocorrido. Fiquei gelado e enfiei as pernas debaixo do cobertor.

Prossegui explicando o que ocorreu, sendo da minha natureza primeiro dar o contexto do treinamento que estava fazendo, para então abordar os dedos misteriosos. Ela ouviu tudo atentamente, sem fazer julgamento ou me interromper. Quanto mais detalhes dava, mais eu revivia o ocorrido e mais meus olhos perscrutavam a janela e a porta. Secretamente planejei como correria ou me defenderia se a criatura arrombasse uma das duas entradas.

Quando terminei, ela desviou o olhar e mirou a janela. Ela se levantou e foi até lá. Abriu-a e encarou o mundo de fora com uma coragem natural, como se não tivesse medo da possibilidade de o monstro estar do lado da janela, esperando alguém enfiar a cabeça do lado de fora para cortar o pescoço. Havia tantas armadilhas possíveis...

— Estranho — falou ela. — Não vi nada. Onde foi?

Querendo que ela saísse de lá logo, levantei-me em um pulo, fui ao lado dela e, pela janela, apontei para a árvore cujo tronco tinha arranhões profundos. Estava escuro, mas eu nunca me esqueceria do exato lugar em que aquela maldita mão apareceu.

— Ali, naqueles arranhões.

À medida que ela olhava, a testa se enrugou, como se forçasse as vistas fervorosamente.

— Arranhões?

Cocei a cabeça.

— Sim. Ali. — Dessa vez apontei na frente do rosto dela, tendo certeza de mirar no exato ponto da árvore.

A face dela, porém, se fechou ainda mais.

— Do que está falando? A árvore está normal.

Agora foi minha vez de contrair a testa, confuso. Calibrei meu dedo mais uma vez, com certeza absoluta de estar apontando certo, e proclamei:

— Ali, olha a...li...

Só naquele momento percebi que ela via o lugar que eu apontava, mas o tronco lascado não existia para ela. Somente para mim. Ou talvez ela mentisse descaradamente. E a razão de ela mentir...

Meu coração se apertou e disparou no peito. Recuei um, dois, três passos dela e segurei uma espada que tinha na parede. Examinei cada detalhe da jovem, à procura de qualquer indício de que ela não fosse a Violette que eu conhecia. A camisola era atípica ao seu gosto, muito conservadora e infantil, fora que... Branca com florzinhas? Merda, eu deveria ter percebido isso antes. Eu...

— Céus, que difícil... — Ela coçou a cabeça, me encarando com um olhar de quem não sabe o que fazer.

— Quem é você?! — Empunhei a espada, segurando-a com ambas as mãos.

— Difícil... Difícil... — cochichou ela. — Queria ter o feitiço de memórias daquela loira estúpida...

— V-você quer dizer da Guinevere?

— Entenda o que quiser.

Ela suspirou fundo outra vez e, quando deixou o ar ir, o corpo se tornou menos rígido, os ombros caídos e relaxados. Ela me encarou, e, ao longo dos segundos, sua face se fez mais leve, embora carregassem uma pitada de... dor, angústia. Ela começou a andar até mim, com passos tão leves e uma cintura solta que pareciam ser uma extensão do pequeno calor com que me olhava.

— P-pare. Fique para trás. — Apontei a espada para ela e dobrei levemente os joelhos, pronto para atacá-la. Contudo...

Os passos dela não cessaram e eu não tinha ideia se aquela era a Violette ou não. Algo nela era tão familiar, tão... bom. Mas...

Ela chegou até o alcance da espada. Com a ponta dos dedos, pegou o fio da lâmina e o empurrou delicadamente para o lado, abrindo espaço e caminhando até mim. Meu corpo clamou para fugir, mas, ao mesmo tempo, aqueles olhos dela, tão fundos, tão tristes e cheios de carinho, era...

As mãos dela envolveram cuidadosamente meu pescoço, me fazendo arrepiar. Ela fechou os olhos e...

Envolveu os lábios nos meus. Um beijo profundo, intenso, repleto daquela mana-álcool que mais parecia um rum doce, um coquetel com groselha. No começo, explodi em ansiedade e medo, mas, à medida que reconhecia aquela mana indistinguível, relaxei. Então meus sentimentos foram tomados por um misto de paixão, vulnerabilidade e... desconforto, estranheza por tê-la assim de novo sem termos resolvido nosso impasse.

Depois que nossos lábios se desconectaram, estávamos ambos ofegantes e sujos com a mana do outro. Apesar dos sentimentos complicados, era impossível não viver cada segundo daquele beijo.

— Agora tem dúvidas de que sou eu?

Acenei com a cabeça para os lados, negando.

— Ótimo. Se realmente tem alguma coisa te perseguindo, aqui não é seguro — disse ela num tom objetivo e ignorando o fato de que acabamos de nos beijar. Muito diferente de mim, que oscilava minha atenção entre a janela e os lábios dela. — Ouvi falar que você está hospedado em um quarto subterrâneo. Me leva para lá?

Não havia como negar aquele pedido. Falei-lhe que sim e fomos até a porta, andando na ponta dos pés para não fazer qualquer barulho. Quanto mais nos aproximávamos dela, menos eu podia enxergar a janela atrás, que poderia esconder qualquer monstro à espreita, e mais próximo do corredor eu ficava. Se a criatura nos esperasse atrás da porta...

Segurei a maçaneta, e...

Minha mão se enrijeceu. O medo de uma emboscada me fez ficar paralisado. Não teria nem como eu me defender se fosse pego de surpresa.

Violette chegou do meu lado e, cuidadosa como um gato, apoiou uma mão na porta e aproximou o ouvido da superfície, enquanto a outra mão segurou o cabo de uma adaga no bolso da coxa.

Cinco segundos se passaram e ela deu o “ok, pode abrir”. Abri a porta com o coração quase saindo da garganta, apenas para ver que não havia nada do outro lado além de um corredor normal. Violette seguiu à frente e adentrou nele. Olhou para os lados, atenta, e fez um sinal para eu a acompanhar.

Saí, mas ainda com a ansiedade pinicando por toda a pele. O maior problema era que ela não foi capaz de ver as lascas na árvore, então, mesmo se ele estivesse na frente dela, ela o veria? A Violette ir na frente me protegeria em algo? Que tipo de monstro poderia destruir uma árvore sem outra pessoa ver? Se fosse uma ilusão projetada somente para mim, ela poderia me matar na vida real se me alcançasse?...

Não tinha tempo para refletir e muito menos oportunidade de conversar com ela sem correr o risco de fazer muito som. Ela seguia pelo corredor, passando por cruzamentos que abriam possibilidade de ter algo à espera. Passamos por cada um, minha mente obrigada a parar de refletir sobre o monstro para absorver cada detalhe. Se qualquer coisa acontecesse, ainda carregava a espada, empunhando-a sempre alerta.

Ao longo de pesarosos minutos, chegamos do outro lado do dormitório, encarando a escadaria abaixo. Não eram todos os prédios que tinham entradas do subsolo, e o dormitório era um desses azarados. O percurso que tínhamos que fazer era sair do dormitório, passar pela praça e entrar no prédio das aulas, onde lá poderíamos ir para as cavernas subterrâneas e chegar no quarto.

Era um longo percurso, e começava a temer o tanto de coisas que poderiam acontecer até lá...

Descemos as escadas e, quando chegamos ao final dela, assustei-me ao ver fechada a porta dupla da entrada do dormitório. Violette olhou para mim, e pela primeira vez vi apreensão, talvez um pouco de medo naqueles olhos que nunca fraquejaram contra aquela besta enorme que enfrentamos. Não podíamos falar, porém era óbvio para mim que aquele olhar em mim tentava avisar que aquela porta não era normal.

Ela foi à frente e começou a abrir a pesada porta. Olhei de relance a escada atrás de nós, incapaz de ver o que estava no corredor antes dela. Voltei minha atenção à porta, e a observei abrir por inteira. Violette seguiu para fora ilesa e a acompanhei.

No pátio de pedras polidas, a luz era escassa, fraca e alaranjada de apenas alguns postes que pouco quebravam a escuridão. Nenhum grilo era audível. Reinava a solidão do silêncio.

Assim que pisamos fora, meu corpo estremeceu. A noite se fazia ainda mais fria do que quando cessei o treino. As runas do uniforme tinham uma função de aquecimento, mas pouco mudavam as rajadas gélidas que penetravam pelas golas e pelas aberturas, me esfriando das canelas às orelhas.

Olhei para as costas da Violette, seus cabelos balançando tanto que estavam quase horizontais. Queria lhe perguntar se aquela ventania era normal, porque nunca, nem nos dias de tempestade, presenciei um tempo tão terrível.

Engoli minha dúvida, cerrei os dentes e tratei de andar bem perto dela. Sentia que, a cada vez que os passos dela a faziam mergulhavam na escuridão e eu a perdia de vista por alguns instantes, ela desapareceria e me deixaria sozinho.

Ao mesmo tempo que mantinha o olho nela, examinei os arredores a todo instante. Cada árvore, cada poste, cada banquinho de madeira que a luz dos postes não chegava... Até debaixo das nossas pernas, já que aquele primeiro monstro conseguiu se esgueirar por lá.

Inevitavelmente chegamos ao prédio das aulas, que se encontrava horripilantemente apagado. Talvez por ser domingo e não ter aulas, tudo estava tão escuro que nada podia ser visto pelas janelas de vidro dos corredores.

Diante de nós, a entrada estava fechada, as portas de madeira tampando o que quer que estivesse do outro lado. Quantas portas ainda vamos ter que abrir hoje?...

O silêncio foi quebrado por um sussurro quase mudo da Violette:

— Olha minhas costas.

Ela se esgueirou e enfiou a orelha na madeira da porta, os olhos fechados para ter foco total. Como pedido, dei minhas costas para ela e fiquei olhando o pátio de um lado para o outro. Depois de alguns instantes, a porta atrás de mim começou a rugir ao ser aberta. Um pequeno arrepio se espalhou pelos meus braços quando imaginei que podia não ser a Violette abrindo o edifício.

Virei-me e avistei Violette adentrando no corredor escuro, meio agachada. Estava com uma lanterna mágica nas mãos, que tirou não sei de onde, e sinalizou com a mão para que eu fosse junto. Dei uma última vistoria nos arredores e meus olhos arregalaram. Encostada na parede da biblioteca, vi uma figura preta me observando, do tamanho de uma pessoa de dois metros. Seus contornos eram difusos e incertos na escuridão.

Segundos se passaram. Estava preparado para correr, mas a figura não se mexeu. Com o coração a mil, sussurrei alto pela Violette. Ela se virou para mim, caminhou até meu lado e apontei o dedo para a criatura. Ela mirou a lanterna na direção e, no momento em que a luz refletiu contra a parede da biblioteca, nada havia lá. Assim que ela tirou a luz, a mesma figura voltou a me observar, suas pupilas um pouco mais claras que o restante do corpo.

— Viol... Tem alguma coisa ali...

Ela apontou a lanterna para lá de novo, porém nada havia.

— Você vê alguma coisa? — perguntou ela sem ironia, a tensão ficando mais palpável em sua voz.

— ...Não...

Ela tirou a lanterna e o contorno surgiu de novo no mesmo instante, no mesmo lugar. Droga...

Eu e Violette nos entreolhamos, e instintivamente sabíamos que o mais seguro era seguir em frente, mesmo. Acenamos um ao outro com a cabeça e adentramos no prédio das aulas, indo o mais rápido que podíamos sem fazer mais barulho.

Apesar disso, cada passo, mesmo que leve, ecoava no local fechado. Os corredores tinham paredes de madeira, chão xadrez de branco e preto — que eram quase indistinguíveis —, e tudo fedia a pós de giz. Do lado direito, havia janelas de vidro para o mundo lá de fora, não muito mais iluminado que aqui, e do lado esquerdo havia portas para as salas de aula. A maioria estava fechada, mas algumas estavam estranhamente semiabertas.

Sala por sala, tentei enxergar alguma coisa dentro da escuridão, ao mesmo tempo que olhava para trás apenas para contemplar o corredor vazio. No fundo, queria apenas ignorar tudo e chegar logo no maldito alçapão. Porém, o monstro da mão pálida e o vulto... Nós poderíamos sofrer uma emboscada a qualquer momento, e eu precisava ficar atento. Qualquer detalhe poderia impedir uma armadilha que nos mataria.  

Enquanto andávamos assim, algo me fez paralisar. Diante dos meus olhos...

— Flamel? — sussurrou Violette, andando até mim e olhando na direção que meus olhos apontavam.

Era uma porta ligeiramente aberta, uma fresta apenas. Não importava o quanto forçasse o olho, não se podia enxergar nada lá. Mas...

Não era isso que eu via. Entre as carteiras, havia uma menina perfeitamente visível, de costas para mim. Possuía longos cabelos pretos que tampavam quase todas suas costas. Com os braços curvados para frente, parecia ler alguma coisa. O único problema era...

O som de gotas caindo embaixo dela. Na verdade, o problema era que as gotas eram vermelho-escuras, e o cheiro de ferro contaminou asquerosamente o de giz.

— O que foi, Mel? — Violette falou, a sua voz vacilando, como se começasse a ficar com medo.

— Eu-

Hm? — fez esse som a menina dentro da sala assim que falei. Ela se virou se virou para mim e...

Seu rosto branco, perfeito, quase o de uma boneca, foi revelado. Os olhos estavam fechados e uma corrente de sangue pendia deles, descendo pelas bochechas e caindo do queixo. Vestia ela o uniforme escolar da Academia, com camisa formal branca de manga comprida e calça preta. No entanto, no meio da camisa havia um buraco largo em que se dava para ver o outro lado da sala. Dele escorria sangue, que também pingava no chão.

Ao mirar o rosto para mim, ela abriu um pequeno sorriso.  

Uma parte de mim queria correr, e queria muito. Mas outra parte...

— Maria? — falei, minha voz ecoando pelo corredor. A garota era muito parecida com a que vislumbrei quando peguei o relógio na biblioteca, mas ao mesmo tempo tinha uma aura muito diferente...

Violette virou um pouco a cabeça dela, confusa, e disse:

— Maria?

A garota dentro da sala de aula sorriu mais e começou a caminhar até nós. Seus passos ecoavam tão alto quanto nossa voz, embora Violette provavelmente não ouviria. A jovem ruiva, porém, olhou atentamente meus olhos com um fogo violeta nos dela. Sua expressão azedou em desespero em segundos, pegou minha mão e me fez sair correndo pelo corredor.

— Violette! — tentei impedi-la. Queria muito conversar com Maria, o espírito que, segundo Omnix Beytran, me fez ter aquele feitiço de gelo na última batalha. Ela era responsável por eu estar vivo. Só que...

Minhas boas intenções foram por água abaixo quando Maria saiu da sala. Ela virou a face para nós, com aquele mesmo sorriso, e abriu os olhos. Ou melhor, abriu as pálpebras, porque onde deveria haver olhos restava apenas um buraco com uma escuridão ainda mais grotesca que a do corredor. Se ela tivesse chegado até mim, talvez fizesse coisas muito piores que só conversar...

No momento em que estávamos chegando perto da sala que contém o alçapão para o subsolo, Maria falou, sem mais se aproximar:

— Volte aqui de manhã, quando tudo estiver mais claro, e-

Viramos o corredor. Violette fechou a porta depressa, abriu o pesado alçapão em um segundo, agarrou minha mão de novo e se enfiou nos corredores cavernosos comigo. Aqueles corredores que, embora tão primitivos e grosseiros, nunca me pareceram tão seguros e livres de incidentes.

— Onde é o quarto? — disse Violette com rapidez.

A partir dali, nos guiei pelo labirinto cavernoso, nossa corrida audível a qualquer pessoa próxima, até que paramos de frente à porta de madeira do quarto. Uma porta repleta de runas mágicas que imediatamente dispararam e deram um choque na Violette quando ela tentou a abrir. Hayek a configurou para que só eu, ela e Aithne tivéssemos permissão.

— Merda!

Segurei a mão dela, secretamente — talvez não tão secretamente assim — colocando um pouco de mana nela para ajudar a se recuperar, e abri a porta, seguro de que nada passaria por ela sem quebrar a runa.

O interior do quarto estava normal. Entramos e fechamos a porta. As incontáveis runas brilharam em um tom azul-claro, como se estivessem trancando a entrada, até se apagarem e a única iluminação ser a lâmpada de fogo queimando do teto.

Violette foi até a cama e se jogou nela, dando um longo suspiro exausto. Só então notei o quão suada ela estava. A jovem estava tensa o tempo inteiro, e o fato de ela não conseguir ver nada do que eu via deveria ser apavorante... 

Antes de me juntar a ela, primeiro fiz uma longa vistoria no banheiro, examinando os ralos, meu reflexo no espelho... e no armário, abrindo gaveta por gaveta. Somente quando confirmei que tudo estava certo que soltei um longo suspiro e caí na cama do lado da garota.

— Ahh...

Era muita emoção para um dia só, e o número de mistérios e ameaças em potencial se multiplicou do dia para a noite. Se antes me preocupava mais com a Missão da Floresta, agora tinha uma criatura pálida, uma possível criatura nas sombras e talvez até o fantasma de Maria me perseguindo.

 “Volte aqui de manhã, quando tudo estiver mais claro...”, repeti as palavras dela para mim mesmo. Fantasmas costumam aparecer à noite, certo? Nunca estudei sobre isso... Mas especialmente amanhã, especialmente, outras turmas vão estar tendo aula, então o prédio estará cheio. Então a fantasma não deve querer nada ruim. Espera... na verdade, a única turma que não terá aula é a minha, por causa da Floresta, e...

Não havia percebido antes por causa da tensão, mas aquela sala de aula era a minha. Certo... Pelo menos haverá duas salas cheias próximas, que ouvirão se eu gritar. Sendo esse o caso, a fantasma realmente não parece ter más intenções.

Porém a criatura pálida e o vulto...

Cocei a cabeça em frustração e prestei atenção na Violette que estava deitada de costas para mim. Ela estava esticada, abraçando a coberta que a enrolava como se estivesse tensa. O suor na pele ainda secava.

Lembrei do nosso beijo. Será que ela se obrigou a me beijar, só para confirmar a identidade dela, mesmo não querendo? E, além disso, ela sabe do feitiço de memórias da Guinevere, e a chamou de loira estúpida?...

Tinha tantos mistérios não resolvidos que fiquei com dor de cabeça. E, neste instante, tinha um mistério a mais para resolver: como me reconciliar com a Violette? Como me aproximar dela, que parecia tão determinada em me evitar? Nem depois de passarmos por uma situação tão tensa juntos ela quer me olhar nos olhos...

Procurei nas memórias por alguma ajuda. A última vez que vivi algo assim foi nesta cama, com a Aithne. Ela, porém, não me evitava; estava deitada virada para mim, encolhida, tímida e receosa. A Violette não. Estava esticada na cama, sem timidez, e claramente me queria distante. Abraçá-la seria invadir demais seu espaço...

Eu poderia deixar tudo isso de lado e só cuidar de mim mesmo, mas... As memórias de cada beijo nosso, de cada risada... De quando ela me jogou no rio e rachamos de rir, ou de quando ela fingiu cair só para que eu a segurasse como seu herói. As promessas que fizemos no bunker dela e depois da luta com o monstro. Ou quando nós fizemos safadezas que nunca imaginaria nos conectar tanto, para muito além do prazer...

Doía o coração pensar que essa garota, que me fez tão grato pela vida, não consigo confortar agora em nada...

Queria muito envolver a cintura dela com meu braço, puxá-la para perto e abraçá-la. Porém não era possível. O máximo que podia fazer foi o que fiz: virei-me para o lado oposto e, lentamente, aproximei minhas costas das dela, até que elas se conectaram e sentimos o calor um do outro. Ela tremeu um pouco, mas não fugiu do contato e nem o aumentou.

Violette permaneceu imóvel, e, ali, fiquei com ela, conectados só pelas nossas colunas, até que o sono começou a vir. Não antes da fome; era por volta das 20h ainda e pulamos a janta. Ainda assim, era preferível sentir fome que passar por tudo aquilo de novo.

Dormi. Quando acordei, o relógio de bolso da escrivaninha ainda marcava 23h. Sem sono, levantei-me e, para passar o tempo, fiquei com vontade de ler qual feitiço Omnix Beytran escreveu. Por eu ter tido pouco tempo de treinamento de feitiçaria naquele dia, decidi que aprenderia o feitiço de lâmina de vento em vez do de alma. Agora, contudo, era um momento perfeito para ler um pouco, nem que por curiosidade.

Meu corpo gelou quando percebi que a única coisa que trouxe do quarto da Violette era a espada, que deixei do lado da escrivaninha. Todos meus pertences, inclusive o Livro, ficaram na cama da garota.

Enquanto a ansiedade crescia no peito ao planejar o percurso de volta ao quarto dela, Violette pigarreou. Ela retirou um livro grande da cintura, debaixo da camisa, e me entregou. Era o Livro.

— Como você...

— Ele é grande e a capa, dura. Perfeito para servir como um colete embaixo do uniforme — falou ela com uma voz baixinha, meio... envergonhada?

— E como você sabe que eu preciso dele ago...ra...

O óbvio se fez claro para mim. Ela não o carregou como colete, mas simplesmente porque sabia que era importante para mim. Se ela sabia que neste exato momento eu o procurava, era porque não apenas examinava cada detalhe meu, como se preocupava comigo e previa minhas necessidades. Era porque sabia que eu preciso deste livro, e o trouxe consigo.

Peguei o livro da mão dela e não consegui resistir mais. Caí na cama abraçando a cintura dela e beijando-lhe o pescoço.

— Você é maravilhosa!

— Cala a boca, seu emocionado.

— E como eu não ficaria com isso?! — Beijei o pescoço dela outra vez. — Muito obrigado! Você é muito fofa!

Eu ri, contente e com uma alegria quase explosiva. Ela não retribuiu nenhum dos meus gestos, mas não fugiu deles; apenas abraçou a coberta mais forte e, com uma respiração talvez um pouquinho mais suave, fechou os olhos e voltou a descansar.

Ainda estava curioso para ver o que tinha no Livro. Mas, o que quer que fosse, não aprenderia em uma noite, e poderia deixar para começar a ler amanhã. Já passei por coisas demais... E, no fundo, não queria perder aquele tempo e oportunidade com a Violette...

Mesmo sem dormir, fiquei abraçando com ela talvez por várias horas. Talvez fosse por volta das duas da manhã quando o sono veio. Bocejei e descansei a cabeça no travesseiro pertinho dela, sentindo aquele cheiro suave de seus cabelos até adormecer.



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