O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 54: Ciclos

Durante a madrugada, a cada uma ou duas horas eu acordava e checava o quarto iluminado pelo fogo, o qual recusei-me a apagar. Quando tinha certeza de estar seguro — e que não havia nenhuma criatura me encarando enquanto dormia —, eu abraçava a cintura da Violette e mergulhava em seu perfume de rosas, que levava minha mente e sonhos para um jardim florido, distante dos perigos do mundo.

Nas primeiras vezes em que acordei e a abracei, ela retribuiu acariciando minha mão de levinho, não mais que por um minuto. Mesmo que pequena, era uma demonstração de carinho que sobrevivia em meio ao caos nosso e do mundo. Nas horas perto do amanhecer, contudo, ela pareceu ser embalada em um sono profundo, respirando lentamente, e não retribuiu mais meus abraços.

Quando o relógio marcava sete horas, comecei a ficar agoniado com a repetição constante de dormir e acordar. Para piorar, meu corpo estava exausto com o treino e pedia mais descanso, justo quando a mente se negava a dormir.

Sonolento mas inquieto, sentei na cama e peguei o Livro para me distrair.

“É finalmente hora de ler os presentes que Omnix deixou para mim”, pensei, nascendo um sorriso no rosto como uma criança animada.

Abri as páginas por volta do número trinta e revi o texto inspirador que ele tinha deixado para mim, junto dos comentários sobre livre-arbítrio e escolhas. Virei a página e, onde era para haver folhas em branco, tinha uma mensagem escrita em letras chiques e formais no idioma de Viskhen. O conteúdo era:

Não há edifício grande sem um fundamento bem-elaborado. Não há vida que tenha se fortificado sem uma dor sólida, e nem vitória sem uma base extensa de esforço.

Se virares a página, verás uma verdadeira introdução à magia e feitiçaria da alma, e poderás aprender tuas primeiras armas e instrumentos de benefício próprio. Apesar disso, peço-te que não abras as páginas ainda.

Enquanto mago da alma, vi o interior de incontáveis pessoas, das mais humildes às mais poderosas, das mais odiosas às mais altruístas. No entanto, de todas emoções que vi, sem dúvida alguma, a que mais dilacerava os corações era a culpa.

O ser humano é tão averso à culpa, tão machucado por ela, que tentará de todas as formas escapar dela, mentindo para si mesmo, criando ilusões, fingindo para si mesmo ser incapaz de mudar para melhor, mudando de ambiente para não encarar as pessoas com quem errou, até esquecendo memórias vergonhosas, justo quando permanecem vivas e ardentes como fogo no coração.  

Haverá também aqueles que, não mentindo para si mesmos, são ainda incapazes de aceitar as coisas como são, vendo os erros próprios e dos outros. Achando a batalha muito maior que a força deles, desistirão dela, aceitando o fracasso e fazendo dele companheiro perpétuo. Haverá os loucos, que tentam mentir para si mesmo já não conseguindo mais; os sarcásticos, que, insatisfeitos com a própria consciência culpada, tentam apontar a de outros. E mais tantos outros tipos.

Mas, para toda culpa, há o arrependimento e a redenção, daqueles que lutam para serem melhores. O arrependimento, quando promove a mudança de comportamento, quando te faz quereres ser melhor, é talvez a única forma de alguém se desculpar consigo mesmo, ao fazer com que o próprio erro se torne acerto. Assim, se torna parte de ti, do teu novo “eu”. É como uma flor de lótus que, usando do lago pantanoso e podre da alma, faz da sujeira uma linda flor, pronta para espalhar seu perfume ao mundo.

É o que tens feito dia após dia, embora ainda haja mais coisas profundas a resolveres em teu coração.

A razão pela qual lhe escrevo essas reflexões sobre culpa é porque, a começar pela Violette, verás que ela possui uma grande quantidade de problemas não resolvidos. Impressionante que o teu amor a tenha feito não explodir ainda. Não obstante, ela é a parte menos importante. Trato de ti, Michael.

Enquanto eu estava em processo de desligamento para o sono, ouvi parte da conversa que tiveste com Violette e Aithne sobre a extensa Missão da Floresta que há de iniciar. Vi seus pensamentos receosos do que há de vir, e entendo tua apreensão.  

Infelizmente, a realidade é o que é, não importa o quanto queiramos que seja diferente. Eu preciso descansar, senão minha energia pouco poderá te salvar de qualquer problema maior. Retorno em exatamente onze dias. Como a Missão da Floresta durará duas semanas, dê o seu máximo para deixar os desafios mais perigosos por último, quando terás minha companhia. Creio que os professores planejarem deixar os piores problemas ao fim, mas reforce isso com a equipe mesmo assim.

 A despeito disso tudo, o ponto que eu gostaria de focar não é sobre sobrevivência, força ou perigo. É sobre ti. Do que adianta manipulares as almas das pessoas, conseguires poderes capazes de destruição, se serás como as pessoas que avalias, culpado e amargurado? Do que adianta matares alguém, se serás tu que serás a obrigado a viver enquanto morto, enquanto não mais que uma carcaça vazia?

Vejas. A vida funciona em ciclos. Os momentos vêm, repletos de oportunidades das mais diversas; mas, quando passam, passam. Tudo que tiveres feito terá impacto perpetuamente na vida das pessoas e no mundo; contudo, tudo que poderias ter feito e não fizeste viverá apenas no reino da fantasia, da sombria fantasia das possibilidades assassinadas pelas tuas escolhas.

Por isso, se vais começar um novo ciclo amanhã, trates de, junto com a preparação para a batalha, resolver tudo que precisas para que no futuro não te arrependas. Esse é um ciclo que termina, e pouco sabes o que acontecerá nessa missão, se amanhã ainda terás as mesmas oportunidades de hoje. Por isso, dês um fim apropriado a tudo que tens, ou, pelo menos, ao que for mais especial, e somente depois comece a jornada das páginas seguintes. Se podes crescer sem o sofrimento, o faças enquanto podes.

A dor ensina, mas a gratidão e os momentos especiais também.

No silêncio do quarto, li frase por frase, parágrafo por parágrafo. Às vezes, meus olhos paravam na folha, como se estivessem mortos por fora para viverem o mundo de dentro, refletindo sobre cada palavra.

Quando meus olhos captaram a última palavra do texto, encarei o livro, sem realmente enxergá-lo. Fechei-o. Vi sua capa escura simples, mas com um couro da mais alta qualidade. Coloquei-o na estante e...

Levantei-me da cama. Olhei para a Violette, que dormia profundamente. Minha mente processava o que havia lido, porém não com palavras. Buscava dentro do peito as oportunidades que perdi, as pessoas que mais importava. O que tinha de mais importante... E, entre todas as memórias, a Violette...

Diante dos meus olhos, observei a cabeleira ruiva dela. Um ruivo não-natural para a Terra, um vermelho carmesim vivo. Sua pele era branca, típica da nobreza, mas mais pálida, como se lhe faltasse calor e o roseado da pele. O corpo era magro e definido, suficiente para notar os diferentes músculos do antebraço desnudado pelas mangas arriadas, sem ter muito volume muscular. A cintura era larga, os seios e a bunda não eram grandes o suficiente para atrapalhar as acrobacias nas batalhas, mas ainda eram macios e davam um peso na mão que os apalpasse.

Sentei-me ao lado dela na cama com delicadeza, afundando pouco o colchão. Engraçado como que, vendo aquele rosto e corpo por tantas horas, todas minhas memórias eram dos seus sorrisos, da intensidade das risadas e das tristezas, do seu jeito brincalhão e dominador, mas também perdida e submissa. Nunca tinha reparado em como sua pele parecia sem vida. Talvez o tom claro fosse algo que os outros achassem bonito, mas...

Repousei a mão na bochecha dela com toda a leveza do mundo. No mesmo instante, sua expressão se fechou, um suave mas persistente incômodo marcando cada linha do rosto.

— Então essa é você... — falei com um sorriso feliz e tranquilo.

Essa era a grande Violette que ocupava tanto minha mente. A que fez eu me divertir e sorrir como nunca em toda minha vida; a que, às vezes, era tão durona e sedutora, mas também surpreendentemente frágil e quebradiça. Bastou uma pequena discussão para que algo a machucasse por dentro, para que ainda estivesse me evitando.

Meu dedão se aproximou do canto dos lábios dela, explorando a covinha quase imperceptível. As bochechas dela eram meio encolhidas, como se também lhe faltasse calor e vida. Como se fosse neve como a pele, uma neve rasa que esconde um mar de gelo.

Meus dedos passaram por todos seus cantinhos nevados, congelados ao longo dos anos. O carinho suave, aos poucos, fez a face dela relaxar, e um pequeno e natural suspiro dela pareceu relaxar o restante do corpo. Estando mais confortável, ela encolheu as pernas e se jogou mais de lado, encolhida como uma pequena criança.  

Naquele instante, me recordei de uma vontade que borbulhou meu coração depois que enfrentamos o monstro na floresta. Naquela tarde, ela era linda e forte. Tinha me resgatado do mal como uma heroína. Quis agradecer-lhe profundamente, e, no calor o momento, desejei dizer as três palavras universalmente proibidas, seja na Terra ou em Viskhen.

Agora, porém, o rosto dela não estava envolto pela luz avermelhada do pôr-do-Sol, revelando sua falta de cor, e seus olhos, que antes eram magentas, agora eram cor-de-pálpebras. Ela era frágil e magra. Uma garota indefesa, incapaz de se proteger.

O que mais me surpreendeu foi que essa fraca e delicada Violette fez meu coração bater ainda mais forte que a heroína valente que me salvou do monstro. Batia forte o suficiente para...

Beijei-lhe a testa, meus lábios demorando longo tempo para se soltarem da face dela. Ali, no quarto quentinho e silencioso, só nosso, longe de todos os perigos do mundo exceto dos nossos, sussurrei, com o coração tão calmo e ao mesmo tempo tão nervoso:

— Eu te amo. — E sorri.

Embora eu tivesse medo de qual seria a reação dela, uma parte de mim queria que ela estivesse acordada e ouvisse. Contudo, ela se jogou ainda mais para o lado, soltou o corpo e, com um pequeno sorriso relaxado, suspirou fundo outra vez. Ela dormia bem e profundamente.

Talvez alguma parte da mente dela, ainda que muito profunda, ouviu o recado e gostou. Que gracinha...

Acariciei uma última vez a bochecha dela, antes de me levantar. Em pé, peguei a lança perto do outro lado da cama e caminhei para a porta.

Olhei para a sinistra maçaneta, que era a única passagem entre esse mundo quentinho e o desespero de lá fora, e imaginei o tanto de coisas que eu deveria resolver para “finalizar o ciclo”, conforme Omnix recomendou. A primeira coisa seria visitar a sala de aula agora de manhã, para ver o que o fantasma, que parecia com a Maria, queria. Era arriscado, arriscado demais, mas...

“É preferível me arrepender do que fiz, do que do que não fiz.”

E, na pior das hipóteses, agora as outras turmas estariam tendo aula nas salas ao lado, não é? Ou...

Engoli em seco ao pensar que as outras turmas também poderiam ter seus próprios testes de imersão, semelhantes ao da Floresta. Podiam não estar tendo aula...

Cocei a cabeça e meus braços ficaram frios. Percebi que a situação pode ser mais perigosa que imaginava, e que não era o Sol da manhã que retiraria o risco de uma assombração letal. Olhei para a Violette e pensei em chamá-la comigo, mas...

Ela não via as criaturas, levá-la só a exporia a mais riscos sem me proteger. Além disso...

O sorriso dela era tranquilo. Não muito, mas raramente a via ter serenidade. O tempo inteiro eram emoções flutuantes e intensas, nunca uma paz... Não queria quebrar isso.

E nunca quebraria. Lutaria para que ela pudesse descansar assim, tranquila.

Coloquei a mão na maçaneta e as runas começaram a brilhar. A tranca da porta foi aberta. Puxei a maçaneta para trás e o corredor que se revelou foi...

Um lugar estreito, meio escuro e abafado, em que cada som ecoaria pelas paredes cavernosas.

Adentrei no local e comecei a fechar a porta. Vendo a Violette deitada em paz, um pequeno sorriso tomou meu rosto, logo antes de fechá-la dentro do quarto.

Enquanto olhava os arredores, o coração já acelerando, e me preparava para encontrar todo tipo de perigo, mal sabia eu que a fronha do travesseiro em que Violette deitava acabava de ser molhada com uma lágrima muda, que penetrou pelo tecido e escorreu fundo adentro, deixado apenas sua pequena mancha acinzentada na superfície branca. 



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