O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 55: Gotas

Ontem eu havia passado tão depressa por esses corredores que não tinha me dado conta do quão opressores eram.

Debaixo da terra, o ar era seco e arranhava a garganta; as tochas crepitavam alto o suficiente para talvez não ouvir se alguém ou algo fizer um barulho baixo. Mas meus passos, por ironia, eram bem audíveis, e os escutaria quem quer que estivesse nos quartos ao meu redor, cujas portas fechadas poderiam se abrir a qualquer momento.

Apesar do tanto de fogo, a temperatura era anormalmente fria, e o corredor, embora estreito, tinha um teto alto, onde a luz das tochas deixava algumas áreas em completa escuridão. A mistura de ar seco e paredes estreitas me davam uma sensação abafada, estranha. Se precisasse me esquivar para os lados, estaria condenado...

Passo por passo, segui em frente, até que ouvi uma gota caindo atrás de mim, na direção do meu quarto. Meus braços estremeceram, uma onda de frio passando por eles, e me virei para trás.

O corredor que encarei estava normal. As tochas vibravam como sempre e as portas permaneciam fechadas.

“Que estranho...”

Não fazia sentido ter água no teto. Só se tivesse uma infiltração. Porém não choveu...

Enquanto buscava explicações, meus olhos precisaram continuar a encarar o corredor, que permaneceu o mesmo não importava quantos segundos se passaram. Não houve mais nada de anormal.

Minha atenção se voltou à porta de onde vim e nunca senti tanta vontade de me refugiar com Violette. Considerei isso por alguns instantes, antes de suspirar fundo e, com um nó no peito, aceitar o destino que eu mesmo decidi.

No fim, eu estava aqui por escolha minha. Pela primeira vez, o problema não apenas me perseguia, como eu estava tentando encontrá-lo ativamente. E o maior problema era...

Virei-me de costas para o quarto e observei o corredor à frente, tomando cuidado com o teto misterioso que poderia esconder qualquer coisa.

A cada segundo, meu coração batia mais depressa. Afinal, quanto mais andava, maiores as chances de encontrar alguma coisa no caminho. E o pior: ia na direção de onde havia aparecido um fantasma no prédio das aulas. Quanto mais próximo de lá, maior as chances de encontrá-lo vagando, talvez me procurando.

Mas reabasteci a coragem e voltei a andar adiante. Realmente era uma tortura saber que tinha alguma coisa ali, que esperava por mim de manhã, e que, a cada passo, mais me aproximava. Só que...

Final de ciclo. Perderia a oportunidade de ver o que o fantasma quer. Seria uma janela fechada para sempre. Se tiver qualquer coisa boa para se extrair disso, preciso aproveitar. Preciso...

Caminhei até a primeira encruzilhada, onde quatro caminhos perpendiculares se encontravam. O da frente eu conseguia ver; era igual ao meu, com exceção de não ter portas. Porém, o da direita e o da esquerda eram impossíveis de ver, a não ser me aproximando mais. Era o da esquerda que me levaria ao prédio das aulas.

Cerrei os dentes e segurei a lança com firmeza. Escorado na parede à minha esquerda, cheguei até o começo do cruzamento. Daquele ângulo, deu para ver o corredor da direita. Parecia seguro, sem nenhum problema visível. Agora o da esquerda, no meu ponto cego...

Dei um pulo súbito à direita e ergui a lança na direção do caminho à esquerda, me preparando para confrontar qualquer aparição súbita. Enquanto a ponta da lança oscilava no ar, meus olhos passaram por cada detalhe, por cada rachadura das pedras, por cada farfalhar das tochas. Nada vi de diferente.

Soltando um pequeno suspiro de alívio, adentrei no corredor e, no momento em que entrei nele...

Uma outra gota caiu. Foi bem mais perto de mim, no corredor de onde vim.

Minha nuca se arrepiou e pulei para frente para me afastar; rodando o corpo no ar, me posicionei de forma que conseguia observar o local de origem do som.

Infelizmente, as paredes eram apertadas, de forma que não conseguia ver quase nada do corredor depois da encruzilhada. A única coisa que pude enxergar eram as luzes emitidas pelo fogo dançando, criando sombras irregulares que pareciam ter vida própria.

Algo horrível poderia estar ali, sendo a causa dos pingos, mas nunca tomaria o risco de ir verificar. Se eu tivesse qualquer magia capaz de rastrear o ambiente ou sentir manas próximas...

De repente, uma ideia sobre magia da alma estourou pela minha mente e, no instante seguinte, a coloquei em execução. Fechei as mãos em formato de concha, deixando as palmas uma na frente da outra. Delas, mana vazou e formou uma ponte conectando-as. A energia, semitransparente, era um misto partes de azuis e roxas, como se as cores não conseguissem se misturar.

Canalizei o feitiço de compartilhamento de sentidos. Ele era largo, abrangendo uma área esférica de seis metros de diâmetro. Imaginei cada detalhe diminuindo de escala junto do contorno, até caber nas mãos.

Quanto mais próxima cada parte da runa ficou, maior era a repulsão entre elas. Era como tentar grudar dois ímãs. Comecei a suar de tão difícil que foi, mas consegui estabilizar a runa do tamanho de uma bola de papel nas minhas mãos. Injetei uma fatia de mana e ela começou a brilhar. Só faltava mais uma etapa para meu plano mirabolante dar certo...

Quanto mais demorava para conjurar o feitiço, mais o coração acelerava. Meus ouvidos se concentraram tanto em capturar cada pequeno som que chegavam a ficar sensíveis.

Na esfera que criei, formei um cordão de mana que, conectado a mim pela palma da mão, me permitiria ver o que algo ou alguém visse lá dentro. O problema era ter esse ser vivo...

Para resolver isso, imaginei a mana tomando a forma de um olho dentro da bola. Se a mana é energia viva, então deve ser possível...

De repente, fui capaz de enxergar mesmo de olhos fechados. O alcance da visão era menos largo, como se fosse um só olho. Abri meus outros dois e tive uma visão estranha. Ao mesmo tempo que enxergava com os olhos da face, também via através da esfera. Eram duas visões coexistindo simultaneamente, uma em cima da outra. Era como se dois filmes passassem em uma só televisão, ambos ocupando a mesma área da tela. 

Meu cérebro doeu um pouco ao ter que processar isso, mas mordi os lábios e suportei. Com a esfera do olho sido feita com sucesso, consegui fazê-la flutuar até a encruzilhada, virada para o caminho de onde vim. Lá vi que...

Não havia nada. Examinei cada detalhe também do teto, mas estava tudo normal. Relaxei e...

Merda. Só naquele momento percebi que fiquei tão focado em olhar para lá que fiquei de costas o tempo todo para o caminho até o prédio, justo onde era mais possível de ter algo.

Sem tirar o orbe do cruzamento, segurei firmemente a lança e girei com um ataque que cortaria qualquer coisa que estivesse atrás de mim. A lâmina metálica rasgou o ar e parou perto da parede, sem ter pego nada. Tudo parecia igual antes de me virar.

Estava seguro de novo, e agora o olho me possibilitava ver se algo viria da encruzilhada. Pela primeira vez, me senti como se estivesse no controle da situação. Nada conseguiria me pegar por trás.

Junto de uma coragem que nascia dentro de mim, uma onda de adrenalina inundou meu corpo. Comecei a andar mais depressa, sem me importar com os passos ficando mais barulhentos. Porém...

À medida que me distanciava, a qualidade da imagem do olho ficava pior, meio borrada e falha. A linha de mana que me conectava à esfera ia se tornando mais fina e frágil. Merda...

Parei e dei uma última olhada no corredor antes que desconectassse a visão.

Estava tudo certo. Com isso, trouxe o olho para minha nuca e andei pelo restante do corredor com ele. Daquele jeito, conseguia ver quase tudo, inclusive se algo saísse do teto. Bastava posicionar ambas as visões um pouco para cima.

Cheguei na escadaria para o prédio e a tomei. Saí no alçapão que Violette havia fechado às pressas no dia anterior.

Agora eu realmente estava perto do fantasma, e ele podia estar na sala do alçapão, me esperando com um sorriso diabólico ou só vagando perdido pelo lugar.

“Por que tantas portas e alçapões?... Se isso fosse uma história, o autor com certeza ama me ver sofrer...”

Para não tomar nenhum ataque súbito, abri a tampa com a ponta da lança, ficando distante.

Uma pequena abertura revelou uma parte do cômodo. Fiz o olho entrar na sala primeiro e investigar os cantos. O ambiente estava tranquilo.  

Além disso, a porta do lugar estava aberta. Com a magia, investiguei o corredor brevemente de ambos os lados e quase ri ao ver o quão agradável o ambiente se tornava de dia. Se antes o chão xadrez parecia o de um necrotério, agora era como uma cozinha de uma casa feliz. Os flocos de poeira dançavam no ar à valsa do Sol que os iluminava, mais majestosos que sujos. Não tinha nenhum estudante, mas tudo era mais convidativo.

Abri o alçapão e a madeira velha rangeu, quebrando por completo o silêncio. Mesmo assim, segui com mais confiança, principalmente com a segurança que a visão do olho me dava.

Bati a poeira do uniforme e entrei no corredor. Segui por ele até a sala da minha turma, cuja porta estava fechada. No percurso, não ouvi nenhuma voz, e as portas das salas estavam todas fechadas. Sem pensar muito sobre isso, concluí que estavam tendo aula, e eu não escutaria nada porque as salas tinham feitiços de isolamento acústico.  

De frente para a porta, quando ia encostar na maçaneta, uma dor de cabeça atacou meus neurônios. Ficavam sobrecarregados com o excesso de informações visuais.

Na região do estômago, também sentia uma leve fraqueza, como se algo faltasse — no caso, mana. Por causa dos treinamentos recentes, passei a entender melhor o quanto a possuo. A reserva de mana parecia estar por volta da metade. O gasto da magia em comparação com feitiçaria era assustador...

Sem muita escolha e não tendo a habilidade para redimensionar a esfera para passar pelas brechas da porta, cancelei a magia e abri a sala.

Revelou-se diante de mim um mar de cadeiras e mesas vazias à direita, que estavam em degraus que subiam à medida que ficavam mais ao fundo. O palco do professor era um metro acima do chão, com três quadros verdes extensos. Olhando-a vazia assim, parecia maior do que me lembrava. Era um auditório digno para a nobreza. As grandes janelas de vidro não estavam tampadas pelas cortinas, deixando tudo claro e visível.

Caminhei para o interior do local. Apesar de estar no olho do caos, não me senti tão ansioso como imaginei. Em vez disso... curioso. Era como se o mistério, por mais perigoso que fosse, me convidasse a resolvê-lo.

Ali, tentei lembrar em qual carteira havia visto Maria no dia anterior, quando ela lia algo. Tinha uma ideia geral, mas longe de exata.

Fui até a região que as memórias indicavam e examinei cada mesa e cadeira. Todas estavam iguais, sem nada diferente. Sem nada de... fantasmagórico. Não foi ela que me pediu para vir aqui de manhã? Não deveria ter algo me esperando?...

O fato de não ter nada fez meu coração acelerar. Na verdade, eu estar aqui, no meio da sala, longe da única saída, preso num mar de cadeiras... Se ela entrasse justo pela porta e bloqueasse minha fuga...

Como um robô enferrujado, virei lentamente para encarar a entrada. Quando não vi nada, nunca me senti tão aliviado na vida. Até comecei a rir, em ironia por eu ter ficado tão nervoso com nada-

Ping.

O som de gota caiu atrás de mim. Na mesa. Na mesa atrás de mim. A centímetros das minhas costas.

Minha reação inicial foi travar igual uma estátua, feito um idiota à espera da morte. Não, eu não podia fazer isso. Só pioraria a situação. Merda. Merda.

Com toda minha força, saltei para longe, rodando com a lança empunhada.

Contudo, quando me virei... Nada havia de anormal. Tudo estava igual antes. Quase tudo, com exceção de...

Andei adiante e parei do lado de uma mesa que, agora, tinha um envelope branco com manchas vermelho-escuras. Exalava um cheiro metálico, o mesmo que senti antes. Era definitivamente coisa daquele fantasma.

Um arrepio se espalhou por todo corpo e rodei pelo local, encarando cada canto, cada lugar debaixo das mesas e até o teto, à busca de qualquer criatura que pudesse me matar. Novamente, nada tinha de estranho.

“Merda...”

Para investigar o envelope em segurança, conjurei o olho e o coloquei ao teto, onde tinha uma visão panorâmica de toda a sala. Suportei um pouco a dor de cabeça e abri o envelope, retirando de lá uma carta.

Quem quer que tivesse escrito, tinha uma caligrafia linda e elegante. Exageradamente elegante, ainda mais que a de Omnix Beytran, que parecia rústica e direta em comparação. O conteúdo era simples. Quatro linhas e duas palavras em cada.

Relógio. Meu.

Pegue. Hayek.

Envie. Família. 

Por. Favor.

Cocei a cabeça, avaliando o conteúdo enquanto me certificava de que nada me aguardava na porta — e nada estava lá.

Se o fantasma for Maria, então deveria se tratar do relógio de ouro dela, que encontrei na biblioteca. O mesmo relógio que foi citado no papel que achei na primeira vez que dormi no quarto da Hayek. Se todas as previsões estiverem certas...

Ela queria que eu pegasse o relógio dela, que estava com Hayek, talvez no escritório dela, e o enviasse à família.

“Rapaz...”

Não tinha nem ideia de como iria me esgueirar por lá sem ser visto. Deve haver runas por toda parte, igual o quarto que ela me emprestou. Como que eu...

Foi então que me lembrei de uma coisa.

Recadastramento de mana.

Era algo que tinha me esquecido porque sempre tinha alguém comigo que passava o cartão para mim, então não me importava muito. Também estava com medo de Hayek perceber alguma coisa estranha em mim e na minha mana, então evitei me expor. Só que agora seria a oportunidade perfeita...

Deixei o envelope de volta à mesa com cuidado, sem amassar nada. De alguma forma, não sentia uma pressão ruim do ambiente. Se realmente tivesse um fantasma da Maria invisível ao meu lado, não exalava nenhuma mana ruim ou maligna.

Em honra a ela, curvei-me e fiz uma pequena prece, pedindo que Deus a iluminasse e a abençoasse. Também...

— Se você estiver me ouvindo, queria te agradecer pelo feitiço do espinho de gelo naquela batalha. Se não fosse por isso... Enfim, se entendi direito, você quer que eu envie o relógio à sua família. Farei isso. Considere isso apenas um agradecimento por salvar minha vida.

O som da minha voz foi prosseguido pelo silêncio da sala. Não que eu esperasse outra coisa, mas...

Suspirei. No fundo, eu queria ver algo sobrenatural acontecendo na minha frente. Ela escrevendo na carta, ou movendo algo. Quanto menos perigo eu sentia, mais curioso ficava.

“Será que eu sou louco por estar tão à vontade assim?...” Meu coração ainda estava acelerado e o efeito da adrenalina nos braços era óbvio, deixando-os meio frios. Mas, aos poucos, eu relaxava. O fato de Maria aparentar ser de fato Maria e não outra coisa pior me tranquilizava, e as gotas pareciam vir dela. O fato de ela querer minha ajuda também era algo bom.

Isso não eliminava o fato de ter um monstro pálido e uma entidade das sombras me perseguindo. Mas, dos três perigos, um eu já saber que não era ameaça me tranquilizava...

Porra, me tranquilizava merda nenhuma. Ainda tem duas atrocidades por aí. Puxei o cabelo para trás, pensativo, e, depois de pensar um pouco, falei:

— Aliás... Maria. Ontem havia duas criaturas me perseguindo. Uma tinha dedos pálidos e unhas longas e pretas. A outra era um vulto que me observava nas sombras, mas, sempre que jogava luz nele, desaparecia, apenas para aparecer de novo quando a desligasse. Será que você... poderia pelo menos... Digo, poderia me proteger até eu conseguir enviar o relógio para sua família? Devo conseguir fazer isso ainda hoje... Só... uma proteçãozinha?

Era uma negociação justa. Se era algo importante para ela, me proteger seria o natural.

Infelizmente ela não respondeu ou deu qualquer sinal. Talvez a questão fosse mais complicada. Não sabia o poder dela. Talvez o máximo que ela pudesse me dar fossem algumas intuições, como as que eu costumava ter e que cessaram há um tempo. Quando foi que elas pararam?...

Sem muita oportunidade de refletir sobre isso naquele lugar, que começava a me dar nervosismo pela conversa unilateral, me dirigi até a porta da sala, no caminho cancelando o feitiço antes que torrasse toda mana.

Na entrada, olhei uma última vez para as carteiras. Estavam harmoniosamente colocadas. E agora que reparei que onde a carta apareceu era uma carteira que, por algum motivo, sempre estava vazia nos dias de aula. Interessante...

Não soube explicar o porquê, mas, quando saí da sala, fechei a porta. Não para fugir. Era... respeito? Enfim...

Após verificar que a parte visível do corredor estava segura, me pus a andar. A próxima parada seria o prédio dos professores, onde haveria o escritório da Hayek, em que a Guinevere também estaria trabalhando. Seria um longo percurso...

Assim que comecei a andar, ouvi o som de giz deslizando por um quadro de alguma das salas. A sucessão de sons era rápida, como se alguém escrevesse com pressa. Não era para eu ouvir nada disso, por causa do feitiço de isolamento acústico.

Enruguei a testa e retornei para a sala de aula. Abri a porta sem pensar muito e, diferente de antes, havia duas palavras no quadro verde.

ENTREGAR. PESSOALMENTE.

Entregar pessoalmente?

Só então a ficha começou a cair. A missão dela não era simplesmente colocar o relógio em um correio. Era algo muito maior. Entregar a eles pessoalmente. Eu nem sabia onde ficava o território da casa dela.

Um sorriso de ironia e incredulidade se abriu na minha face enquanto observava aquelas duas palavras.

 

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