Volume 1 – Arco 4

Capítulo 27: Esquecidos.

Na escuridão, pouco, ou quase nada, era possível ver. O momento oportuno para bandidos e feras atacarem sem aviso, movidos pela fome ou ganância. Alimento e dinheiro: os únicos bens que valiam o risco da violência. 

Por isso, o Império mantinha patrulhas em suas estradas. Cada entrada e saída cronometrada, cada nome registrado. Se alguém desaparecesse, um pelotão seria designado para encontrá-lo. 

Para os que insistissem em seguir por rotas clandestinas, restavam apenas tochas, coragem e armas próprias. 

A carruagem se movia suavemente sobre a estrada. Sua construção refinada amortecia os impactos do caminho. Mal se notavam os solavancos. Era fácil pegar no sono, como fizera a jovem filha do casal, adormecida desde a partida. 

Protegidos por um grupo de mercenários particulares, o casal acreditava ter liberdade suficiente para escolher qualquer caminho, em qualquer horário.  

Talvez estivessem certos. Não foram emboscados nem uma única vez. 

Quando o sol finalmente nasceu no horizonte, seus primeiros raios atravessaram a janela da carruagem, tocando suavemente o rosto da menina e despertando-a com delicadeza. 

Ainda sonolenta, a criança encostou a cabeça na moldura da janela. Foi então que viu algo que lhe chamou a atenção. 

— Aqueles são fazendeiros, mamãe? — perguntou, com a inocência de quem ainda descobria o mundo. 

— Isso mesmo, querida — respondeu a mãe. — Eles trabalham muito, recebem pouco... mas é graças a eles que temos comida em nossa mesa. 

O rosto da mãe estava obscurecido pela luz do sol. Era uma pena. Aquela voz era a única lembrança que a garota guardaria com nitidez. As imagens se apagariam, as palavras não.

Melhor assim. Melhor do que lembrar de seus últimos momentos. 

— Mas não é o papai que compra a nossa comida? 

Chegara à idade da curiosidade, quando perguntas surgiam como flores na primavera. Mesmo quando os assuntos não agradavam, sua mãe os recebia com paciência. Sabia que eram sementes da índole que queria cultivar. 

— Sim, filha. Mas entenda... sem os fazendeiros, não haveria comida para comprar. Todos nós teriámos de cultivar o nosso próprio alimento. E isso levaria muito tempo. 

— Mais do que eu levo estudando? 

— Muito mais. Você acordaria cedo e trabalharia na terra até o anoitecer... 

— Que legal! Eu quero ser fazendeira quando crescer! 

— Basta! — interrompeu o pai. 

Sua voz cortou o ar como um chicote. Era uma sombra dentro da carruagem. Onde a mãe era calor, o pai era pedra. Sua natureza autoritária e fria fincaria raízes profundas na memória da jovem.

Esquecê-lo era a melhor forma de aceitá-lo. Ainda assim, suas palavras, por vezes, carregavam valor. Seu amor, jamais. 

A mãe, incomodada ao ver o brilho nos olhos da filha se apagar, puxou-a para o colo. Decidiu dizer-lhe algo que julgava importante. 

— Não se esqueça, Erina: todas as vidas têm valor. Do mais simples fazendeiro ao mais rico dos nobres. 

— Mas o papai não cura somente os nobres? 

— Sim. Mas essa é a escolha dele. Quando você crescer, quero que cure as pessoas pelo que elas são... não pelo peso da bolsa que carregam. 

Naquele dia, Erina não entendeu o peso daquelas palavras. Era cedo demais. Mas o tempo se encarregaria de esculpi-las em sua alma. Anos depois, tornariam-se a base de sua bússola moral. Um senso de justiça que guiaria suas ações com convicção inabalável. 

Mesmo que, para aprender a julgar o caráter, fosse necessário primeiro conhecer a traição. 

***

Ai! — Erina sentiu um apertão no braço, dado por Xin. 

Desculpando-se com gestos rápidos, a jovem explicou que o ladrão do pão fora apenas uma distração. Seu parceiro aproveitara a comoção para roubar mantimentos de verdade, aproveitando o momento em que os vendedores haviam se afastado de suas barracas. 

Erina saiu de seu transe, forçando-se a afastar o pensamento do homem morto. Agradeceu a companheira em Signês e esboçou um leve sorriso; suficiente para fazer Xin desviar o olhar, envergonhada. 

Takashi, por outro lado, sentia-se frustrado. Deveria ter percebido o segundo ladrão. 

“Eu perdi o foco. Concentre-se!”, resmungou para si mesmo. 

Desviando da multidão, puderam identificar o gatuno pelas ações sutis e movimentos cuidadosamente ensaiados. Ele se destacava pela forma sorrateira com que se infiltrava entre os civis. 

— Pegou mais um saco de grãos — disse Takashi, de olhos atentos. 

— Ele é bom... vamos nos aproximar com cuidado. 

Como eram os únicos indo na direção oposta à da multidão — e ainda carregavam armamentos nada discretos — logo foram notados pelo ladrão. 

Ninguém ali queria chamar atenção. O Juiz ainda estava presente, vangloriando-se de sua "justiça divina". Se soubesse da existência de um segundo ladrão, adoraria exibir mais um espetáculo sangrento. 

O ladrão não queria morrer. Erina, por sua vez, queria respostas. 

Iniciaram então uma perseguição discreta. O homem acelerava o passo, mas sem correr. Tentava se distanciar e desaparecer, enquanto o grupo se mantinha próximo sem despertar suspeitas das autoridades. 

Ele se escondia entre as barracas, roubava pequenos itens ao passar e, em um momento oportuno, trocou sua capa por outra, uma azul chamativa, diferente da anterior. 

A perseguição se estendeu por dúzias de barracas, centenas de rostos. Até que o perderam de vista. 

Erina e Xin giraram os olhos ao redor. A última vez que o viram, ele usava a capa azul. Precisavam encontrá-lo antes que trocasse de novo. 

Takashi sentiu a frustração aumentar. Aquele era para ser seu momento de brilhar, de provar seu valor. Mas fora igualmente ludibriado. 

Olhou para o arco em dúvida, quase em raiva. 

“Qualquer outro Flecha Fantasma teria conseguido acompanhá-lo... Eu sou um fracasso!” 

Foi então que o arco brilhou. Um brilho que só Takashi podia ver, pois era o portador. 

A escuridão engoliu o mundo. 

Takashi não entrou em pânico. Sabia que aquilo era o arco agindo. Um auxílio. 

O cenário retornou aos poucos, mas agora em tons de cinza, como se o tempo houvesse congelado em carvão e névoa. Ele notou, no entanto, que estava alguns passos atrás de onde estivera. Estava em movimento, mas não tinha controle de seu corpo, apenas de seus olhos. 

Entendeu, então: estava revivendo suas próprias memórias. 

O ladrão, desta vez, destacava-se com nitidez. Sua capa azul reluzia em meio ao mundo esmaecido. 

Takashi pôde ver com clareza o instante exato em que o perderam: o ladrão fingira saltar por uma barraca, mas, na verdade, caminhara ao lado de dois civis e se escondera atrás deles. Discretamente, trocou a capa por uma manta embranquecida, um tom neutro, comum a muitos outros ali presentes. 

A visão prosseguiu um pouco além, revelando a direção para onde ele se dirigira em seguida. 

A memória desvaneceu. 

— Perdemos ele — disse Erina, desapontada. 

— Eu sei para onde ele foi — respondeu Takashi, ainda confuso, como se estivesse voltando de um sonho. 

As duas não hesitaram. Confiavam nele. 

Sem mais delongas, seguiram o arqueiro para fora do centro comercial. 

***

Foram levados para perto de uma montanh, até a entrada de uma caverna escondida pela vegetação e pela sombra da encosta. 

O cheiro que escapava do local era repugnante.

Xin foi obrigada a usar apenas uma das mãos para se comunicar; a outra tapava firmemente as narinas. 

Perguntou se Takashi tinha certeza de que o ladrão havia entrado ali. 

— Ele está certo — respondeu Erina, com firmeza.

Deu os primeiros passos, obrigando seus companheiros a seguirem-na. 

A cada passo caverna adentro, o ar ficava mais denso, o fedor mais penetrante. Então vieram as visões. Horrendas. Vergonhosas. 

Dezenas de milhares de pessoas — ou o que restava delas — amontoavam-se em um único espaço fétido. Compartilhavam o chão com ratos, e com os cadáveres de seus entes queridos. 

Uma família, em especial, aguardava pacientemente que os ratos devorassem o corpo de um filho morto. Planejavam comer os roedores assim que estivessem mais gordos. 

Xin não suportou. Vomitou. 

Deu alguns passos para o lado, tentando se recompor. Mas então ouviu: passos rastejantes se aproximando. Pessoas famintas vinham provar daquilo que ela acabara de pôr para fora. 

Ela ainda queria vomitar. Mas não havia mais nada em seu estômago. 

Foram cenas de puro desespero — sessões de trauma e degradação.

Só depois de atravessar aquele inferno é que encontraram o ladrão. 

Ou melhor, a ladra. 

Ela retirou o capuz, revelando ser uma mulher.

Por baixo da manta suja, vestia apenas roupas íntimas e dezenas de bolsas, cuidadosamente amarradas ao corpo, cada uma abarrotada com tudo o que havia conseguido roubar. 

O trio ficou em silêncio, espantado com a quantidade. Era muito mais do que qualquer um deles havia notado durante a perseguição. 

Um grito coletivo ecoou pelas paredes da caverna. Não era assustador. Era... empolgado. 

Crianças correram na direção da mulher. 

Lois chegou! — diziam, com entusiasmo. 

— Calma, calma! — disse Lois, sorrindo. — O que eu ensinei a vocês? Façam uma fila ou sentem-se ao meu redor. 

Com delicadeza e método, Lois começou a distribuir os alimentos. Um a um, cada pequeno rosto recebia um saco com grãos, pães, linguiças. Apenas comida. Nada mais fora roubado além daquilo que sustentaria aqueles corpos. 

Uma a uma, as crianças corriam para suas famílias, exibindo o que haviam ganho. Eram poucos sorrisos para uma realidade tão crua. As famílias priorizadas eram aquelas cujos filhos ainda tinham força para correr. 

Por fim, restou uma. 

Tímida, assustada, caminhou hesitante até Lois. 

— Senhorita Lois — disse, mexendo nervosamente os dedos —, o papai vai voltar? 

A mão de Lois estremeceu. A pergunta a golpeara com força. 

— É... é claro! — respondeu, forçando um sorriso. — Tome, ele me pediu que entregasse isso a você. 

— É bacon! Mas como...? 

— Não importa, querida. Apenas leve para a sua vó. E... não compartilhe com ninguém, está bem? 

— Sim! Muito obrigada, Lois! 

A menina a abraçou com força, com sinceridade. 

Depois partiu, ainda saltitando. 

Quando desapareceu caverna adentro, Lois caminhou até a parede mais próxima. Cerrando os punhos, socou a rocha com raiva. Frustração. 

Os adultos ao redor já sabiam. Sabiam quem havia morrido. Mas não queriam que as crianças compartilhassem aquele fardo tão cedo. 

— Aquele homem... era o pai dela, não era? — perguntou Erina, num tom suave, escolhendo o momento certo para se aproximar. 

Lois se virou num pulo. Agachou-se com destreza, puxando uma lâmina da bota. 

— Quem são vocês?! O que querem?! 

— Relaxa — disse Erina, levantando as mãos. Takashi e Xin fizeram o mesmo. 

Xin aproveitou para perguntar, em Signês, se Erina achava que Lois era confiável. 

Lois, surpresa, arregalou os olhos. Guardou a lâmina. Respondeu em gestos: “Isso depende... de quem são os seus aliados.” 

— Então sabe Signês também? — indagou Takashi, impressionado. 

— O que acha que somos? Miseráveis? 

— E não são? — rebateu Erina, sem hesitar. 

Lois baixou os olhos. 

— É... tem razão. Desculpem-me. 

(...) 

Com os ânimos mais calmos, Lois os conduziu até seu "quarto" — uma fenda escura e úmida no interior da caverna, onde descansava quando podia. Era o mais próximo de privacidade que possuía naquele inferno subterrâneo. 

Apenas uma manta estendida sobre o chão úmido, com uma vela acesa ao lado. Nenhum móvel, nenhum armário. Na verdade, não havia nada que precisasse ser guardado. 

— Pensei que fossem mercenários do Juiz — disse Lois, sentando-se. — Faz tempo que não recebemos visitantes. Vocês foram os primeiros a explorar as cavernas logo no primeiro dia. 

— Queríamos respostas — respondeu Erina, sentando-se com cuidado. — Pensamos que alguém como você teria uma visão mais realista da cidade do que aquele comerciante que encontramos. 

— "Alguém como eu"? — perguntou Lois, franzindo o cenho. 

— Você não parece uma simples moradora. É uma ladra habilidosa e comanda, ao que parece, um pequeno grupo de salteadores. Roubou quantidades absurdas de comida bem debaixo do nariz do Juiz. Achei que teria algo mais... honesto a dizer. 

— Ainda que minimamente deturpado — completou Takashi —, por estar do lado prejudicado da história. 

Lois encostou-se na parede de pedra, cruzando os braços. Não sentia vontade de compartilhar sua história — não ganharia nada com isso. Mas precisava distrair-se da perda de seu subordinado. 

— Estão quase certos. Richard era o último homem que eu liderei. Um por um, perdi todos para o Juiz... tudo em troca de comida para esse povo. É claro, conforme fui perdendo mais aliados, também diminuiu o que conseguia roubar. Hoje, mal consigo alimentar as famílias com crianças. Às vezes, nem isso. 

— Você sacrificou seus homens? — questionou Erina, o tom carregado de julgamento. 

— Não! — respondeu Lois, firme. — Eles se ofereceram. Para dar aos amigos, vizinhos, parentes... coisas que nem entendo. Às vezes, roupas bonitas. Outras, cobertores. Mas, na maioria das vezes... comida. Sempre comida. 

Ela parou um instante. A voz tremeu, mas não quebrou. 

— Richard adorava bacon. Vivia dizendo que não suportava a ideia de sua filha morrer sem saber o gosto daquilo que ele tanto amava. Então escolheu morrer por ela. Para que, ao menos uma vez, ela pudesse provar. 

Xin questionou se em algum momento no passado a situação deles fora melhor. 

— Não — respondeu Erina, cortando o rumo da conversa. — Como podemos sair da cidade? Temos uma jornada importante pela frente. 

Lois suspirou, mais envolvida na conversa do que gostaria de admitir. 

— Vocês já ouviram falar da Taxa de Saída, não é? 

— Sim — confirmou Erina. — Mas ouvimos que não é só ela o problema. 

— Exato. Mesmo se conseguissem o dinheiro, os impostos e as outras tarifas impediriam qualquer saída “legal”. E o Juiz... bem, vocês já o viram. Ele não deixaria ninguém fugir sem pagar. Pelo menos, não sem lutar por isso. 

Erina levou a mão ao queixo, pensativa. 

— Enfrentar a autoridade de uma Cidade-Livre? Seríamos considerados criminosos. Teríamos que viver escondidos. 

— E não é qualquer Cidade-Livre — disse Takashi, preocupado. — É Altunet. O continente inteiro saberia. 

Xin fez um gesto irônico, lembrando que o grupo não era muito bom em “ficar na moita”.  

Era verdade — cada um deles se destacava demais, especialmente Kaji. 

— Há uma alternativa — continuou Lois. — Podem tentar conversar diretamente com o Governador. Talvez tenham algo que interesse a ele. Não sairia barato, mas ainda seria melhor que a Taxa de Saída. 

Ela fez uma pausa antes de continuar. 

— Mas... vocês vieram num péssimo momento. Estamos em época de Votare, o evento político que define o novo Juiz e o novo Governador da cidade. Por isso, todos os prédios oficiais estarão fechados até o fim do evento. 

— O Governador e o Juiz podem ser substituídos? — perguntou Takashi. 

— Quanto tempo até isso acabar? — quis saber Erina. 

— Começa amanhã. Dura duas semanas. Se houver mudança no governo, o novo terá até dois meses para se estabelecer. 

Xin levou a mão à testa, exausta. 

Takashi recostou-se, as mãos na nuca e a cabeça baixa. 

Erina manteve-se séria, olhos fixos no chão. As opções estavam diminuindo. 

— Desculpem-me — disse Lois, sincera —, por não ter notícias melhores. 

— Não se preocupe — respondeu Erina. — Tenho certeza de que sua situação é pior que a nossa. Há algo que possamos fazer por você? 

Lois a encarou, surpresa. Não estava acostumada com ofertas de ajuda. nem mesmo quando acompanhadas de trocas. 

— Não — respondeu, após um breve silêncio. Levantou-se, sabendo que logo se despediriam. — Acho que esse povo aguenta até o fim do evento. 

— Está envolvida? 

— Sim. Tentarei o cargo de Governadora. Se a maioria votar em mim, vencerei. E talvez... talvez consiga mudar alguma coisa. 

Erina olhou em volta. Não precisava conhecer política ou economia para saber o óbvio. 

— Tenho certeza de que já tem a maioria ao seu lado. 

As duas riram. 

— Posso votar em você, se quiser — disse Erina, com leveza. 

Lois corou, sem saber como reagir. 

— Lamento. Só os cidadãos podem votar. 

— Entendo. 

Não havia mais o que dizer. A despedida foi inevitável. 

Lois precisava se preparar para o evento. Erina, reencontrar seu grupo e decidir os próximos passos. 

Seguiram caminhos opostos. Lois adentrou a escuridão da caverna. Erina caminhou em direção à luz da saída. 

— Talvez — disse Erina, virando-se por um instante —, possamos ajudar você... com o Juiz. 

— O quê? — perguntou Lois, confusa. 

— Boa sorte! 

E assim, o grupo deixou a caverna. 

 

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