Volume 1 – Arco 4

Capítulo 28: Na Sombra da Montanha.

Não fazia muito tempo desde que o grupo se separou. Àquela altura, a ramificação de Kenshiro já estava a par sobre os preços de Altunet. 

Os três caminharam com passos confiantes até a maior e mais destacada loja da encosta da montanha. As vitrines exibiam itens de luxo, joias, especiarias raras, tecidos finos e até armas polidas como se fossem relíquias.

A arquitetura era extravagante, feita para humilhar quem não tivesse o suficiente para gastar. Dentro, o ar cheirava a incenso forte e a ambição.

Pegaram tudo o que acreditavam ser importante, desde alimentos secos até cordas novas, lâminas e pergaminhos de uso geral, acreditando que estavam garantindo os suprimentos necessários para a viagem. 

Mas foi só na hora de pagar que a ficha caiu.

O dono da loja, um homem rechonchudo de sorriso cínico, sequer olhou para eles quando anunciou os valores absurdos, com voz pastosa de quem adorava saborear cada sílaba de desprezo. 

— Tão pobres e ainda assim tão presunçosos — disse, enquanto seus guardas, homens grandes com olhos de pedra, se aproximavam para intimidá-los. 

Foram menosprezados, humilhados, enxotados como cães sarnentos. 

Saíram de mãos abanando e com o orgulho ferido. A raiva fervendo no peito. 

Zudao, com as rugas crispadas e o cenho franzido, chutou uma pedra no caminho.

— Como é possível? — reclamava, cuspindo as palavras como se tivessem gosto amargo. — Nunca, em toda a minha vida, eu vi algo assim! 

Sebastian ergueu uma sobrancelha, ajeitando o sobretudo escuro que usava.

— Já viste o quê? — perguntou, desafiando o conhecimento do senhor, ansioso por entender onde o velho queria chegar. 

— Como Governador de uma Cidade-Livre — começou Zudao, a voz falhando em meio à indignação —, preciso constantemente negociar com outras cidades e vilarejos para cobrir o que nos falta diariamente. 

Sebastian riu com escárnio.

— Pensava que houvesse uma função para isso… 

Zudao bufou, a testa cheia de veias saltando.  

— Talvez exista de fato, mas Shenxi é uma cidade pobre. Meu povo não é educado o suficiente para exercer funções tão complexas. Meus funcionários, se é que posso chamá-los assim, são escolhidos a dedo; e ainda assim não são os ideais para o serviço. 

Kenshiro, até então em silêncio, desviou o olhar para o horizonte, seus olhos semicerrados como lâminas.  

— Então… — disse com tom neutro, abandonando o conforto da quietude —, o senhor que é perfeito e possui um povo fraco e inútil. Que dó de você… 

Zudao o encarou como se fosse desafiado por uma adaga invisível.  

— Ora seu… — suas palavras saíam aos trancos e barrancos. — Você pode ter escolhido as pessoas que entram em seu grupo, mas eu não escolhi aquelas que nascem em meu reino. Nem sequer escolhi as condições com as quais tive que governar! Eu só posso trabalhar com as ferramentas que tenho… 

O silêncio que caiu depois parecia denso, pesado como uma muralha.

Kenshiro não respondeu, apenas desviou o olhar e seguiu em frente. O som de suas botas batendo no chão ecoava como pequenas marteladas na cabeça de Zudao. 

(...) 

Conforme caminhavam pelas ruas sujas e cheias de feirantes mal-humorados, tornou-se verdade o que mais temiam: todas as lojas exibiam preços abusivos. Até a mais podre das maçãs custava como uma joia. 

A frustração se acumulava como nuvens de tempestade dentro de cada um deles. Sebastian mantinha o semblante frio, mas a tensão em seus ombros denunciava sua insatisfação. Zudao andava cabisbaixo, mexendo nas mangas como se tentasse encontrar moedas que não existiam. Kenshiro, porém, mantinha o olhar atento, varrendo os arredores como um caçador paciente. 

Foi então que algo chamou sua atenção.  

Um som? Um cheiro? Um movimento suspeito?  

Ele parou subitamente, os olhos faiscando, e começou a vasculhar as sombras com o olhar. 

— Senhor Kenshiro, o que foi? — perguntou Sebastian, preocupado. 

Kenshiro não respondeu. Seus músculos se retesaram como cordas prestes a se romper. Num movimento rápido, adentrou em um beco escuro e começou a correr, deixando os outros para trás. 

— Ei, espere! — Sebastian quase tropeçou tentando acompanhá-lo. 

Zudao bufou, rangendo os dentes, mas tentou seguir. Suas pernas frágeis reclamavam a cada passo, e ele se arrastava como um velho corvo ferido. 

“O que pode tê-lo chamado atenção?”, perguntou-se Sebastian, o medo apertando seu peito como uma mão gelada. A mente do vampiro era rápida, imaginando armadilhas, inimigos ocultos, ou talvez algo muito pior. 

Ao virar uma esquina, finalmente o encontrou. 

Kenshiro estava parado, os olhos arregalados de horror, o punho cerrado até os nós dos dedos ficarem brancos. À sua frente, uma dupla de guardas, homens com rostos tão duros quanto pedra, despachava os corpos de duas crianças. 

Os corpos eram magricelos, frágeis como galhos secos. Alguns ossos estavam quebrados, as marcas de hematomas contavam a história de uma dor prolongada e injusta. Surradas até a morte. 

O cheiro acre de sangue fresco misturava-se ao odor de urina e podridão.

Sebastian parou, engolindo em seco, a mente fervendo em indignação. 

— O que está olhando, civil? — perguntou um dos guardas, irritado, cuspindo as palavras como veneno. 

Se não fosse pelo símbolo da cidade em suas armaduras — um sol dourado brilhante com um risco negro no meio —, poderiam ser confundidos com bandidos. Suas ações, suas posturas, até as roupas amarrotadas e sujas, tudo gritava desprezo pela vida. 

As roupas eram caras, de corte fino, mas malcuidadas, como se aqueles homens desdenhassem até da própria farda. 

Cada soldado, Kenshiro sabia, era obrigado a cuidar do próprio equipamento. Trocas só eram autorizadas em casos de defeito grave ou destruição por uso extremo. 

Kenshiro respirou fundo, o ódio queimando por dentro como uma chama. 

“Mercenários”, pensou. “A cidade não tem uma guarnição própria. São todos lacaios comprados.” 

— Responda, cão! 

O segundo guarda levou a mão para o cabo da espada com movimentos lentos, ensaiados, como se quisesse saborear cada segundo de intimidação. 

Kenshiro, com o rosto sombrio, observava tudo com uma serenidade que parecia conter uma tempestade. Seu punho direito apertou o cabo de sua espada. Sabia muito bem que aquelas crianças haviam sido assassinadas por aqueles dois. Podia sentir o cheiro da covardia e do sangue impregnado no ar. Não havia lei, justiça ou misericórdia que o impedisse de intervir. 

“Erina vai entender,” pensou, o coração pulsando como tambores de guerra. “Só vou exterminar alguns vermes…” 

Deu um passo à frente, a lâmina quase saindo da bainha. 

— Rubens! — disse uma voz repentina atrás dele. 

Kenshiro travou, virando-se ligeiramente. Sebastian apareceu, o braço em volta de seu ombro como se fosse um velho amigo. O tom leve, quase teatral, contrastava com a repugnância dos dois cadáveres. 

— Aí está você! Estamos todos esperando você lá no bar. O que está fazendo aqui ainda? — Sebastian sorria, mas os olhos estavam duros como gelo. 

— O que vo… 

— Vamos! — cortou Sebastian, arrastando-o com força disfarçada. — Deixe de frescura! Vou te apresentar à Mary, você vai amá-la! 

Kenshiro olhou para trás por um segundo, seus olhos encontrando os dos guardas. O deboche nos rostos deles era tão ácido que poderia derreter aço. O som seco dos corpos sendo arrastados ecoou como uma facada em seus ouvidos. 

A respiração de Kenshiro ficou pesada, mas ele não resistiu ao puxão de Sebastian. Precisava confiar naquele homem mais do que em si mesmo.

Quando estavam longe o suficiente para não serem ouvidos, Sebastian largou o braço dele como se fosse um fardo. 

— O que você pensa que estava fazendo?! — explodiu, a raiva misturada com medo. 

Kenshiro virou o rosto, evitando o olhar. O silêncio dele era quase um grito. 

Sebastian suspirou, os ombros afundando.  

— Eu não duvido das suas habilidades com as lâminas — disse, controlando a voz. — Nem do seu senso de justiça. Mas… acredito que você não é a pessoa adequada para liderar. 

Kenshiro não reagiu, apenas fitou o vento. 

— Erina é quem está liderando — murmurou, a voz tão fria quanto sua expressão. 

— Você é Vice-líder, o segundo no comando. — Sebastian gesticulava com as mãos, como se precisasse desenhar para o outro entender. — Quando o grupo se separa, ou se Erina estiver incapacitada, você é quem dá as ordens. E você não está apto. 

Kenshiro suspirou, um suspiro pesado como o bater de uma porta de ferro. 

Mas havia algo estranho nele. Estava… calmo. Estranhamente calmo. 

— Eu sou impulsivo, sim — admitiu. — Mas não está vendo o todo. 

Sebastian cerrilhou os olhos. — O que quer dizer? 

Kenshiro encarou seu Confidente, a expressão finalmente revelando algo que Sebastian não esperava: serenidade. 

— Consegue deduzir o motivo para termos nos separado deste jeito? 

Sebastian sentiu uma pontada de compreensão. Observou Kenshiro com mais cuidado, lendo nos traços dele uma convicção diferente.  

“Um teste?” 

A dupla, em movimentos simples, buscava testar seus subordinados. Suas ações, convicções e índoles eram análisadas constantemente.

Se uma situação crítica não ocorre naturalmente, eles forçariam uma.

Erina cuidava dos dois membros mais sensíveis, pois suas emoções precisavam ser lapidadas para que atingissem o potencial desejado. Do contrário, seriam apenas pesos mortos para a jornada.

Kenshiro acompanhava duas pessoas de caráter forte. Como não havia nada a ser moldado, era necessário estudá-las para descobrir se eram confiáveis e úteis. Podiam se tornar um problema caso desejassem algum mal ao grupo. 

— Quer mesmo dedicar sua vida a nós, "Confidente"? — perguntou Kenshiro, sério, como se quisesse ler a alma de Sebastian. 

O vampiro apertou os lábios, sentindo o peso da responsabilidade.  

— Essa jornada não é tão simples quanto parece, não é? — murmurou.  

Kenshiro confirmou com um leve movimento de cabeça. 

— O que está escondendo? — insistiu Sebastian, a voz quase um sussurro. 

Kenshiro suspirou novamente. Sabia que seus impulsos podiam colocá-los em risco, e que Sebastian podia ser o único capaz de contê-lo quando Erina não estivesse presente. Precisava de sua vigilância.

Decidiu contar, ou pelo menos começar a contar. 

— Nós… 

Arfarf… — Zudao apareceu, interrompendo a conversa com sua respiração pesada. O rosto vermelho como brasa. — O que aconteceu aqui? — perguntou, olhando de um para o outro. 

Kenshiro fechou a cara como uma muralha.  

— Nada. Vamos embora. 

Sebastian segurou a raiva que fervia em seu estômago. Seguiu-o em silêncio, com Zudao arrastando-se atrás, ofegante. 

Embora não tivesse qualquer interesse em abandonar o grupo, ao contrário, tinha decidido dedicar-se de corpo e consciência, Sebastian agora sabia que havia motivos sérios para qualquer um querer fugir. 

Tentou imaginar várias hipóteses sobre o que poderia ser tão perigoso, mas nenhuma delas fazia sentido.  

Seria uma profecia? Uma conspiração? Uma maldição?  

Teria de esperar o momento certo para que Kenshiro, ou Erina, o informarem. 

Até lá, precisaria manter-se paciente. 

(...) 

Desistindo de procurar qualquer loja com um preço minimamente acessível, o trio estava pronto para retornar ao Kaji. Mas antes mesmo de saírem, avistaram um grande alvoroço vindo de dentro de uma fenda escura na lateral da montanha. 

Um bar, incrustado no rochedo, parecia quase cuspir fumaça e vozes ao vento. O som abafado de aplausos, gargalhadas e o cheiro forte de álcool e suor formavam um convite tão repulsivo quanto irresistível. 

— Nunca vi nobres e ricos se comportarem de maneira tão… selvagem — comentou Sebastian, franzindo o nariz diante da algazarra. 

— Vamos dar uma olhada — disse Kenshiro, com uma fagulha de curiosidade que raramente deixava escapar. 

Zudao resmungou, massageando as pernas: — Minhas pernas estão me matando… — Sentia a idade pesar como correntes de ferro. 

Precisaram empurrar e abrir caminho em meio às túnicas de seda, chapéus caros e perfumes enjoativos. Cotoveladas e empurrões vieram de todas as direções. A cada passo, Sebastian imaginava como aqueles nobres jamais aceitariam ser tratados daquele jeito em seus salões. 

No centro do salão esculpido na rocha, uma grade grossa protegia, ou expunha, um buraco no chão. Ainda que fechada, tinha frestas largas o bastante para que alguém distraído ou azarado pudesse cair e despencar até o fundo. A profundidade parecia engolir o facho de luz que ousava atravessá-la. 

O dono do bar, um homem de sorriso untuoso e roupas caras demais para a função, ergueu uma corneta dourada.

A voz dele, reforçada por magia, soou como um trovão ecoando na caverna:  — MUITO BEM, MUITO BEM! Esta é a grande final do torneio! Façam suas apostas, senhores! 

A plateia delirou, moedas e notas passando de mão em mão como se fossem brasas. 

No fundo da cova, iluminada por tochas, duas figuras se encaravam em lados opostos. 

— De um lado — rugiu o apresentador —, nosso campeão invicto! O homem a quem esse torneio é dedicado! O grande, o único… MÁXIMUS! 

Máximus não parecia um homem, era uma muralha viva. Tinha quase três metros de altura, músculos tão inchados que pareciam prestes a rasgar a pele. Os tendões saltavam como cordas esticadas, o pescoço mais largo que a cintura de um homem comum. Cada respiração fazia o peito dele subir e descer como o fole de uma forja. 

— Aquilo é um ser humano? — murmurou Zudao, o olhar chocado. 

— Humano, mas… deformado — respondeu Sebastian, analisando. — Deve ter consumido poções mágicas até se tornar dependente. 

Sebastian sentiu um calafrio. Sabia o destino de quem abusava de poções assim: o corpo cobrava o preço, e quando o vício não matava, a alma se desfazia aos poucos. 

— E do outro lado — disse o apresentador, aumentando o suspense —, o desafiante! O monstro que aterrorizou nosso povo no passado, o assassino de inocentes, absolvido pelo nosso amado Juiz! O desprezível… FERA VERDE! 

O Fera Verde surgia como uma sombra de pesadelo. Tinha quase dois metros, tentava se esconder através de uma pequena manta, mas revelava partes de seu corpo repleto de cicatrizes que lembravam histórias antigas.

E de fato, sua pele era verde.  

Apesar de parecer menor ao lado de Máximus, seus músculos eram bem definidos.

Sua postura baixa e tensa como a de um caçador pronto para dar o bote.

Kenshiro apertou os olhos, intrigado. O silêncio dele chamou a atenção de Sebastian. 

— No que está pensando? — perguntou o vampiro, aproximando-se. 

— Sei quem é o favorito — disse Kenshiro, a voz fria e calculista. — Podemos ganhar uma bolada e comprar alguns suprimentos… — O olhar dele pousou no apresentador. — Eu quero fazer uma aposta! 

O homem da corneta riu, os dentes amarelados reluzindo sob a tocha.

— Mas é claro, caro visitante! A aposta inicial é de quinhentos mil! Quanto vai apostar? 

Kenshiro hesitou. Não tinha aquele valor, nem de longe. Seu rosto se fechou como uma porta. 

— Vejo que é outro pobretão — debochou o apresentador, o tom carregado de desprezo. — Fora daqui, miseráveis! 

Antes que pudessem argumentar, foram literalmente chutados para fora do bar, caindo na lama úmida que cobria a rua da montanha. 

Zudao ergueu-se devagar, a roupa suja e a dignidade arranhada.  

— Já estou farto de tanta humilhação! — disse, batendo a lama das mangas com raiva. — Façam o que quiserem! Eu voltarei para a carruagem. 

Sebastian e Kenshiro assistiram o idoso se afastar com passadas trôpegas. A raiva dele era tão evidente quanto sua fragilidade. 

— Devemos ir atrás dele? — perguntou Sebastian, com a voz tensa. 

Kenshiro ergueu-se do chão, limpando a sujeira com a palma da mão.  

— Não, deixe-o ir — disse, o tom duro. — Espero que ele se perca. 

Sebastian franziu o cenho, surpreso com o tom ácido.  

— Tanto você quanto Erina parecem ter desavenças com Zudao. Posso saber o motivo? 

Kenshiro ergueu o olhar, o vento frio da montanha balançando suas roupas.  

— Sem ele por perto… — disse, com a voz baixa — acho que posso conter… certas coisas. 

Curioso, Sebastian virou levemente o rosto, mas não pressionou. Kenshiro era como uma fortaleza: difícil de invadir, impossível de ler completamente. 

— Agora vamos — disse o espadachim, a decisão firme nos olhos. — Imagino que essas cavernas sejam interligadas. Podemos ver a luta mais de perto. 

 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora