Volume 1 – Arco 4

Capítulo 29: O Fera Verde.

Havia uma razão evidente para as construções antigas estarem tomadas por um negro quase opaco. Não era fruto do descuido ou de alguma negligência comum, muito menos fruto do tempo. Afinal, a imponente muralha dourada da cidade permanecia impecável, brilhando sob o sol com a mesma intensidade que fora erguida. 

O motivo era uma mensagem clara, silenciosa, mas contundente: destaque. 

Os prédios escurecidos, com suas pedras fumegantes, funcionavam como uma moldura que fazia o ouro e as joias reluzirem ainda mais. Era uma forma quase artística de expor riqueza e poder, uma vitrine para os que ali viviam; aqueles que conseguiam acumular, roubar ou proteger o que poucos sequer poderiam imaginar possuir. 

As ruas de pedra negra, lisas e frias, formavam o palco perfeito para os transeuntes adornados em correntes de ouro reluzente, anéis de diamante, tecidos feitos com fios de luz, e até mesmo dentes incrustados com pequenas gemas preciosas. Cada detalhe amplificava a arrogância e o orgulho da elite que caminhava por ali. 

Mas essa ostentação não era para todos. Aqueles que tinham direito a desfilar entre o ouro jamais permitiriam a presença dos menos favorecidos. 

Como as duas crianças. 

*** 

— Então Xin é escrava de Zudao? — Sebastian perguntou, voz baixa, procurando não atrair atenção. 

— Sim — confirmou Kenshiro, a mandíbula tensa, com os olhos vagando entre os becos. — Ele diz que não foi intencional, mas Erina e eu desconfiamos que algo mais sombrio esteja por trás disso. 

Sebastian ponderou, franzindo a testa enquanto vasculhava memórias e livros antigos para encontrar algo que explicasse aquilo. 

— Nunca ouvi falar de um pacto de serventia que tenha sido feito sem a vontade do mestre. Para alguém se tornar escravo, a pessoa precisa, de alguma forma, se tornar incapaz, impotente. Alguém que acredita que não pode mais mudar o próprio destino, e acabe entrega sua vida ao mestre involuntariamente. Se Xin é escrava desde criança, talvez esse sentimento de desamparo tenha se enraizado nela. 

Kenshiro permaneceu em silêncio, sentindo um peso crescer no peito. Não sabia se era alívio ou um pesar profundo. 

— Mas... por que se torturam com isso? Se Zudao é o mestre, ele poderia simplesmente libertá-la. 

— É aí que a coisa fica complicada — Kenshiro falou, como se colocasse uma pedra sobre um túmulo invisível. — Segundo ele, sempre que Xin é libertada, tenta tirar a própria vida. 

— Erina poderia curá-la, não é? — Sebastian sugeriu, com um fio de esperança. 

— A magia de Erina é poderosa — respondeu Kenshiro com um tom quase reverente. — Ela pode até curar uma pessoa decapitada, se sua alma não tiver deixado o corpo. Mas se alguém deseja morrer... não importa quantas vezes ela cure, essa pessoa vai, eventualmente conseguir o que quer. 

O silêncio caiu entre eles como um manto frio. 

— Se me permite dizer... — Sebastian quebrou a quietude, hesitante. — Xin não me parece alguém que realmente queira desistir da vida. 

Kenshiro sorriu amargamente, seus olhos carregados de ceticismo e dor contida. 

— Essas pessoas são mestres em esconder suas verdadeiras intenções. Não saberíamos a verdade se elas não permitissem que soubéssemos. E existe mais um problema... Se Zudao estiver dizendo a verdade, a vida de Xin já está condenada. E se ele estiver mentindo... 

Sua voz ficou mais baixa, quase um sussurro. 

— Tê-lo vivo entre nós é um risco que ninguém deveria correr. Ainda que eu o eliminasse, o pacto de serventia, provavelmente levaria Xin junto. 

Sebastian ficou em silêncio, impressionado com os problemas que o casal tentava ocultar dele e de Takashi.

— Não imaginava que você se importasse tanto com ela. 

— Não me importo — respondeu com um olhar duro, quase desdenhoso. — Faço isso por Erina. Por mim, ambos já estariam em uma vala, enterrados desde o primeiro dia. 

Sebastian sentiu um choque diante daquela frieza calculada. Kenshiro não era apenas um espadachim impulsivo, mas um homem cujos meios eram implacáveis quando seu objetivo era claro. Alguém que não hesitaria em fazer o necessário, por mais sombrio que fosse, para garantir o sucesso de sua missão. 

Desde então, nenhuma outra palavra foi dita sobre o assunto. 

(...) 

Chegando ao local onde antes haviam visto os guardas, nenhum sinal deles.  

O silêncio pairava denso, quase sufocante.  

Sem hesitar, adentraram a caverna, o ar frio e úmido envolvendo-os como um manto pesado. 

Não demorou para que encontrassem os corpos das duas crianças, ainda ali, imóveis e pálidos, uma visão impossível de ignorar.  

Kenshiro desviou o olhar, sabendo que encará-los poderia desestabilizar suas emoções, uma fraqueza que não podia se permitir. Sebastian, por sua vez, permaneceu quieto, reprimindo a tristeza que lhe apertava o peito. 

Logo, as visões que os esperavam eram as mesmas que Erina e seu grupo haviam experimentado: famílias desnutridas e pobres convivendo em espaços apertados e sujos, onde cadáveres misturavam-se a ratos famintos e ao cheiro forte de morte. 

Para não se perderem naquela escuridão emocional, Sebastian quebrou o silêncio com um assunto filosófico. 

— Então você odeia Zudao porque ele sacrificou uma parte de sua cidade para que a outra pudesse sobreviver. Mas, ao mesmo tempo, você também o mataria, e, com ele, Xin, para proteger seu grupo. Não acha que, no fundo, seus pensamentos são parecidos? 

Kenshiro respondeu com firmeza, afastando a comparação. 

— Parecidos, não iguais. Eu mataria um criminoso, por exemplo, para impedir que ele cometesse futuros crimes. Mas não sacrificaria vidas inocentes só por incompetência ou fraqueza. 

— Não é isso que quero dizer. E se o criminoso pudesse mudar? Se ele fosse capaz de redenção? 

— Não falo daqueles que roubam para sobreviver. Falo dos assassinos, estupradores... daqueles que cometeram crimes imperdoáveis. 

— Você acredita que não existe redenção? 

— Acredito que exista uma linha. Uma linha entre o certo e o errado. Quanto mais a atravessamos, menos provável é o retorno. Por que pergunta isso, Sebastian? Já fez algo parecido? 

Sentiu o olhar firme de Kenshiro, pesado e avaliador. Não poderia mentir. 

— Claro que não. Mas a maioria dos seres jamais daria o benefício da dúvida a alguém como eu. Escrevem tantas histórias, a maioria exagerada, sobre os vampiros... é um milagre você não ter me matado. 

Kenshiro sorriu com uma ironia amarga. 

— Agradeça a Erina. Eu realmente teria o feito. 

Sebastian parou de caminhar, profundamente incomodado e ferido pela franqueza. 

Kenshiro suspirou, ciente da necessidade de esclarecer. 

— Eu não sou uma boa pessoa, Sebastian. Não sou tão bom quanto Erina, e talvez nem tão bom quanto você. Mas acredito que ações valem mais do que palavras. Sim, eu teria matado Zudao, Xin e você, se a liderança fosse minha. Mas não o fiz. 

Respeitei as ordens de minha esposa, mesmo discordando. Aceitei você como meu confidente, um membro de confiança, alguém para quem pudesse revelar minha verdadeira natureza; e estou fazendo isso agora. 

Ele se aproximou e pousou a mão no ombro de Sebastian, gesto simples, mas carregado de significado, quase como Erina faria. 

— Não peço que confie em mim, mas confie em sua Capitã. Ela consegue extrair o melhor das pessoas; é o que ela faz comigo todos os dias. Então acredite no melhor dos seus companheiros, assim como ela acredita em vocês. 

Kenshiro soltou o ombro de Sebastian e retomou a caminhada ao lado do vampiro. 

Sebastian pôde sentir, em primeira mão, o contraste gritante entre os dois cônjuges: ela, a luz e esperança; ele, o pragmatismo sombrio e incisivo.  

Um pensamento insistente o atingiu: “Quem seria Kenshiro sem Erina?” 

(...) 

Permaneceram em silêncio por mais alguns minutos. 

Desta vez, quem quebrou o silêncio foi Kenshiro, movido pela imagem inquietante da jovem grávida entre os cadáveres que vira. 

— Sei que talvez não seja o melhor momento para perguntar isso, dadas as circunstâncias... — começou ele, hesitante. 

— Pode falar — respondeu Sebastian, atento. 

— Depois de viver por milênios, você acha que a vida é boa ou ruim? 

Sebastian deu um sorriso cansado e respondeu com a resposta que considerava universal: — Depende. 

Kenshiro o fitou com um olhar impaciente, esperando mais que uma resposta vaga. 

— Essa resposta depende de quem a dá — explicou, gesticulando como um professor. — Tem aqueles que cresceram na riqueza, que nunca conheceram a fome ou a dor. Outros jamais saborearam carne, ou sequer souberam o que é sentir-se forte e saudável. E há os que mal viveram o suficiente para experimentar qualquer coisa. 

Sebastian notou o espadachim apertar os lábios, claramente insatisfeito. 

— Não é bem isso que eu queria ouvir... 

O vampiro analisou os olhos de Kenshiro e viu refletidas dúvidas profundas, um conflito interno difícil de esconder. 

— Entendo... quer saber o que a vida ainda lhe reserva, não é? — disse Sebastian. 

Kenshiro não respondeu com palavras, mas não negou. 

— Não se preocupe. Quando essa jornada terminar, você e Erina terão seus anos de paz. Construirão uma família e morrerão cercados por aqueles que amam. 

Apesar da gentileza nas palavras, o olhar de Kenshiro carregava uma tristeza que instigava o vampiro a questionar se aquilo era realmente verdade. 

Antes que pudesse dizer algo, um sino soou ao longe, anunciando o começo da luta. 

— Que se inicie o combate! — anunciou o apresentador, enquanto a plateia explodia em gritos e aplausos. 

— Vamos, estamos perto! — disse Kenshiro, já correndo à frente. 

Sebastian teve que conter a ansiedade e acompanhar o espadachim, sabendo que suas respostas teriam de esperar. 

*** 

Com as apostas encerradas, a luta finalmente começou. 

Maximus, confiante e cheio de fúria, avançou como um touro. 

Do outro lado, o Fera Verde manteve-se imóvel, aguardando o primeiro movimento de seu adversário. Maximus levantou as mãos, preparando um golpe devastador, como uma marreta descendo sobre ele. 

Mas o Fera Verde estava pronta: segurou firmemente os dois braços do gigante antes que o golpe pudesse atingi-lo. 

O chão estremeceu com a força do impacto, rachando sob seus pés.

Antes que pudesse contra-atacar, Maximus surpreendeu com um chute rápido, atingindo a lateral do corpo do desafiante. 

As poções mágicas haviam aumentado sua velocidade.  

O impacto lançou a Fera Verde contra a parede, que desmoronou em uma nuvem de poeira. 

— E mais uma vez, o invicto Maximus! — exclamou o apresentador. 

Kenshiro e Sebastian, já próximos, assistiam à luta do mesmo nível, mantendo distância para não serem notados. 

— Parece que a luta já acabou — comentou Sebastian, desconfiado. 

— Calma, Sebastian. Ele ainda tem mais para mostrar — respondeu Kenshiro, firme. 

Maximus ergueu os braços, exibindo todos os músculos inchados e intactos, sem um único ferimento visível. 

— Espera! — uma voz rouca e grossa cortou a poeira suspensa no ar. 

Era o Fera Verde. 

Seu corpo parecia inclinado, resultado do impacto que recebera, mas ainda assim ele permanecia firme, de pé. 

— A luta final é decidida pela morte de um dos oponentes. Eu ainda estou respirando! — proclamou, removendo seu capuz e máscara. 

Sua mandíbula inferior, projetada para frente, destacava caninos afiados. Os olhos brilhavam em um contraste intenso: íris verde e esclera amarela. Enquanto a pele exibia seu tom característico, um verde profundo. 

Tratava-se de um orc. 

— Vai, Maximus! 

— Acabe com ele! 

— Mate-o! 

Entre a multidão, havia uma única pessoa torcendo pelo orc. Não gritava, mas o observava com admiração. 

— Mostre do que é capaz — disse Kenshiro, firme. 

Maximus, confiante, se preparou para uma nova investida. Foi surpreendido ao ver o Fera Verde avançar contra ele, decidido entrar na disputa de força sem hesitar. 

THUD! Braço contra braço. 
THUD, THUD! Perna contra perna. 
THUD! Cabeça contra cabeça! 

Eles se empurravam, tentando forçar o outro a bater as costas na parede. 

O orc era mais forte por natureza, mas Maximus usava sua altura e peso para obter vantagem, empurrando com um ângulo calculado. 

As pernas do orc começaram a tremer; o peso de seu oponente parecia querer derrubá-lo. 

Não foi uma boa ideia tentar esse movimento. 

Tentando se desvencilhar, Maximus entrelaçou os braços, prendendo-o. 

— O que foi, Gurok? Está com medo? 

Com passos firmes, Maximus empurrava o orc até a parede mais próxima; uma que ainda permanecia intacta.

Enquanto isso, os ricos dobravam suas apostas. Retiravam seus pertences e tudo que possuiam em seus bolsos. Deixaram de apostas as roupas por principios, mas consideraram a possibilidade.

Maximus prensou o orc contra a parede, impossibilitando-o de se mover.

Sem conseguir alcançar o adversário, o Fera Verde precisava ferir o braço que o mantinha preso para ser liberado. Mas os músculos de seu adversário pareciam uma barreira impenetrável, defendendo-o de qualquer ataque. 

— Toma essa! 

Maximus desferiu um soco que fez a cabeça do orc afundar contra a parede. 

Mal teve tempo de reagir antes de outro golpe vir, e outro, e mais um. 

Enquanto a multidão vibrava com a luta, as mãos de Maximus manchavam-se de sangue, enquanto o rosto do orc inchava e sangrava. 

Desnorteado, ele foi solto. Caiu de joelhos, ofegante. 

Maximus, vitorioso, olhou para o grande buraco acima dele, imaginando como seu público queria que a luta terminasse.

Era óbvio: com seu golpe mais conhecido. 

Vendo que Gurok ainda não se levantava, Maximus esticou a perna esquerda à frente do corpo, mantendo a direita flexionada atrás. 

— Engula essa, Gurok! 

Deu uma joelhada certeira na boca do orc. 

KRRRAAACK! Outra parede de pedra desabou, levantando mais poeira. 

O público gritou em uníssono, eufórico. 

Sebastian, sentiu-se desapontado, triste por presenciar mais uma morte. 

Kenshiro, ao contrário, sorria. 

AAAAAAHHHHHH! — os gritos de dor de Maximus silenciaram a plateia. 

A multidão, confusa, tentava enxergar através da poeira. 

Foram surpreendidos ao ver Maximus rastejando para fora do pó, com um buraco onde deveria estar seu joelho. 

— Eu desisto! Por favor... alguém me tire daqui! 

Gurok emergiu da poeira, segurando nas mãos a patela de seu adversário, marcada por seus caninos. Sua postura agora estava reta, como antes da luta. 

— Você esqueceu, Maximus? A luta final é decidida com a morte de um dos oponentes — caminhou até seu oponente, esmagando a outra perna com um passo firme, prosseguindo até o peito do gigante, como um caçador abatendo sua presa. — E eu não vou morrer hoje... 

— Piedade! — pedia o público. 

Maximus gemia, chorava.

As poções que tomara amplificavam seus sentidos; sua dor. 

Gurok ergueu a patela acima da cabeça. 

— Engula essa! 

Golpeou uma vez. 

Sangue espirrou no chão, dentes e fragmentos de osso voaram pelo ar. 

O silêncio tomou conta. 

— A... a... — O apresentador, atônito, lutava para finalizar a luta. — O Fera Verde... venceu... 

 

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