Volume 1 – Arco 4

Capítulo 31: A Votare.

Estavam todos reunidos ao lado de Kaji.

Informações e opiniões trocadas, nenhuma decisão fora tomada ainda. 

O clima era tenso, e todos podiam sentir isso. 

— Devíamos partir imediatamente! — disse Zudao, a voz firme, mas com um leve tremor de impaciência. — Não conseguiremos nada desta cidade, talvez nem um lugar adequado para passar a noite. 

— Isso não é verdade — retrucou Takashi. — Podíamos passar a noite em uma das cavernas. 

Zudao bufou, os punhos cerrados, como se contivesse a frustração. 

— Dormir na rua seria mais higiênico! 

— Chega, Zudao — exigiu Erina, o tom baixo, carregado de autoridade. Seu olhar cortou como uma lâmina, e o silêncio pairou por um instante. 

Xin, voltou à sua postura neutra, estava próxima de seu mestre. Fez um gesto contido, perguntando se esperar o fim do evento político poderia ser uma opção. 

— Claro que é uma opção — respondeu Kaji, sua voz reverberando com o estalar das brasas de seu corpo. — Mas o problema é o tempo! Perderíamos duas semanas, ou mais, esperando algo que nem sabemos como irá terminar. 

Xin inclinou a cabeça, intrigada, o olhar neutro. Perguntou, inocentemente, o motivo do tempo ser tão crucial. 

Sebastian, até então calado, deu um passo a frente. Precisava afastar aquela dúvida.

— Acredito eu — explicou, ponderando as palavras como se temesse a lâmina invisível do casal —, quanto mais tempo estivermos aqui, mais difícil será para partir. 

Uma meia verdade, aceitável para os desinformados. Mas ele sabia que havia muito mais por trás daquela pressa. 

Kenshiro inspirou fundo, os dedos enrijecendo sobre o cabo da espada. Seus olhos brilharam com um fogo contido. 

— Podíamos forçar nossa saída para fora — sugeriu, a voz fria como gelo. 

Erina levou a mão ao queixo, os olhos perdidos em pensamentos, como quem buscava uma saída em um labirinto de espinhos. 

— Esse Juiz seria trabalhoso, mas daríamos conta — ponderou. — Tenho minhas ressalvas quanto às consequências. Se Altunet fizer um único pronunciamento, seremos caçados até o fim da nossa jornada. Mercenários e caçadores de recompensas...  seriam desgastantes ao longo prazo.

Kaji balançou a cabeça, a crina de fogo tremeluzindo como labaredas agitadas. 

— Isso se o próprio Império não decidir se envolver! — acrescentou Kaji. — Se quiserem fortalecer os laços com Altunet, nos caçarão com seus generais e heróis. 

Sebastian ergueu os olhos para Kenshiro, e naquele olhar preocupado, havia mais do que uma simples pergunta. Era uma proposta: uma rota alternativa, a Passagem que ele mencionara antes.  

Kenshiro suspirou, resignado, e trocou um olhar rápido com Erina, comunicando-se em silêncio. Ele não gostava daquela ideia, mas sabia que poderia ser uma opção viável. 

O grupo não seguia processos democráticos. Um líder precisava assumir as consequências de suas decisões, mesmo que isso significasse carregar o peso de toda a culpa. 

Erina sabia disso. Dentre suas opções, nenhuma parecia realmente boa. Mas ela aprendera que liderar era escolher o menor dos males — e aguentar o fardo. 

Ela inspirou fundo, sentindo a responsabilidade apertar-lhe o peito como um manto de ferro. 

— Vamos partir. Imediatamente — ordenou. 

Ninguém a questionou. Não precisavam. Cada um se preparou, em silêncio, para o que viesse. 

Então, como se o próprio destino tivesse decidido lhes dar mais uma provação, uma comoção tomou a cidade. Pessoas corriam e se empurravam em direção ao centro, olhos arregalados e sussurros ansiosos. 

Embora estivessem prestes a partir, Erina sentiu que qualquer coisa poderia ser útil. Ela ergueu o queixo, determinada. 

— Vamos. Sigam a multidão. 

Deixaram Kaji para trás e desapareceram na massa de gente, prontos para colher qualquer informação que o caos lhes oferecesse. 

(...) 

Todos encaravam uma placa simples, deixada sobre uma plataforma utilizada para anúncios oficiais. 

O vento balançava o tecido puído que a cobria, enquanto a população se espremia, curiosa. 

Era tradição que um homem lesse as notícias e comunicados em voz alta para a multidão, tradição essa que perdurou quando grande parte do povo ainda não sabia ler ou escrever. Mas com o surgimento do Império, a alfabetização se espalhara com uma força imparável, ainda que o Império não tivesse qualquer autoridade direta sobre as Cidades-Livres. 

O aviso, em letras grandes e elegantes, dizia: “Devido ao trágico falecimento de Maximus, antigo e fiel amigo de nosso amado Juiz, o evento Votare foi adiado para o próximo ano. Pedimos solidariedade e compaixão de todos.” 

Um silêncio incômodo pairou. 

— Tadinho... — sussurrou uma mulher, o rosto sombrio. 

— Um homem tão amável e gentil. Morreu jovem demais... — murmurou outro, coçando o queixo, a testa franzida. 

— Ouvi dizer que ele foi encurralado pelo Fera Verde, morto covardemente! — completou um terceiro, o tom conspiratório misturado com medo. 

Apesar da tristeza genuína de algumas pessoas — para Lois e Gurok aquilo seria mais do que uma tragédia —, Erina já ensaiava mentalmente as possibilidades. Um encontro discreto com o Governador, alguma concessão, um acordo improvisado, mas seus pensamentos foram brutalmente interrompidos. 

Um movimento na multidão.  

As pessoas se empurravam, tentando se afastar. Olhares de terror e reverência se misturavam quando Lois avançava, determinada, cortando o mar de corpos como uma flecha. 

Ela subiu na pequena plataforma, o rosto endurecido. Seus olhos brilharam como lâminas sob a luz do entardecer. 

— Juiz, Lucan! Eu exijo uma audiência! — bradou, a voz firme, carregada de fúria contida. 

O ar pareceu se comprimir.

THRAAA-KOOM! Um trovão rasgou o céu.

Num lampejo de luz, Lucan surgiu, descendo dos céus com o raio.

O impacto foi tão forte que fez a madeira da plataforma estalar. Lois foi atirada para trás, e caiu no chão, sujando-se de poeira e vergonha. 

A multidão recuou, assustada. Alguns taparam os ouvidos, outros apenas observavam, fascinados. 

Lucan permaneceu sobre a plataforma, imponente. Seus olhos eram frios, como lâminas de vidro. 

— E qual seria a razão, Lois? — perguntou, com o tom teatral de quem saboreava cada palavra, o desprezo escorrendo por cada sílaba. 

Lois ergueu-se, o corpo trêmulo de raiva, os olhos faiscando. Pouco se importava com a sujeira em suas roupas ou o sangue que escorria de um pequeno corte em sua perna. 

— Pessoas morrem todos os dias, Lucan— disse, a voz carregada de dor e indignação. — Alguns piores que outros... Por que a morte de uma única pessoa poderia adiar a Votare?! 

O Juiz abriu os braços, como um ator prestes a encenar o clímax da peça. 

— Como bem sabe — disse ele, girando a mão num gesto dramático —, todos os candidatos devem estar emocionalmente estáveis para apresentar suas propostas ao público que escolherá o próximo Governador e Juiz. 

Ele sorriu. 

— Infelizmente, com a morte de um amigo tão próximo, não me sinto apto a participar da Votare este ano. Tentaremos novamente no ano que vem. É claro que você entende... também perdeu sua família, e amigos... 

A menção dos companheiros mortos por Lucan foi como uma adaga cravada no coração de Lois. Suas mãos cerraram-se em punhos, os nós dos dedos brancos. 

Sem hesitar, ela subiu novamente na plataforma, o olhar fixo, desafiador. 

— Sei o que está fazendo! — gritou. — É tudo um truque para não perder o seu posto! 

Lucan ergueu uma sobrancelha, fingindo surpresa. 

— Caso tenha alguma suspeita de corrupção, deve contatar o Governador. Ele certamente averiguará os fatos — disse, e então o sorriso se abriu como um corte cruel. 

— E é você quem julga o caso, afinal é o Juiz, autoridade máxima para quaisquer crimes — retrucou Lois, a voz embargada de ódio. — O resultado não poderia ser mais óbvio... 

Lucan inclinou levemente a cabeça, teatral até o fim. 

— Não se esqueça, Lois: todas as vezes, todas as Votares anteriores, o povo me escolheu. Escolheram minhas propostas, minhas leis. Minhas vontades... Eu sou nada mais, nada menos, do que Altunet quer. 

O peso das palavras caiu sobre Lois como uma muralha. Ela sentiu o peso de cada morador daquela cidade — o medo, a submissão, a resignação. Os rostos pálidos, as mãos trêmulas, os olhos baixos. 

Ela baixou a cabeça, incapaz de lutar contra aquela realidade. 

Mas Lucan não parou. 

— Ouvi dizer que um dos candidatos pagou a inscrição com dinheiro de rinhas clandestinas... — disse ele, teatral, cruzando os braços. — Conversei com o Governador. Estamos trabalhando numa lei para taxar essas atividades. 

Lois ergueu a cabeça, os olhos arregalados. Raiva, desespero, incredulidade. 

— Buscamos apenas candidatos honestos, é claro... 

SLAP! O tapa ressoou como um trovão seco.

A multidão estremeceu. O rosto de Lucan virou para o lado, o sangue misturando-se à poeira. 

As pessoas olhavam, desacreditadas, para o que viam. 

Erina não conseguiu conter um sorriso.  

Lucan também. 

— “Se uma autoridade é atacada...” 

Zzzrrt! Faíscas e energia começaram a dançar pelo palco e pela própria armadura de Lucan. 

— “...ela tem total direito de revidar...” 

LOIS! SAÍA JÁ DAÍ! — berrou Gurok, correndo ao fundo. Não precisou empurrar ninguém, todos fugiam dele como ratos apavorados. 

Lois percebeu tarde demais. Fora atraída para uma armadilha. Tudo o que pôde fazer foi encarar Lucan e ouvir sua sentença final. 

— “...da maneira que achar apropriada.” 

Uma lei conveniente, escrita para servir ao terror de Lucan e esmagar qualquer um que ousasse contestá-lo. 

Ele estendeu a palma da mão, tão próxima do rosto de Lois que ela podia sentir o calor da energia que se acumulava. Um brilho cegante emanava dali, forçando todos a desviar o olhar ou cobrir os olhos. 

KRA-KOOM! Um trovão anunciou o golpe. 

Quando o clarão cessou, todos voltaram a olhar para o palco. 

Apenas Lucan estava lá. 

De Lois não restara nada, nem sequer poeira para enterrar. 

NÃOOOOOO! — O grito de Gurok ecoou como uma lufada de fúria.  

Ele avançou, o punho erguido, pronto para esmagar Lucan com toda a força que possuía. 

Lucan, de braços cruzados, aguardava, ostentando sua pose costumeira.  

Um sorriso cínico no rosto. 

Antes que Gurok pudesse saltar, foi agarrado por trás por uma cavaleira de armadura negra. Embora fosse menor, ela o subjugou com uma técnica precisa, imobilizando-o contra o chão. 

Gurok se contorceu, tentando se arrastar para alcançar o Juiz. Não avançou sequer um centímetro. 

Ha, ha, ha! — Lucan gargalhou, teatralmente. 

Foi apenas a primeira de dezenas de milhares de gargalhadas que explodiram ao redor de Gurok. 

Humilhado, ele chorava de raiva e vergonha. 

— Vejo que você cresceu, Gurok — zombou Lucan. — Mas não o suficiente para vencer uma simples mulher! 

Erina, irritada, precisou de todo o seu autocontrole para não libertar o orc. 

— Lucan... eu... eu juro que vou... — Gurok ergueu o rosto, as lágrimas misturadas à raiva e à humilhação. — ...eu vou matar você! 

Hm. Ameaçando uma autoridade? — Lucan ergueu uma sobrancelha. — No máximo posso prendê-lo por desacato, mas entendo que está... abalado. Vou deixar passar desta vez. 

Nem sequer pôde morrer ao lado de sua amiga. 

Lucan abriu os braços em sua pose teatral, o sorriso satisfeito estampado no rosto. 

— A justiça foi feita! — proclamou, enquanto a multidão, enfeitiçada, explodia em aplausos. 

CLAP! Num estalo, ele subiu aos céus num raio que convocara ao bater uma palma. 

Com seu inimigo inalcançável, Gurok bateu a cabeça freneticamente contra o chão. 

Erina, preocupada, finalmente o soltou. Queria contar-lhe algo, acalmá-lo. 

Mas tão logo teve liberdade, o orc a agarrou e a jogou contra o chão. 

Erina caiu, o corpo estalando contra a pedra. 

Gurok, tomado por um ódio cego, começou a esmurrá-la com fúria. Cada golpe afundava a armadura. Ele não se importava com nada — queria ver sangue, queria esmagar tudo. 

A cada golpe, o chão cedia, criando uma cratera em volta deles. 

Somente quando Erina parou de se debater, mexia-se involuntariamente devido aos impactos dos golpes, Gurok cessou seus ataques. 

Por fim, ele se levantou, atordoado, sem saber o que fazer a seguir. 

AHHHHHHH! 

O grito de horror de uma jovem garotinha o fez parar. Ele a viu, tão pequena, tão frágil, e nela encontrou o próximo alvo de sua fúria. 

Mas antes que pudesse avançar, um soco certeiro atingiu a lateral de seu rosto. 

A cavaleira de armadura negra havia se levantado novamente, impecável. 

Os olhos de Gurok estavam estranhos, tão verdes quanto sua pele, sem pupilas visíveis. Um olhar vazio, bestial. 

Não importava quem fosse, ele a mataria. 

Mas ela não esperou. Correu, fugindo em disparada. 

Gurok rugiu e correu atrás dela. 

A perseguição começou. 

(...) 

A cavaleira corria em linha reta, sem tentar despistá-lo. Sempre em direção à grande torre escura; impossível de perdê-la de vista. 

Gurok corria logo atrás, derrubando barracas, tentando esmagá-la com tudo que encontrava. Mas o grande escudo dela bloqueava tudo. 

Finalmente, quando chegou à base da torre, ela parou, se virou para enfrentá-lo. 

Gurok parou, ofegante. Ele a culpava por todas as suas dores. Não a perdoaria. 

Ele arrastou o pé como um touro, quebrando as pedras do chão. Avançou com os braços abertos, urrando de raiva. 

Ela não hesitou: pegou uma pequena pedra e a atirou contra a perna dele. 

O impacto foi brutal — tão pequeno quanto uma noz, mas forte o bastante para quebrar-lhe o pé. 

Cambaleando, caiu, a cabeça batendo na torre.

A estrutura balançou, mas não cedeu. 

A lucidez voltou aos poucos, enquanto os gritos da multidão ecoavam ao redor. 

“Não... de novo não...” 

TUNK! 

Erina não quis arriscar mais. Deu-lhe um soco direto no rosto. 

Ele desmaiou na hora. 

 

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