Volume 1 – Arco 4
Capítulo 34: Donos de Si Mesmos.
Todas as noites, a cidade dividia-se entre luz e escuridão.
Para os pobres, toque de recolher. Frio, silêncio e o chão duro das cavernas. Para os ricos, festa, música e o brilho das tochas no centro da cidade.
Naquela noite, celebravam Maximus. Um festival cheio de luzes, fogos e mentiras. Contos heroicos. Memórias seletivas, pois o povo também esquece o que não lhe convém.
Mesmo proibidos de assistir, havia sempre os olhos curiosos, espiando das sombras.
Mas o dia seguinte não traria celebração. Apenas fumaça.
Sombras avançaram pelas cavernas. Jovens e crianças correram ao avistá-las. Sabiam o que acontecia quando os guardas apareciam sem aviso.
Carregavam galões. Um líquido espesso se espalhava pelo solo à medida que eles adentravam mais fundo.
Uma criança avisou outra, que avisou um responsável, que avisou o próximo. Em minutos, todos sabiam, e todos correram.
As cavernas eram muitas, mas interligadas. E, em pânico, todos fugiram para a mais profunda. A mais escondida.
Em pouco tempo, estavam todos reunidos. A pobreza reunida em um só ponto.
Pronta para ser eliminada.
Os soldados sabiam. Era assim que aquelas mentes funcionavam.
Previsíveis.
Em silêncio, despejavam o conteúdo dos galões. O cheiro forte se espalhou. Um dos homens mais velhos tentou intervir.
— Senhores... é uma honra recebê-los aqui, mas... por que estão derramando óleo? Isso custa caro...
Um dos soldados virou-se lentamente.
— Estamos apenas limpando a imundície desta cidade.
— Esperem... nós?
— Já chega da sujeira de vocês.
Ele tirou uma caixa de fósforos.
E o tempo pareceu parar.
Milhares de olhares encaravam a pequena chama prestes a nascer.
Mas ninguém se mexia.
Ninguém reagia.
Mesmo em maioria, não havia coragem. Suas correntes eram invisíveis, e ainda assim, mais pesadas que aço.
E então, veio a luz.
Branca. Intensa. Ofuscante.
Não era fogo.
Era algo vindo da entrada da caverna. Algo inesperado. Algo que até os guardas não compreenderam de imediato.
Uma cavaleira. Dourada.
A armadura reluzia como a de Lucan. Mas era diferente. Graciosa, imponente. Feminina. E duas vezes mais temida.
Os soldados gritaram e avançaram. Todos ao mesmo tempo.
A cavaleira apenas ergueu uma mão.
Um novo clarão.
KRA-KOOM! Um novo trovão.
O ar crepitou com eletricidade. Semelhante ao ataque do Juiz.
Quando a luz se dissipou, os soldados haviam desaparecido. Nem mesmo as armaduras restaram.
Conforme a cavaleira se aproximava, as pessoas começaram a se ajoelhar e reverenciá-la como sua heroína e nova entidade a ser cultuada.
Até remover seu elmo.
— Aaahhhh!!! — gritaram as pessoas.
— Você está viva! Não é possível!
— É um mal presságio... os fins dos tempos finalmente chegaram!
Lois encarou aquela gente com desânimo. Era surpreendente como pensavam tão rapidamente no sobrenatural mesmo em momentos de crise.
Poderia utilizar tais mentes fracas para benefício próprio, mas se o fizesse, não seria diferente das pessoas contra quem lutava.
— Acalmem-se, por favor — pediu, delicadamente. — Eu não morri. Fui salva. Tive minha segunda chance, e agora estou dando uma nova a vocês.
— Uma chance do quê?
— De se rebelarem! — As pessoas suspiraram, cansadas. Não era a primeira vez que Lois tentava convencê-los a lutar. — Não teremos outra chance se não for esta noite.
— Então é assim? Você nos salva para nos usar como escudo contra Lucan?
— Está louca se pensa que vamos participar da sua revolução!
— O que está pedindo é suicídio!
Irritada ao ver que a lógica só era utilizada quando conveniente, Lois explodiu.
— Eles acabaram de tentar matar vocês! Não entendem?! Não existe futuro depois de hoje! — As pessoas abaixaram os rostos, envergonhadas ao encarar a realidade. — O Governador já está negociando com o Império para trocar vocês por outros trabalhadores... Eles ocuparão seus lugares, assim que vocês "desaparecerem".
O silêncio tomou conta da caverna. Refletiam sobre a realidade e como escapar dela.
— É certo que esses novos trabalhadores terão que receber... — disse um deles — Eles não aguentarão nosso ritmo e nossas condições.
— Sim... — murmuraram outros.
— Então trabalharemos de graça!
— Sim!
A morte ainda parecia ser pior do que qualquer realidade possível.
— O que estão dizendo...? — perguntou Lois, chocada.
— Você nos alimentou durante anos! Temos certeza de que conseguirá novamente...
Lois tomou aquilo como um insulto aos seus companheiros mortos. Lembrava-se de seus rostos, nomes, mas não de suas vozes. Os gritos de suas mortes eram uma lembrança dolorosa demais.
— Por mim, todos vocês poderiam apodrecer nessa sujeira que escolheram como lar!
As pessoas paralisaram ao ver pequenos raios se formarem em volta de Lois.
Ao ver uma criança assustada, a cavaleira voltou a se acalmar.
— Eu não fiz isso por vocês, mas por seus filhos... minhas doces crianças.
— Ei! Não fale como se elas fossem suas!
— Então são suas?
— A minha Lucia é minha. Pouco me importam as outras...
— Pouco te importa a sua própria filha! — disse Lois, seus olhos relampeando. — Seu desejo de ser mãe a condenou a uma vida de sofrimento!
— Eu não...
— CALA A BOCA!
A mulher finalmente se aquietou. Lois se ajoelhou diante da pequena criança e estendeu a mão. A garota aceitou; sentia-se mais confortável ao lado da cavaleira do que da própria mãe.
— Me diga, pequena, o que há de errado?
— Eu... estou com fome...
O coração da mãe se despedaçou. Já havia dado à filha tudo o que tinha, inclusive sua própria parte.
As outras pessoas lançaram olhares de julgamento sobre a mãe.
Lois percebeu.
— Se acham que são pais melhores do que ela, perguntem o mesmo a seus filhos.
Não foi necessário perguntar. As expressões das crianças já entregavam a dura verdade.
Lois se levantou. Tentaria mais uma vez fazê-los compreender a realidade.
— Eu sei que é difícil. Sei o quanto se esforçam. Sei que não é culpa de vocês...
Nasceram condenados a viver num mundo que não dá a mínima para vocês, forçados a sobreviver com migalhas. O governo criou uma ilusão de que o sucesso dependia apenas do esforço individual.
Então eu pergunto: existe alguém nesta cidade que trabalhou mais do que vocês? Que fez mais sacrifícios? Que mais sofreu?
Cada pessoa escutava atentamente.
E eu digo: não! Não existe!
Então onde está o sucesso que fora prometido? Está com eles, e eles não irão dá-lo a vocês. Irão colocar os pés sobre suas cabeças e subir cada vez mais na "pirâmide do sucesso", deixando-os para apodrecer aqui embaixo, o lugar dos vagabundos e inúteis da sociedade.
E está tudo bem, se é isso que querem. É o que escolheram e permitiram para si mesmos. Mas...
As crianças se aproximavam para ver a cavaleira. Entre elas, algumas pertenciam ao seus companheiros falecidos.
Não condenem seus filhos ao mesmo sofrimento. Não cometam os mesmos erros de seus pais. Se querem um futuro melhor para elas, então fiquem ao meu lado esta noite. Lutem por uma vida digna, não por nós, mas por elas.
Porém, se estão com medo demais para lutar, para arriscar suas vidas, há uma alternativa: esperem até que elas estejam dormindo, num sono profundo... e as asfixiem com suas próprias mãos. Com sorte, terão uma morte indolor, e não sofrerão o mesmo destino que vocês.
— Lois! Meu Deus... o que está pedindo é um absurdo...
— Reflita sobre toda a sua vida — disse ela, referindo-se a todos —, está orgulhoso de tudo que conquistou, quando pensa no que poderia ter tido? Não estou falando de mansões ou joias, mas de uma comida quente, uma cama confortável, uma água limpa...
— Espere! — protestou um homem mais velho que os demais. — Sei o que está tentando fazer. Quasimir prometeu as mesmas coisas.
— Pelo que me lembro, ele prometeu mansões, joias e servos. Eu ainda não prometi nada.
— Dane-se! Você vai tentar nos comprar com algum desejo nosso. Não cairemos nisso de novo.
Lois permaneceu em silêncio. Sabia que o silêncio obrigava-os a pensar por si mesmos.
Ainda que o último a falar fosse contra ela, em pouco tempo, os outros desconsiderariam o que foi dito.
O próprio homem pareceu se arrepender.
Lois só precisava esperar. Uma palavra. Uma sugestão. Um suspiro. Qualquer coisa. E então, suas palavras deixariam de ser só dela — seriam de todos.
(...)
"Só mais um pouco."
(...)
...
— Eu...
"Agora."
— Querem ouvir quais são minhas promessas como futura governadora de Altunet? — Todos a encaravam. — Não posso prometer riqueza; tenho planos para esse dinheiro. Não posso prometer mansões; Altunet é pequena demais para que todos vivam bem sob seus muros.
Aos poucos, todos voltavam a se deprimir.
— MAS... — A atenção voltou. — Prometo usar todos os recursos de Altunet para o povo. Prometo quebrar cada mansão e prédio inútil desta cidade para abrigar o máximo de vocês com dignidade. Para os que não couberem, construirei novas casas ao redor. Transformarei essas cavernas em abrigos para tempos de crise. Todos estarão protegidos pelas nossas muralhas, quando necessário.
E acima de tudo, prometo acabar com o mal que sempre nos assombrou. Então esta noite, eu peço, eu imploro: lutem ao meu lado... e jamais sentirão fome outra vez!
A voz de Lois ecoou por toda a caverna.
O silêncio retornou.
Estavam decidindo, em seus corações, o que fariam.
Lutar e morrer por uma possibilidade. Ou viver no comodismo da miséria.
Parece uma escolha óbvia.
Mas você teria coragem de fazê-la?
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