Volume 1

Capítulo 14: Preparações

Tal como na vez de Marco, Jacira se fechou na mesma sala de raio-X para ter uma palavra a sós com Beatriz. A conversa, todavia, durou bem menos tempo.

Aproveitando que Régulo havia sumido pelos corredores do hospital, Marco aguardou do lado de fora. Quando Beatriz terminou, colocaram-se em movimento. A garota explicou que Jacira queria se certificar de que as histórias dos dois batiam uma com a outra.

— Suspeitei que fosse algo do tipo — assumiu Marco.

Beatriz suspirou.

— Quero ver como Levi está. Você vem comigo?

— Precisa perguntar?

A dupla seguiu pelos corredores, encontrando o quarto de Levi resguardado pela policial de cabelo curto. Ela conversava com uma das enfermeiras.

— Com licença. — Beatriz se voltou para a mulher de branco. — Gostaria de saber se já posso ver o meu irmão.

De soslaio, Marco achou o olhar da enfermeira um tanto vidrado, porém, assim que Beatriz se dirigiu a ela, mudou para a falta de jeito.

— M-me dê um segundo, querida — respondeu inquieta, trocando um olhar apressado com a policial. — Preciso confirmar com Dr. Pereda primeiro.

— Eu só quero ver o meu irmão.

— Mas o estado dele é grave, bobinha. Todo o cuidado é pouco.

Um nervo pulou na têmpora de Beatriz. — Olha, o que tem de mais em…

— Que está acontecendo por aqui? — ressoou a voz grave de Dr. Pereda, aproximando-se pelo lado oposto do corredor.

— Doutor, por favor — implorou Beatriz, virando-se para ele. — Preciso ver o meu irmão. Quero saber como ele está.

O semblante sisudo do médico se abrandou para algo amável.

— Como eu expliquei, Beatriz, permitirei que entre para ver Levi assim que o quadro clínico se estabilizar um pouco mais. Não queremos que ele apanhe uma infecção, não é mesmo? Tente compreender a situação.

A garota concordou devagar, um gesto que parecia traduzir sua dor lutando contra a impaciência.

De repente um estalo. Dr. Pereda havia batido uma mão na outra com força, sorrindo para eles através de seus óculos ovalados.

— Já sei como animá-los… Lúcia? — chamou ele. A policial de cabelos curtos se virou. — Poderia, por gentileza, levar Marco e Beatriz até a cantina? Um bom almoço revigorará os ânimos de vocês.

— Mas doutor, Marco e eu…

— Beatriz — ele ergueu a mão direita, enfatizando o tom fraterno que soava como ponto final —, eu vou salvar o seu irmão. Isso é uma promessa que faço a você.

 

*******

 

No final das contas, Dr. Pereda estava certo.

Já havia se passado algum tempo desde que o almoço fora servido aos pacientes, o que significava uma cantina praticamente vazia àquela hora. Marco e Beatriz se sentaram próximos a um senhor idoso, cuja pele tostada mostrava a vermelhidão sulcada de uma vida de trabalho sob o sol. Com a mão direita enfaixada — faltava-lhe o dedo indicador —, lutava para tentar segurar a colher com a canhota no anseio de tomar sua sopa.

Contendo o riso, Marco desviou a atenção e levou o talher à própria boca, experimentando uma sensação revigorante, como se um bálsamo lhe escorresse a partir estômago e se ampliasse até a extensão dos dedos, reanimando os músculos e o cérebro. Durante alguns segundos, a refeição cheirosa e fumegante o deixou em paz com o mundo.

— Mas que diabo! — ralhou o idoso, finalmente desistindo da colher. Virou-se para Marco e Beatriz. — Parece que chega um tempo em que a gente não serve mais pra nada! Como era boa a época em que eu tinha a idade de vocês.

— O senhor precisa de ajuda? — perguntou Beatriz.

— Ajuda? — pareceu surpreso e ao mesmo tempo encabulado. — Ah, não! Imagina, menina. É claro que não. Um velho marujo como eu já enfrentou coisas piores.

— Então o senhor é marinheiro? — interessou-se Marco.

O homem ergueu a mão enfaixada para eles.

— Pescador. Foi assim que perdi esse dedo — respondeu entusiasmado, o tom soando com um quê de orgulhoso. — Fazia umas duas horas que estava em alto-mar e ainda não tinha pegado nada. Minha esposa já tava me torrando a paciência pra voltarmos à costa, mas quando me virei pra trás, a vara começou a envergar igual pescoço de malandro quando vê mulher bonita. Acabei fisgando uma senhora piraúna… devia ter uns cinquenta quilos, brincando, mas a porcaria do anzol enroscou no meu dedo e a bitela levou um pedaço meu de troféu. — O homem estava rindo, mas o semblante lentamente sucumbiu à tristeza. — Quando voltei pra cidade, estava essa confusão dos diabos aí de fora. Consegui me apressar até o hospital e o Dr. Pereda cuidou de mim. Homem de bom coração aquele.

— Ele é sim — concordou Beatriz, sorrindo fracamente. — Está cuidando do meu irmãozinho.

— Como se chamam?

— Eu sou Beatriz, ele é o Marco.

— E o seu irmão?

— Levi… Tem nove anos.

O homem sorriu amável.

— Crianças dessa idade têm muita força. Seu irmão vai ficar bem. — Ele se levantou do lugar, apanhando a tigela de sopa. — Peço desculpas por não ter me apresentado antes, meu nome é Renato C., mas infelizmente acho que aqui nos conhecemos e também nos despedimos. Preciso retornar ao meu barco. Minha esposa tá me esperando.

— Não! — Marco soou alarmado. — Está nublando, Seu Renatossê, pelo menos espere dar sol. Têm coisas lá fora, coisas que ninguém pode ver e que estão matando as pessoas, mas se o sol estiver brilhando, as coisas se escondem. Será mais seguro para o senhor.

O homem gargalhou de segurar a mão na barriga.

— Não é Renatossê, meu jovem, é Renato C., apenas letra e ponto. — Deu de ombros. — Pois é, meu sobrenome é essa bobagem sem sentido que ouviram, mas a gente não pode se envergonhar de quem é, certo? Nunca soube direito da história, mas sei que minha mãezinha ficou furiosa. Imagino que meu velho pai devia estar com umas cachaças na cabeça quando foi ao cartório. Até imagino a cena: o escrivão deve ter sentido pena e acrescentou um ponto final pra ficar parecendo uma abreviação.

Marco e Beatriz gargalharam, algo que genuinamente não sentiam fazer há décadas. Os músculos do rosto protestaram.

— Não vá hoje, Seu Renato — insistiu Beatriz. — Fique no hospital. Amanhã talvez dê sol.

O velho pescador olhou para os lados, observando que a policial de cabelos curtos se aproximava.

— Eu preciso. Estou preocupado com minha esposa e Carlota. É a nossa gata obesa, sabem? — O homem riu. — Enfim, foi um prazer conversar com vocês dois. Cuidem bem um do outro, ouviram? É tudo que nos resta… cuidar uns dos outros…

O homem virou-se de costas para Marco e Beatriz, que observaram o andar curvado, mas firme, de Seu Renato C. afastando-se da mesa. Começou a assobiar uma canção taciturna até sumir depois da porta.

— Então… Quantos quilos ele disse que o peixe tinha dessa vez? — A pergunta veio abrupta, vinda da policial de cabelos curtos chamada Lúcia, que de repente se sentou defronte a Marco e Beatriz na mesa.

— Cinquenta — respondeu o garoto, erguendo uma das sobrancelhas.

— Na minha vez eram trinta. Próxima estará com cem.

Mas Marco e Beatriz não reagiram ao gracejo. Continuaram em silêncio.

— Ora, vamos, ficar de cara amarrada pra todo mundo não mudará nada. O único vetor da mudança é a ação. — Lúcia chocou o punho com entusiasmo na outra mão.

— E o que dá pra mudar na situação em que estamos? — Beatriz a encarou com pessimismo.

Lúcia sorriu.

— A tenente fará uma reunião pra acertar os detalhes da missão até o hemocentro e disse que quer que vocês dois participem. Assim que terminarmos, vá ao estacionamento dos fundos que irei lhe mostrar, bobinha.

Um nervo pulsou na têmpora de Beatriz.

 

*******

 

No quarto hospitalar em que estavam, dormia um único paciente.

Marco olhou para o homem. À claridade fraca dos geradores, a sala sucumbira a uma espécie de jogo de luz e sombras, como se o fato de haver menos iluminação por ali a tornasse mais fria, projetando contornos de entidades macabras e indizíveis por sobre as paredes. Os pelos da nuca de Marco se arrepiaram, tornando a se concentrar em Jacira.

Estavam reunidos em sete pessoas.

— Este daqui é o cabo Tobias — disse Jacira, batendo fracamente à cabeceira do leito do homem adormecido enquanto sorria para Marco e Beatriz. — Cabo Lúcia. — Apontou para a mulher de cabelos escuros. — soldados Odair e Nestor. — Finalizou ela, apresentando os dois brutamontes. Marco finalmente imprimiu um olhar mais atento à aparência da dupla de policiais. Odair era completamente calvo, sisudo, de pele branca e com o braço esquerdo fechado de tatuagens; Nestor, por sua vez, era negro, com tranças no cabelo, mas uma expressão mais amigável no semblante. Os dois homens fizeram um rápido aceno na direção de Marco e Beatriz. — Enfim, alguma pergunta antes de começarmos?

A garota levantou a mão timidamente.

— Pode falar, querida.

— Podemos mesmo ficar aqui? — perguntou ela, apontando para Tobias em seu sono profundo, alheio ao que acontecia ao redor. — Isso não vai atrapalhar na recuperação dele?

— Dr. Pereda disse que Tobias já está bem — respondeu Jacira, dando outra batida na cabeceira da cama. — Logo vai abrir os olhos. A verdade é que eu queria reunir toda a equipe… pra dar sorte, entende?

O clima do quarto, no entanto, não aparentava ser dos melhores. Jacira permanecia alheia aos pormenores, mas mesmo Marco, que não se achava nenhum especialista em leitura corporal, podia jurar que alguns dos policiais tentavam disfarçar o desagrado.

— Qual a missão, tenente? — perguntou Odair, emergindo de seu silêncio.

— Temos dois alvos a princípio: precisamos de sangue para os pacientes e combustível para continuar alimentando os geradores.

— Não há um banco de sangue na saída oeste da cidade? — comentou Lúcia, em tom de quem não estava muito certa do que dizia. — Além disso, se eu não estou enganada, na mesma estrada existe uma distribuidora de combustíveis alguns quilômetros mais pra frente.

Jacira concordou num sorriso sem dentes.

— É justamente para onde iremos. Para a missão, porém, vamos nos dividir em dois grupamentos. Nestor, Marco e eu iremos atrás dos suprimentos. Você, Lúcia, ficará com Odair, vigiando e protegendo o hospital. Quero que sigam de olho em quem chega e contenham qualquer confusão.

— Copiado, tenente. Posso… — fez uma pausa dramática — posso apenas fazer uma observação?

— Fale, Lúcia.

A mulher pigarreou, parecendo querer enfiar a cabeça para dentro da farda como uma tartaruga tentando se enfiar para o casco.

— Não seria mais viável que Nestor ficasse no hospital comigo? Somos companheiros de equipe há mais tempo.

Jacira arqueou uma sobrancelha.

— Algum problema com minhas ordens, cabo?

— É-é claro que não, senhora.

— Então está decidido. Quero que cuidem de Beatriz e do irmão dela como se fossem um membro da família de vocês, entenderam? A mesma coisa se estende ao Dr. Pereda. Sem um médico, não haverá mais esperança pra ninguém.

Lúcia, Nestor e Odair prestaram continência.

— Partiremos amanhã — arrematou Jacira.

— Amanhã?! — exclamaram Beatriz e Marco em uníssono.

— Imaginei que os dois reagiriam dessa forma, mas não é caso para escândalo. Já conversei com Dr. Pereda. Ele me garantiu que o quadro de Levi é estável.

— Mas por que só amanhã? — insistiu Marco. — A gente tá falando da vida de uma criança aqui.

— É justamente por causa do que me contou, Marco — pontuou Jacira, cruzando os braços e franzindo o cenho. — Supondo que as criaturas realmente não gostem de sol, isso significa que elas atacarão à noite. Falta menos de quatro horas para escurecer e não sabemos o tempo que a missão demandará, além disso, o céu está para chuva, o que seria outro obstáculo. Então prefere esperar até amanhã cedinho, ter alguma chance de sucesso e salvar a vida de Levi ou sair agora mesmo e pôr tudo a perder?

Marco permaneceu em silêncio, remoendo os argumentos.

— Era essa a resposta que eu queria ouvir. Partiremos amanhã às sete. Não se atrase e nem se esqueça do gato, entendeu?



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