Volume 1

Capítulo 18: Adaga

Beatriz acariciava a mão direita de Levi.

Sentada à beira da cama, mirava o semblante sereno do irmão, que dormia sob efeito dos sedativos; a respiração fluindo calma e ritmada.

Devido à pouca energia restante nos geradores, soubera ela que Dr. Pereda precisara desligar o aparelho de monitoramento cardíaco para direcionar ao que fosse mais urgente no hospital, sendo assim, nem sabia mais dizer o número de vezes que colocou a orelha sobre o peito de Levi para sentir seus batimentos.

Suspirou com desânimo.

O quarto estava imerso a uma meia-luz silenciosa, o que causava a impressão de que o resto de braço de Levi aparentava menos gravidade do que havia dito Dr. Pereda, com suas ataduras novas e limpas, pelo menos na leiga concepção de Beatriz. Sabia, no entanto, que só estava tentando se agarrar a qualquer fiapo de otimismo. Ele era médico e entendido do assunto. Ela era o quê? Uma boa menina que sempre guardava para si o quanto a truculência do pai a incomodava? Que jamais contestava o que a mãe dizia porque odiava quando ela gritava?

Beatriz nem se decidira sobre os rumos da própria vida. Havia perdido as contas das vezes em que os pais insistiram para que se resolvesse de vez sobre o curso da faculdade, pressionando-a dia após dia através de ameaças disfarçadas de sorrisos, repetindo em tom de inocência que o tempo de escolha estava se acabando para ela.

Chegou a cogitar letras, veterinária, nutrição e até advocacia, mas Beatriz não queria seguir o ofício do pai — não queria se tornar uma mentirosa. Em verdade, não queria seguir os passos de ninguém. Preferia esperar até que seu espírito se sentisse preparado e a guiasse.

Quanta ingenuidade, pensou ela. Não existia nada nem ninguém pronto para o que estaria por vir; em que o único postulado restante era admitir que nada mais importava, nenhuma das coisas que já desejou alguma vez, importava. Sonhos não tinham mais valor, pelo menos não num mundo que enfim sucumbiu a um precipício sem volta, não com os dois pais mortos e o irmão a um passo de acompanhá-los…

Sem mais nem menos, Beatriz foi violentamente arrancada de sua vida e arremessada numa espiral que cheirava a enxofre e sangue podre. Estava sozinha em um lugar de morte e o único cordão de sanidade que a ligava à realidade estava deitado de olhos fechados naquela cama à frente dela.

— Acorda, Levi… — cochichou para si, o tom soando dolorido. — Por favor, acorda.

— Você se importa muito com ele, não é? — perguntou a voz.

Beatriz virou-se na direção do som, distinguindo a figura empertigada de Dr. Pereda imóvel à porta. Não o ouvira entrar.

— Não me sobrou mais ninguém — respondeu com rouquidão.

O homem se aproximou sem dizer palavra, os passos tão silenciosos que causava a impressão de flutuar.

— Mas ainda tem um coração batendo dentro de você, Beatriz — disse ele. — E, enquanto ele não parar, você sempre terá mais uma chance, seja para aceitar o inevitável, seja para alterá-lo.

Naquele momento, um ruído surgiu a partir da porta. De soslaio, Beatriz vislumbrou a silhueta de Lúcia com os braços cruzados, encostada com displicência no batente. Percebendo que a policial os encarava, retornou a atenção para o médico sem entender muita coisa.

— O que quer dizer…?

Dr. Pereda ergueu uma das sobrancelhas. Não sorria.

— O que estaria disposta a fazer para salvar o seu irmão, Beatriz?

— O que eu estaria disposta…?

Aquela pergunta se repetiu indefinidamente na cabeça de Beatriz, de vários modos diferentes. A sensação de que algo flutuava nas entrelinhas do comentário fez o coração dar um tranco desagradável. Num lapso, deu-se conta de que o médico não usava seus óculos ovalados, julgando desconcertante como aquele simples detalhe tornava o semblante há pouco amigável de Dr. Pereda numa coisa intimidante.

— O senhor prometeu que salvaria o meu irmão.

O médico se aproximou e estendeu o braço, acariciando o topo dos cabelos da garota. Beatriz se encolheu. Abrindo a boca para dizer alguma coisa, o homem fez soar em tom de quem tinha de explicar o óbvio:

— Prometi, mas tudo nessa vida tem um preço.

Beatriz olhou para baixo, sentindo-se abruptamente descolada do próprio corpo, depois para Lúcia, ainda se comportando como uma estátua ao lado da porta. Ela não tinha ouvido o médico? Não sabia o que ele estava fazendo? Lúcia, no entanto, não movia um músculo que fosse, o que intensificava o misto de sensações que oscilavam da indignação sufocante a um medo que pulsava no íntimo.

Encarou o médico outra vez. Devia ter o dobro da idade dela, talvez até mais que isso. Talvez tivesse a idade do pai, mas pensar naquilo fez o estômago de Beatriz embrulhar. Em seguida, fitou na direção de Levi, dormindo naquela cama como se o mundo todo estivesse bem.

— Eu… faço qualquer coisa — soltou ela, ao mesmo tempo em que uma lágrima cortou o rosto.

Dr. Pereda sorriu, dando um passo para trás. Fez um gesto com a cabeça em direção à saída.

— Tomou a decisão correta, Beatriz. Me acompanhe até outro quarto.

Encarou o semblante sereno de Levi uma última vez e, com aquela imagem cravada na memória, levantou-se da cama, odiando-se de uma forma que jamais imaginou na vida.

— O tempo do perdão acabou — sussurrou o médico ao cruzarem por Lúcia.

Entre qualquer atitude coerente que a policial deveria tomar, Beatriz se indignou ao vê-la se inclinar numa singela reverência para Dr. Pereda, permanecendo no mesmo lugar em que estava.

Beatriz se sentiu desamparada, atravessando as portas logo depois do médico. Aquela sensação de descolamento da realidade só crescia em seu peito, embaralhando seus sentidos e dificultando a própria noção de localização. Não sabia aonde estava sendo levada. Alheia às próprias pernas, podia jurar que flutuava em vez de andar. Ninguém via que seus pés não tocavam o chão? Os corredores pareciam tão vazios… onde estavam os outros pacientes?

Numa caminhada vagarosa, encarava o jaleco branco de Dr. Pereda farfalhar a cada passo. Tinha a mesma cor das camas do hospital. Beatriz olhou de um lado para outro. A percepção do que era sólido havia lhe deixado. O cérebro trabalhava muito rápido ou muito devagar? Devia procurar as enfermeiras? Pedir ajuda a algum paciente do hospital? Mas onde estava todo mundo? E Levi? Caso acontecesse alguma coisa com o médico, o irmão ficaria sem tratamento? Beatriz cerrou o punho entendendo daquele modo aterrador e literal o significado da expressão “entre a cruz e a espada”.

Quando deu por si, haviam alcançado a porta de outro quarto, mas não passaram por ela.

— Olhe lá para dentro — ordenou o médico.

Antes que raciocinasse, havia se voltado na direção da janelinha redonda da porta, encarando o interior do local. Ergueu uma sobrancelha, demorando certo tempo até reconhecer seu único ocupante.

— Aquele policial baleado…?

— Tobias Rogério — corrigiu-a Dr. Pereda. — Este é o nome dele.

Beatriz ainda se sentia tonta, mas a incompreensão, gradualmente, ganhava mais força dentro de si.

— Por que me trouxe aqui?

— Quero que faça uma coisa para mim, Beatriz.

Ela o encarou com desagradável expectativa, observando enquanto Dr. Pereda tirava algo do interior do jaleco. O objeto brilhou prateado na mão dele. Era uma adaga.

— Pegue-a — disse o médico.

Beatriz deu um passo para trás.

— Quê? — Mas que merda era aquela?

— Quero saber até onde está disposta a ir para salvar o seu irmão. Entre naquele quarto e crave isso no peito daquele homem.

Foi como se o chão tivesse se aberto diante dele. Nada mais fazia sentido.

 



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