Volume 1

Capítulo 19: Sem olhar para trás

Sem raciocinar muito bem, Beatriz tomou o punhal nas mãos. A arma era levíssima, consistindo-se de um simples cabo feito de casco. O brilho do fio cortante, porém, a hipnotizou diante do símbolo burilado ao corpo da faca. Na lâmina, o entalhe lembrava uma letra “Z” estilizada em formato de cruz com extremidades arqueadas como as de uma foice. Ao centro, uma espécie de letra “S” composta por três linhas diagonais nascia da metade superior da cruz para morrer na metade inferior.

Beatriz se voltou para o médico.

— Por quê…?

— Porque não existe justiça até que a façamos com as nossas mãos — disse a ela. — Lúcia me contou a verdade. O que realmente aconteceu àquele dia.

Entretanto, Dr. Pereda parou de falar ao perceber a palidez nada saudável de Beatriz, segurando a adaga com frouxidão.

— Você está bem? — perguntou ele com aspecto levemente perturbado.

As pernas de Beatriz estavam flácidas, mal se sustentando acima dos próprios pés. Uma vertigem a envolvia, como se a realidade oscilasse ao redor. Ainda assim, arriscou um passo para trás. Queria correr para longe daquele homem, mas o nervosismo bagunçara tanto sua noção de equilíbrio que experimentava a exata sensação de o piso ter trocado de lugar com o teto. Foi agilmente amparada de se estatelar no chão quando Dr. Pereda a agarrou no último segundo.

— Me larga! — rugiu Beatriz, desvencilhando-se de imediato. Afastou-se alguns passos e apontou tremulamente a faca na direção de Cássio Pereda. — Por que está fazendo isso comigo?

O homem apontou com violência na direção da porta.

— Tobias Rogério é um porco! Um ser hediondo! Ele tentou violentar Lúcia! — vociferou ele. — O indigno não compreendeu o convite para conhecer a verdade, achou que Lúcia estivesse com segundas intenções. É um poço de ignorância e maldade. Julga correto mantê-lo vivo?

— Mas…

A cabeça de Beatriz rodopiava. Aquele médico — alguém que tinha feito um juramento de salvar a vida das pessoas — queria que ela desse cabo de alguém em troca da vida de seu irmão? Não. Aquele pedido não fazia o menor sentido. Aquela situação toda não fazia. Era delirante, onírica, mas o peso da adaga em suas mãos gritava para ela toda a realidade dos fatos.

— Beatriz… o verdadeiro demônio invisível é o coração dos homens.

Passos no corredor. O médico encarou por cima dos ombros da garota. Curiosa apesar de tudo, Beatriz também acompanhou com o olhar. Era Odair, outro dos policiais.

— Doutor, que bom que o encontrei. — Veio dizendo de maneira amigável, aproximando-se. — Os pacientes estão reclamando que o senhor mandou que todos fossem embora e…

— Policial, me ajude! — implorou Beatriz.

Qualquer instinto protetivo que Odair pudesse demonstrar, porém, foi colapsado no instante em que avistou a adaga nas mãos da garota, puxando rapidamente a pistola e estacando no lugar em que estava. Mirou para cima dela.

— Largue essa faca agora, menina — ordenou em tom firme. — Vamos conversar, pode ser?

Mas o ruído seco do tiro ecoou pelo local, fazendo o corredor inteiro vibrar como se as paredes estivessem vivas. No susto, Beatriz soltou um gritinho. Tudo aconteceu em segundos.

Odair despencou para frente com a cabeça atravessada; um charco avermelhado se formando imediatamente abaixo dela. Imóvel do outro lado do corredor, apenas alguns metros atrás de Odair, estava Lúcia com a pistola ainda na mira.

Foi a gota d’água num cálice já transbordando de insanidade. Beatriz largou a adaga e saiu desabalada dali, sem olhar para trás. Dobrou um corredor, depois outro e mais outro, tentando fazer o trajeto de volta até o quarto do irmão, mas o coração batia tão doído no peito e a adrenalina estugava tão corrosiva nos músculos que a vista se tornara um borrão — talvez porque as lágrimas também lhe cortassem o rosto.

Qualquer que fosse a direção que tomasse, o hospital continuava bizarramente vazio. Outro tiro ecoou à distância. Tinham dado cabo de Tobias? Não. Ela não queria saber. Tinha de se concentrar em não olhar para trás. Persistente, obrigou as pernas a prosseguirem até que, ao se dar por si, enxergou-se bloqueada por um corredor largo e sem saída.

Olhou em volta, o local iluminado fracamente. Não estava nem próxima do quarto do irmão. Em verdade, não sabia onde estava. Ali só havia uma porta lateral.

Encarou na direção contrária, ainda em pânico, mas aparentemente ninguém a seguira. Pensando em Levi e no trajeto que deveria fazer até o quarto do irmão, sentiu um cheiro forte de maresia. Notou que vinha das frestas daquela porta.

Beatriz engoliu em seco, a curiosidade suficientemente forte para guiar sua mão até a maçaneta.

Girou-a, mas, quando a puxou para si, foi imediatamente empurrada na direção contrária, como se tivesse libertado uma grande massa de ar aprisionada. Num gesto automático, Beatriz levou a mão ao nariz. O odor insuportável de sal chegava a lacrimejar nos olhos.

Ao tentar se precipitar para dentro, teve de forçar a mão também contra a boca, decidindo que não ultrapassaria a marca do batente.

Havia sangue naquele lugar, muito sangue. O líquido subia ao longo das paredes azulejadas e se alastrava pelo chão em configurações de esguicho, como se alguém tivesse usado o banheiro como abatedouro, embora Beatriz notasse que não havia nenhum corpo por ali.

Decidida a dar meia-volta e sumir daquele lugar, girou nos calcanhares até que outra coisa lhe chamou a atenção. Estreitou as vistas e reparou que, em verdade, eram duas delas.

Na parede à esquerda da entrada, próximo a uma cabine sanitária, o mesmo símbolo que Beatriz avistou talhado na adaga estava grosseiramente delineado com sangue. Um olhar mais atento, porém, permitiu reparar pela primeira vez que o sangue do banheiro se convergia bizarramente para outra marca: um tipo de círculo cabalístico que jazia ao centro de um ralo, feito em linhas retas e circulares, circundada por uma inscrição em sua parte interna.

Beatriz sacudiu a cabeça de um lado para outro, incapaz de aceitar o que estava acontecendo. O hospital não era mais um lugar seguro. Talvez jamais tivesse sido.

“Beatriz…” — A voz de Dr. Pereda repercutiu ao longo do corredor. No susto, girou nos calcanhares, mas constatou que não havia ninguém atrás dela. O eco irrompia das caixas de som ao teto. — “Venha e se junte à Ordem de Vanitas. Seu irmão precisa de você”.

Beatriz congelou no lugar. Apertou o punho com muita força.



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