Volume 1

Capítulo 20: Moribundo

O choque foi tão grande que, num primeiro momento, Marco congelou sem ação.

Como se a realidade adquirisse textura de sonho, a mesma cena se repetiu várias e várias vezes na cabeça dele, embora segundos tivessem se passado no correr dos relógios.

Marco sentia o peso da pistola na mão direita, mas largou-a como quem largava uma coisa suja. O cérebro havia parado de trabalhar com clareza, colapsado por uma raiva que não sabia caber em si. Num ato irrefletido, arrancou o machado da mochila e o lançou com toda a força para frente, fazendo-o rodopiar numa parábola e se cravar grotescamente contra a clavícula de Nestor.

O homem gritou num misto de dor e surpresa, soltando a arma.

Marco voltou a si.

Correu imediatamente na direção de Jacira, que não se aguentou nas próprias pernas. Marco se ajoelhou diante dela, testemunhando à cena penosa do ferimento verter em doses abundantes de sangue. A tenente forçava uma espécie de compressa com a palma da mão.

— J-Jacira — gaguejou ele.

— Sai… da minha frente… Marco — murmurou ela.

O garoto obedeceu. Jacira, ainda caída na mesma posição, mirou o revólver adiante e apertou o gatilho várias vezes, atirando contra Nestor até que os gritos do homem fossem substituídos pelo rumor úmido dos projéteis furando carne. Marco assistiu à sucessão dos fatos com os olhos esbugalhados.

— Você precisa de um médico! — tornou ele. — Temos que voltar! Doutor Pereda precisa tratá-la.

— Tem… alguma coisa errada aqui — disse com dificuldade. — Eu conhecia o Nestor… isso não faz sentido.

Ele se virou para trás. O policial se transformara numa peneira de projéteis.

— Marco, vasculhe o corpo de Nestor.

— Mas Jacira, seu sangramento…

— Faça o que pedi, garoto. Apanhe a arma e as munições que estão com ele. Eu me viro. Tem um kit de primeiros socorros na viatura.

Marco se afastou a contragosto, observando enquanto Jacira claudicava até a viatura.

Ao se aproximar do corpo de Nestor, observou que os olhos do homem encaravam a luz do sol bizarramente abertos, como um boneco de vodu perfurado com grosseria.

Marco não o tocou, sentindo a repulsa lhe socar o estômago. Apanhou a arma que caíra ali próximo e os carregadores nos bolsos da jaqueta. Quando estava para se levantar, porém, acabou se esbarrando na camisa do cadáver, percebendo um detalhe sob a bainha da roupa. De esguelha, encarou a tatuagem que jazia logo acima do umbigo de Nestor: um desenho abstrato no formato de letra “Z” cujas extremidades se curvavam como as lâminas de uma foice.

Marco arqueou uma sobrancelha, mas logo retomou o foco, recolhendo também o machado ensanguentado. Limpou-o apressado na barra das calças de Nestor e pôs-se a correr, alcançando a viatura numa pernada ligeira. Enfiou-se para o lado do motorista enquanto Régulo pulava para o carona.

— Pisa fundo. — A policial murmurou entre arquejos, a farda quase toda lavada de vermelho.

Sem perder tempo, Marco ligou o carro e partiu a toda dali, deixando para trás o corpo moribundo de Nestor.



Comentários