Volume 1

Capítulo 29: Esperança

Diante da mira da arma, Beatriz ergueu os braços num sinal de desistência zombeteira. Sentou-se ao lado de Marco.

— Pensei que já estivesse dormindo — suspirou ele, guardando o objeto.

— Estou morta de cansaço, mas acho que se pregar os olhos, só terei pesadelos. Achei um pouco injusto você ficar com essa lua só pra você.

Olhando para cima, Marco achou o astro verdadeiramente magnífico àquela noite, mas a vista logo despencou até a cidade. Caso ficasse em silêncio, seria capaz de captar o coral de lamúrias e ranger de dentes soando de muito longe.

As chamas que consumiam a igreja de São Décimo haviam diminuído, embora a construção ainda queimasse, espelhando as dúzias de incêndios que se alastravam por Baía das Rocas. A visão contrastava com uma lua tão cheia e brilhante.

— Umas das poucas coisas bonitas que vi desde que tudo isso começou. — Beatriz olhou para o irmão, que dormia num sono profundo. Voltou-se para Marco. — Certa vez minha mãe me contou que, quando a lua cheia está a pino desse jeito, significa que já passou da meia-noite, então… feliz aniversário, Marco.

Foi como um soco. Os lábios de Marco estremeceram de surpresa e ele teve uma vontade insuportável de chorar; pôr para fora tudo o que sentia, mas algo no coração manteve suas lágrimas no lugar, como um tipo de aceitação. Não soube dizer o momento que se conformou com a nova realidade, mas a seta da vida só se movia para frente e certas coisas jamais voltavam a ser como antes, tornavam-se uma espécie de novo normal.

Fosse viver ou reencontrar seus pais, a plenitude havia abraçado o espírito de Marco. Diante do fim, estava pronto para enfrentar seu destino. Soltou o ar resignado.

— Aqui — disse Beatriz, estendendo a mão direita. — É um presente.

Marco olhou para os dedos fechados da garota, depois a encarou. Aqueles olhos cor de jade brilhavam sob a palidez da lua.

— Não acredito que você… — Mas se calou no momento em que Beatriz tocou a mão no rosto dele e apertou os próprios lábios contra os de Marco. Foi um gesto terno. A brisa do mar soprava fria, mas os corações se aqueceram.

Quando se separaram, sorriram um tanto constrangidos de um para outro. Foi Beatriz quem falou primeiro:

— Obrigada, Marco… pelo que fez por Levi. — O tom de seriedade forçada não disfarçou a vergonha. — Não havia outro jeito e… apesar de tudo que aconteceu… fiquei feliz por ter voltado pela gente.

— Quem tá feliz sou eu — brincou Marco, tentando criar um clima de descontração. — O melhor presente para um último aniversário.

Porém, o semblante até então afável de Beatriz se fechou em algo assustador.

— Se você repetir essa besteira mais uma vez, vou dar um soco em você! Ninguém vai morrer! Chega de morte! Vamos continuar sobrevivendo como estivemos fazendo até agora. Você, eu e Levi. Nem que tenhamos que juntar todo o sal dessa maldita cidade.

Afastou um pouco a cabeça sem deixar de encará-la, suspirando numa mescla de espanto e divertimento.

Beatriz apontou para o irmão.

— Acho que é melhor… nós dormirmos — sugeriu ela. — A gente tá muito cansado. Passamos por muita coisa. Não acho que um Oculto passará por esse monte de sal.

— Você tá certa — disse ele. — Me desculpe.

Os três se ajeitaram no chão, deitando amontoados de modo que pudessem se aquecer.

Marco teve a vaga impressão de sonhar com a mãe, mas foram recortes tão delirantes que não reteve praticamente nada na cabeça. Quando tentava se agarrar a uma memória, ela escorria por entre os dedos. Era frustrante, chegava a sufocar. Queria respirar, mas não conseguia, estava sufocando. Dedos lhe tapavam a boca…

Abriu os olhos de supetão, sentindo um peso mórbido contra o rosto. Uma mão firme e calejada realmente lhe espremia os lábios. A gengiva sangrou. Marco tentou apanhar a pistola escondida.

Shhhh! — Fez a voz.

Acostumando-se com a escuridão anêmica da capela, Marco sentiu Régulo lhe pular sobre a barriga quando o contorno de Seu Renato C., o pescador do hospital, entrou em foco. Marco grunhiu.

— Desculpe, meu rapaz — disse ele, soltando-o. — Só não queria que você gritasse. A coisa não tá muito boa lá embaixo.

— O que o senhor tá fazendo aqui?! — A pergunta de Marco escapou com urgência.

— Seu gato… não sei o que se passa com esse carinha. Ele me encontrou no píer quando estava há pouco de zarpar e ficou me mordendo a canela, como se quisesse que eu o seguisse — explicou o pescador. — Quero dizer, na correria, juntei uns poucos sobreviventes. Alguns são lá do hospital. Em todo caso, só posso dizer que estou vivo graças ao seu conselho, rapaz. Emília ficou maluca com a minha demora, mas esperei até o sol aparecer pra deixar a clínica.

— O que tá acontecendo? — perguntou a voz sonolenta de Beatriz, sentando-se enquanto coçava o olho direito.

— É o Seu Renato, Bia.

A garota despertou de chofre, estatelando as vistas sobre o velho pescador.

— Temos que correr! — O homem apressou-se em dizer.

Acordaram Levi e arrumaram as coisas mais rápido que puderam.

Enquanto desciam pela rocha esculpida da capela, Marco reparou que uma fraca lombada solar surgia além do Atlântico, pintando o horizonte com as primeiras cores do alvorecer.

A praia não estava só feia, concluiu Marco, estava horripilante. Havia pedaços de corpos espalhados pelas ruas e pela areia que não estavam ali na noite anterior. Os Ocultos prosseguiam em sua carnificina.

Com Régulo marchando de rabo empinado ao lado do quarteto e Levi reclamando sobre a fome, avistaram o barco de Seu Renato ancorado próximo, apenas alguns minutos de distância da capela.

No caminho, Marco contou tudo ao pescador, que crispou no rosto uma careta de decepção quando revelou que Cássio Pereda estivera por trás de tudo. Também explicou a respeito da fraqueza que os Ocultos tinham por sal.

— Só confirmou algo que eu já suspeitava — respondeu o homem. — As pegadas invisíveis nunca se aproximavam muito do meu barco.

Na proa, Marco leu o nome do pequeno barco de passeio, considerando “Esperança” uma alcunha bastante apropriada.

Dentro dele, encontrou pelo menos outras sete pessoas além de Carlota, a gata obesa de Seu Renato. Dentre os passageiros, incluía-se também uma garotinha loura por nome Alice, mais ou menos da idade de Levi. Com o semblante amedrontado, a menina abraçava dona Emília, esposa de Seu Renato.

— Vamos para onde, senhor? — perguntou Beatriz.

— Ilha de São Pietro.

O pescador acelerou com o barco, afastando-se da costa de Baía das Rocas.



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