Volume 1

Capítulo 5: Relatos

Com pausas na fala em momentos que a história se tornava demasiado dolorida, o trio narrou o que passaram nas últimas horas. Aos poucos, sentiram que o relato tomara outra proporção, como se algo venenoso fosse arrancado de dentro deles; expelindo as palavras em algum tipo de depuração.

Não conseguiram se refrear até que os olhos de Beatriz e Levi se transformassem em cascatas de água salgada; Marco na mesma situação, embora incapaz de detalhar a respeito da mãe. Ibrahim ouvia a tudo em silêncio e, pelo menos naquele momento, tivera sensibilidade suficiente para não insistir quanto ao motivo da aflição de Marco.

Quando ele enfim alcançou o trecho que explicava sobre a morte do sócio de Ibrahim, Marco fez uma pausa, pois o homem se levantou no meio da fala e se virou de costas para os garotos, afastando-se deles e se aproximando do quadro de Salvador Rosa. Ibrahim retirou a moldura do lugar, revelando um cofre oculto. Apertou quatro números no painel, que apitou fracamente em resposta à senha, e destravou a tampa de aço inoxidável. Do compartimento decorado com malotes de dinheiro, Ibrahim arrancou uma caixinha de madeira. Começou a girá-la por entre os dedos.

— Ele foi meu colega de faculdade… o Beto. — A voz de Ibrahim soou vacilante do canto da sala. — A esposa dele era amiga da mãe de vocês. Foram os Allibe quem me apresentaram Helena. Nossa, ainda me lembro quando a vi pela primeira vez, estava tão linda e… aqueles olhos verdes… vocês dois tiveram muita sorte em puxar os olhos dela.

Com um fio de lágrima lhe cortando o rosto, Ibrahim girou nos calcanhares e abriu a caixinha de madeira diante dos filhos, mostrando um anel de brilhantes.

— Foi o anel de noivado da mãe de vocês. Não tive coragem de jogá-lo fora, mesmo depois do divórcio. Droga! — O homem recomeçou a andar pelo búnquer, esfregando as mãos contra os cabelos. — Então os gritos que escutei… foram do Beto?

Marco assentiu com vagareza.

— Por Deus! Quando ouvi aquela barulheira, minhas pernas travaram. Fiquei trancado aqui dentro. Aquele imbecil! Deve ter voltado pra buscar suas coisas. Eu devia ter contado a ele o que vi. Dito para que não voltasse ao escritório, mas não sei se acreditaria em mim…

Beatriz franziu o cenho.

— O que o senhor viu, pai?

Ele apontou com o dedo para os três. Suspirou resignado.

— Vocês conseguem compreender a sorte que tiveram ao chegarem vivos neste prédio? Têm ideia do quanto se arriscaram? Existe uma coisa acontecendo nesta cidade. Uma coisa perversa. — Ibrahim parou de falar, como se tomasse fôlego. O trio aguardava num misto de temor e expectativa. — Semanas atrás, representei um cliente chamado Camilus Morante, pego com um pequeno arsenal guardado em casa: espadas, pistolas, revólveres, fuzis de assalto e até mesmo granadas. Acabou denunciado depois que um vizinho chamou a polícia dizendo que ouvia gritos vindos da casa dele.

— Que coisa — murmurou Beatriz.

O homem assentiu antes de prosseguir:

— No início, pensei que não passasse de um desses colecionadores malucos, afinal, tinha toda a papelada em ordem, mas algumas das armas eram de uso exclusivo do exército. Aparentemente, o buraco em que esse cara estava metido daria inveja a qualquer tatu.

Levi riu com inocência, prestando atenção na história do pai com a curiosidade típica das crianças.

— Em todo caso — prosseguiu Ibrahim —, Camilus parecia tão satisfeito por ter livrado a própria cara da cadeia que, além dos honorários, acabou me convidando para um culto em sua igreja, vejam só. Eu recusei, é claro, e depois de dias sem ouvir falar no sujeito, recebi uma ligação de Camilus na manhã de ontem. Parecia apavorado, berrando no telefone que algo terrível estava para acontecer. Ele insistia em dizer que a tal igreja fizera o mal invisível emergir à terra e que eu finalmente veria para que servia todo aquele arsenal. Mandou que eu retirasse minha família de Baía das Rocas o mais rápido possível se eu realmente a amasse.

Houve um momento em que todos permaneceram sem dizer palavra, como se o cérebro de cada um ainda assimilasse o conteúdo da explicação. O silêncio, entretanto, foi aproveitado por Levi, que não tinha uma cara muito boa.

— Pai, eu tô com fome.

Diante do comentário, Ibrahim escancarou a boca, surpreso. Estivera tão absorto no que contava que aparentemente se esquecera de algo tão básico.

— Poxa, filho. Onde eu tava com a cabeça? Vocês devem estar famintos. Também está servida, Bia? Rapaz?

O trio concordou com a cabeça, dando-se conta de que o estômago já roncava há algum tempo. Ainda em silêncio, observaram enquanto Ibrahim escancarava a geladeira e o armário, distribuindo seu conteúdo sobre a bancada entre pães de forma, fatias de queijo branco, torradas, rodelas de presunto, patê de atum, biscoitos de chocolate, copos para se servirem e uma jarra de refresco de limão.

— Fiquem à vontade. — Ibrahim sorriu brandamente para os garotos. — Você prepara o sanduíche do seu irmão, Bia?

Beatriz assentiu com a cabeça, convocando Levi para que viesse atrás dela. Timidamente, Marco apanhou um pires e serviu presunto com patê de atum para Régulo, além de encher uma vasilha de água para o gato, que aceitou a refeição de bom grado. Servindo-se de uma porção de cada coisa, Marco se sentiu revigorado e com as ideias mais clareadas depois de comer.

Assim que terminaram, Ibrahim insistiu para que Levi fosse tomar banho antes de dormir (ao olhar para o relógio, Marco notou que já batia uma da madrugada). Depois de muito reclamar, o menino enfim obedeceu à ordem dada pelo pai, dirigindo-se à porta anexa do banheiro.

— Pai, acreditou mesmo na história desse tal de Camilus? — Beatriz perguntou de repente, servindo-se de outra torrada.

— É claro que não — respondeu de pronto, certificando-se de que a porta de Levi estivesse devidamente encostada. — Quero dizer, pelo menos não no começo. Foi logo depois que ele me ligou… não sei bem o que aconteceu, mas algo na voz daquele cara me deixou nervoso. Nervoso de verdade. Você sabe que não sou nada supersticioso, Bia, mas, por algum motivo, resolvi investigar tudo o que era possível sobre Camilus, só por precaução. O que posso adiantar é que fiquei perturbado com as descobertas que fiz.

Marco e Beatriz redobraram a atenção. O homem prosseguiu:

— Sobre aqueles gritos que fizeram os vizinhos chamarem a polícia, se lembram? Descobri que Camilus, em conjunto com a esposa, sacrificava animais no quintal da própria casa, em alguma espécie de ritual organizado pela mesma igreja para a qual tinham me convidado… Ordem de Vanitas, era assim que a chamavam, mas não descobri detalhes que vão além de sua fundação misteriosa há dezoito anos, aqui mesmo em Baía das Rocas. Foi por isso que resolvi descer até a casa de Camilus pessoalmente. Queria entender o que tinha sido aquele telefonema; dar um fim ao sentimento de inquietação que me afligia, mas quando cheguei lá… Camilus me abriu o portão todo ensanguentado e fora de si. Gritava apenas que “os Ocultos haviam emergido” e, sem me dirigir uma palavra que fosse, saiu pela rua completamente fora de si.

— E o que o senhor fez? — perguntou Beatriz.

O semblante de Ibrahim se transformou numa careta tragicômica.

— O que podia fazer? Fosse notícia da TV, eu jamais teria acreditado, mas vi Camilus levitar no ar com esses mesmos olhos que Deus me deu. Depois o corpo dele foi rasgado ao meio sem mais nem menos. Foi a coisa mais terrível que já presenciei. Parecia não passar de um boneco, mas quando o sangue espirrou, foi aparado assim… no meio do ar, como se o vento tivesse se solidificado de repente. Eram as coisas invisíveis… eu as vi. Havia mais de uma. Só me lembro do quanto corri depois daquilo. Nem olhei para trás. Foi uma sorte ter conseguido me enfiar para dentro do carro e voltar para o escritório. Ainda tentei ligar para o Beto e para sua mãe, Bia, para saber se estavam bem, mas todos os sinais de telefone já estavam perdendo cobertura.

Ao finalizar o relato, um silêncio profundo se abateu entre eles. Marco e Beatriz tentavam absorver, cada qual a sua maneira, à enxurrada repentina de informações. Ao longe, o zumbido do chuveiro era o único som que preenchia o ambiente, até Marco se voltar para Ibrahim.

— Então essas coisas… esses “Ocultos”? Acha que foram invocados pela igreja do seu cliente?

O homem maneou com a cabeça.

— É um palpite, mas pela cruz em seu pescoço, vejo que é religioso, meu rapaz. O que a sua intuição lhe diz?

— Não sou religioso. O crucifixo é uma lembrança do meu pai.

— Demônios — proferiu Beatriz, como se a voz viesse do fundo da garganta. Marco e Ibrahim se viraram com surpresa para ela. — Para mim, é o que são. Mataram a nossa mãe, Marco, e o sr. Roberto também. Vieram direto do inferno pra arrancarem quem a gente ama de nós.

Marco fitou a garota, mas nenhum comentário lhe surgiu à mente, compreendendo que a dor, às vezes, era melhor traduzida pelo silêncio. Sentiu um alívio estranho, como se Beatriz tivesse chegado à conclusão que lhe pairava pela cabeça, mas que preferira ignorar.

Entrementes, um ruído cortou o búnquer quando Levi surgiu através do banheiro, enrolado numa toalha branca e com os cabelos gotejando ao longo da face.

— Tô limpo agora — disse ele, abrindo um sorriso ingênuo.

— Está sim — disse Beatriz, voltando-se até o irmão. — Venha, Levi. Vou preparar um lugar pra você dormir.

— Está bem tarde. Acho que o ideal seria que todos fôssemos deitar — concordou Ibrahim, virando-se para Marco. — Você tem onde ficar, rapaz?

— Marco perdeu tudo o que tinha, pai! Deixe-o conosco, por favor — solicitou a garota, tomando o irmão pelos ombros. — Só chegamos vivos até aqui por causa dele.

Ibrahim arqueou uma sobrancelha e coçou a barba bem-feita com relutância. Marco compreendeu logo o que havia nas entrelinhas da quietude do homem.

— Talvez seja melhor eu ir embora — proferiu ele, sem encarar os olhos de Beatriz. — O Sr. Salvatore não me conhece, é perfeitamente compreensível que…

— Nada disso. Você vai ficar! — A garota bateu o pé.

Mais uma vez, Ibrahim analisou Marco de cima a baixo, mas suspirou erguendo os braços, mostrando sinal de desistência.

— Certo, acho que está tudo bem. Se Bia acredita em você, lhe darei um voto de confiança, mas não vacile comigo, rapaz. Sou grato por ter salvado a vida dos meus filhos, mas minha indulgência está longe de ser ingênua. — O homem apontou o dedo, encarando a expressão de Marco. — Enfim, caso decida ficar, precisará de um banho. Há toalhas na gaveta sob a pia.

Marco agradeceu com um sorriso amarelado. Fez carinho na cabeça de Régulo, que já dormia num profundo ronronar, acomodado numa lacuna que encontrara por entre os livros da estante, e se dirigiu até o lavatório.

O lugar estava branco de vapor, que subia mornamente até o teto baixo, penetrando através do circulador de ar.

Quando se meteu por debaixo do chuveiro, permitindo que a água quente atenuasse o incômodo das feridas e arroxeados da pele, a mente de Marco se nublou como a névoa circundante, embora os pensamentos convergissem para uma única direção.

Agora que deixara Beatriz e Levi em segurança, era imperativo que desse o fora daquele lugar o mais rápido possível. Sabia não ser bem-vindo, mas, para partir, enxergava necessidade de arrumar um meio de acabar com aquelas coisas. No íntimo, Marco sentia como se todas elas tivessem parte de culpa pelo que acontecera à sua mãe; um taco improvisado, contudo, encontrava-se longe da arma ideal. Tinha Régulo como seus olhos e, ainda que seus alvos fossem invisíveis, a morte de Roberto Allibe tinha servido para provar uma coisa.

Descobriu que os “Ocultos” tinham carne e, se tinham carne, eles sangravam.

Sangrar significava que podiam morrer.

No momento, faltava apenas uma variável para completar a equação: Achar um meio de chegar à casa de Camilus Morante e apanhar todas as armas que encontrasse por lá.



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