Volume 1

Capítulo 4: Contra a parede

O torpor inicial murchou, restando apenas o vazio contemplativo.

Com as roupas encharcadas, Marco largou a alma para trás e se arrastou para junto do casal de irmãos, sentindo como se as pernas não lhe pertencessem. Explicou o que acontecera e o que vira pelo lado de fora. Beatriz e Levi se aproximaram da janela que dava vista para a rua e, afastando as persianas, testemunharam com horror ao espetáculo do chuvisqueiro se distorcendo em ângulos impossíveis.

Ao pensar na situação, Marco destacou a sorte que o trio tivera por não terem topado com nada enquanto dirigia — era isso ou os invisíveis começaram a se agrupar havia pouco tempo. Engoliu em seco, finalizando o relato; a preocupação de Beatriz, no entanto, decaiu-se sobre outra questão mais urgente.

— Mas… e nosso pai? Você o encontrou?

Marco se demorou sobre o semblante aflito do casal de irmãos, decidindo-se quanto ao melhor modo de contar o que vira no corredor. Por fim, ajoelhou-se de frente para o mais novo.

— Levi, sei que você é um garoto corajoso. Consegue ficar aqui com Régulo um pouquinho? Preciso mostrar uma coisa importante pra sua irmã.

— Vão me deixar sozinho?

Ele negou com a cabeça.

— Não se preocupe. Estaremos logo ali, ok? — Marco apontou em direção ao corredor destruído. — Como eu disse, Régulo vai ficar com você, mas se ficar com muito medo, é só gritar bem alto que voltaremos na mesma hora, combinado? A gente promete que já volta. — Ele mostrou o dedo mínimo para Levi, que entrelaçou o seu próprio ao de Marco. — É isso aí. Cuide dele, Régulo.

O gato se aproximou com esperteza felina, roçando a anca e o rabo comprido por entre as canelas de Levi.

Marco fez um sinal de cabeça para que Beatriz o acompanhasse e assim se afastaram. Ambos seguraram o olhar sobre Levi até a silhueta do menino sumir de vista.

Quando alcançaram o corredor recém-destruído, as órbitas de Beatriz testemunharam a carnificina. Ela teve de fazer um esforço absurdo para não esvaziar o conteúdo do próprio estômago. Por fim desviou o olhar, segurando a boca com a mão.

— Ele… não é meu pai — disse ela, cerrando as pálpebras com rigidez. — Roberto Allibe… era o sócio do papai aqui do escritório.

Marco ponderou por um segundo.

— E tem algum palpite sobre o paradeiro dele?

Beatriz apontou em direção à saída ao fim do corredor, ainda sem olhar diretamente para o local. O sangue já começara a escurecer, criando uma crosta maleável sobre as paredes e penetrando na madeira da porta.

— Há um búnquer do outro lado. É bem fortificado. Sei que papai tem um cofre lá dentro, mas… tenho medo de descobrir que ele terminou como a minha mãe ou o Sr. Roberto.

Marco fitou a garota demoradamente, observando que, a despeito de terem a mesma idade, Beatriz se assemelhava muito mais a um gatinho assustado. Não tinha como culpá-la, todavia. As circunstâncias e o fato de que ninguém conseguira descansar não lhe permitiam julgá-la com clareza. Verdade era que, de uma hora para outra, todos haviam sido atirados para dentro daquele turbilhão maciço de horror.

Os ouvidos de Marco zumbiam, provavelmente causados pelo acúmulo de estresse, supondo que, tivesse a mente um pouco mais instável, estaria às vias de se entregar, de vez, à loucura. No entanto, lá estavam eles. De pé. Todos os três. Mas parar de repente podia ser perigoso. Marco suspeitava que não conseguiriam seguir em frente, pelo menos não no mesmo ritmo de antes.

Beatriz, Levi e ele não passavam de um bando de adolescentes comuns — pessoas comuns —, que retiravam forças de onde não sabiam, mas o bastante para os impedir de desmoronarem. Não obstante, Marco não culparia ninguém caso sucumbisse a um colapso nervoso, pois ele mesmo se sentia a um pensamento de surtar. Em poucas horas, o trio já suportara mais do que parecia possível.

— Seu pai deve estar bem — disse Marco, por fim, forçando um tom otimista. — A porta está intacta.

Ela concordou devagar.

— Que acha que são? — perguntou, as sobrancelhas enrugando com temor. — Essas coisas?

— Acredita no fim do mundo?

Beatriz se virou com incerteza, numa expressão que mostrava recusa em aceitar a sugestão. Marco se limitou a sacudir os ombros.

— É o que eu acho.

— Bem… — recomeçou ela. — O que quer que sejam, não posso ficar aqui choramingando… Sem fazer nada. Eu preciso achar meu pai.

Marco concordou com seriedade. Sem perder tempo, rasgou um pedaço da manga da própria camisa, entregando-o para Beatriz.

— Amarre nos olhos de Levi, sim? É melhor que fiquemos todos juntos a partir de agora.

Ela concordou agradecida e correu de volta até o irmão, retornando segundos mais tarde com Levi vendado e Régulo num trote atrás do menino.

Recordando-se de dar meia-volta para apanhar o taco de bete-ombro improvisado, Marco seguiu escoltado pelo gato à dianteira, atravessando o corredor em ponta de pé, relutante que alguma sombra ocultasse outra daquelas coisas invisíveis.

Beatriz vinha logo atrás dele, guiando o irmão vendado. Levi se negava terminantemente a baixar os braços, tentando apalpar pelo caminho enquanto se queixava de ser o único a ter de ficar no escuro (Marco o incentivava, exaltando a coragem de Levi).

De repente, exigindo que o irmão prendesse o fôlego, Beatriz e Marco passaram pelas vísceras de Roberto Allibe, cruzando o batente e descendo alguns degraus até saírem num segundo corredor, este de alvenaria, iluminado por um par de luminárias de teto, que brilhavam abatidas à fraca energia que provinha do gerador. A última lâmpada piscou, num lapso de luz e trevas que chamou a atenção de Marco para as duas portas laterais à direita, uma vez que o corredor morria brusco numa parede-cega.

— A sala do meu pai é a última de lá — indicou Beatriz, arrancando a venda de Levi.

Alcançaram-na em silêncio. Marco girou a maçaneta devagar, prolongando a expectativa.

Algo, então, aconteceu. No momento em que a porta foi empurrada, um vulto cortou a passagem e impeliu o corpo de Marco para trás, que sufocou um guincho ao bater as costas violentamente contra a parede oposta, largando o taco de supetão. Alguém lhe tomara pela garganta.

— Pai! — bradaram Beatriz e Levi em uníssono.

O homem alto, de cabelos havanas e camisa social se volveu para os filhos com olhar de descrença, sem afrouxar o agarrão.

— Ele é nosso amigo! — insistiu Beatriz. — Solte-o!

Como se só então constatasse que um pescoço humano sufocava por entre os dedos fortes, o homem largou Marco e piscou com surpresa. O garoto começou a tossir.

— M-meus filhos! — trovejou de repente, abrindo os braços e correndo para junto de Beatriz e Levi. O homem os abraçou comovido. — Pensei… eu pensei que…

— Nós também, pai — desabou Beatriz, redobrando a intensidade do abraço.

— E a mãe de vocês? Onde está?

O soluço de Levi soou uma oitava acima.

— Os monstros, papai. Eles a comeram.

— Por Deus. Helena… — O sorriso do homem desapareceu à sombra do comentário. Na voz aguda e sincera de Levi, a verdade tomara gravidade ainda mais perturbadora; seus olhos se voltando na direção de Marco, que massageava a garganta mais uma vez. — E você, meu rapaz? Quem é você?

— Ele é o Marco, pai — explicou Levi, com inocência. — Ele trouxe a gente até aqui de carro.

O homem o encarou desconfiado.

— Isso é verdade, Bia?

A garota fez que sim.

— E você é maior de idade, rapaz?

— Quase.

— Está certo. — O homem coçou atrás da cabeça. — Bem, então acho que lhe devo um pedido de desculpas pela forma como o recepcionei, além de agradecer pela hombridade de ter trazido meus filhos em segurança. É um gesto raro nos dias de hoje. Em todo caso, foi mesmo um milagre chegarem ao escritório com as ruas do jeito que imagino que estejam. Enfim, suponho que meu nome não lhe soe estranho, rapaz. Sou Ibrahim Salvatore — apresentou-se, estendendo a mão direita para Marco. — Melhor advogado de Baía das Rocas, ou ao menos era antes desse Deus nos acuda. Já limpei a barra de muitos jovens como você.

Marco estreitou as pálpebras, cumprimentando-o frouxamente.

— Jovens como eu? — repetiu devagar. — O que quer dizer?

Discretamente, o olhar de Ibrahim correu de cima a baixo sobre Marco.

— Ora… nada é claro.

— Se o senhor tem algo a me dizer, a hora é essa.

— Vamos, meu rapaz. Já pedi desculpas pelo acontecido, quer que eu faça mais o quê? Remuneração financeira, é?

— Pai! — ralhou Beatriz, zangando-se.

Ibrahim suspirou com cansaço, coçando o cocuruto.

— Sou apenas um pai preocupado, Beatriz. A hora que o menino abriu a porta, pensei que fosse… bem, uma dessas coisas invisíveis. Enfim, como está se sentindo, meu rapaz?

— Vou sobreviver — balbuciou Marco, de mau humor, ainda sentindo a pele sensível em torno de onde fora agarrado. — Mas é estranho. O tom do senhor… é como se soubesse o que elas são, quero dizer… as criaturas.

— Isso é verdade, pai? — questionou a garota. — O senhor sabe sobre elas?

Ibrahim girou os olhos de Marco para os filhos e destes para a porta que jazia no alto das escadas ao início do corredor, maneando com a cabeça em direção à saleta. Abriu a boca e proferiu com seriedade:

— Venham, não é seguro ficarmos aqui. Você também, rapaz — convocou, ao mesmo tempo em que ouviram um miado. — E esse gato?

— Ele está comigo, senhor — anunciou Marco.

— O nome dele é Régulo, papai. — Levi comentou com entusiasmo.

— Claro, filho. Claro. — Ibrahim, todavia, parecia demasiado distraído para partilhar da animação do caçula, seguindo de volta à saleta e mais uma vez solicitando que o seguissem.

Marco prendeu uma exclamação assim que atravessou a porta, notando que o búnquer se assemelhava a um pequeno escritório, com uma estante empilhada de livros de um lado e uma geladeira de quinhentos litros do outro. Havia também um fogão de quatro bocas, micro-ondas, uma bancada, armários com mantimentos, além de um banheiro anexo à direita de quem entrava.

A decoração modesta se resumia a um quadro de Salvador Rosa e um tapete de arabescos que recobria quase todo o piso. Arandelas tingiam o ambiente de um alaranjado elegante, consoante aos três vasos de narcisos que adornavam as extremidades da saleta. A escrivaninha ao centro completava o arranjo, sobre a qual jazia um par de pequenos troféus em formato de mão segurando um Royal Flush, uma bandeira de mesa do Brasil, o notebook aberto e uma fotografia de Ibrahim com o casal de filhos.

O homem puxou duas cadeiras para Beatriz e Levi e se sentou ele mesmo em sua poltrona, ficando de frente para os garotos como se estivesse prestes a começar uma entrevista de emprego.

Marco se acomodou de pé, não avistando nenhum outro assento por ali.

— Peço desculpas por isso, rapaz. Só tenho três lugares.

Beatriz ofereceu a própria cadeira para Marco, que prontamente a recusou, dizendo não haver problemas.

— Agora — recomeçou Ibrahim —, vocês podem me contar, desde o início, como chegaram até aqui e o que aconteceu à mãe de vocês?



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