Volume 1

Capítulo 3: O corredor

Marco dirigia anestesiado.

Observava a água formar desenhos de serpentes pelo para-brisa, acompanhando o movimento dos limpadores como se a mente estivesse a quilômetros dali.

— Sinto muito pela sua mãe — A sinceridade de Beatriz soou com pesar, cortando a quietude que os envolvia.

Marco fez um maneio de cabeça, sem desviar os olhos da estrada.

— O vento também a pegou? — perguntou Levi.

Marco cerrou o punho e desceu com força sobre o volante. O carro buzinou, assustando o casal de irmãos.

— Eu senti — respondeu zangado. — Algo bateu em mim e me jogou para trás. Não foi porcaria de vento nenhum, era sólido, como se… se fosse invisível. É por isso que eu o trouxe.

Marco apontou com o polegar para trás, no momento em que o gato preto soltava um miado. Acomodara-se com displicência por sobre o colo de Levi. O menino lhe coçava a queixada. Prosseguiu:

— Mais cedo, pouco antes de desmaiar, vi um agrupamento de gatos olhando assim… para o nada. Era como se farejassem ou enxergassem algo que escapasse de nós.

— Seria bom enxergar minha cama agora — cochichou Beatriz, sem tirar os olhos da paisagem que corria pelo lado de fora. — Ia dormir até que esse pesadelo acabasse.

O interior do veículo voltou a mergulhar num silêncio de velório e, para matar o tempo, calhou a Beatriz sintonizar o botão do rádio, mas todas as estações chiavam fora de sintonia. No fundo, Marco sabia que a combinação de rádios e telefones sem sinais demandava mais preocupação do que sentia, no entanto, todos os pensamentos orbitavam sobre ter sido empurrado para trás ao se deparar com o corpo de sua mãe na cozinha…

Avistou uma placa apontando que o centro de Baía das Rocas começava a duzentos metros e imprimiu tanta força sobre o volante que o sangue fugiu dos nós dos dedos.

Toda a insanidade das últimas horas estava gradualmente impulsionando seu espírito para um precipício cujo fundo Marco não conseguia distinguir. Sentia-se desamparado, à beira de um colapso nervoso. Queria gritar até perder a voz, imaginando a probabilidade de topar com algo invisível caso abandonasse o carro e saísse correndo pela chuva; algo que o engolisse em duas mordidas e acabasse com seu sofrimento, antes mesmo de entender o que havia acontecido.

Não sabia explicar o que o forçava a seguir com o pé atolado no acelerador. Pensou naquele casal de irmãos, mas quando levou a mão direita à cruz no pescoço, obteve sua resposta.

Certa vez, contara a mãe que o pingente pertencera ao pai de Marco.

Cláudio Pharas tinha morrido há dez anos em decorrência de complicações da diabetes. Desde então, Irene cuidou sozinha do filho, vendendo bolos, doces e quitutes para botar comida na mesa, embora sempre pegando no pé de Marco para que ele não abusasse do açúcar, com medo de que o filho desenvolvesse a doença do marido. Fato era que tinha da mãe, a imagem de uma guerreira sem espada ou armadura — uma mulher que tivera poucas oportunidades na vida, mas que, em boa verdade, teria merecido o mundo.

Era tão difícil engolir que as coisas tinham acabado daquela forma. Tão injusto, cruel e imperdoável! A revolta fazia seus pensamentos recaírem até a maior blasfêmia que conseguia formular. Entreabriu a boca, mas a fechou no segundo seguinte; a coragem de pronunciá-la se esvaindo como a chuva no vidro. Não queria que o sorriso da mãe desaparecesse da memória. Se estivesse ali, ela simplesmente diria que todas as coisas tinham um propósito para acontecer. “Estava tudo nas mãos de Deus”.

No entanto, qual era a explicação de Deus para aquilo tudo? Marco levava a opinião de que o inferno não devia ser muito diferente do que viu naquele dia, mas… sabia que um dos desejos da mãe sempre fora de que buscasse pelas próprias respostas. Jamais o condenara depois que Marco decidiu não ir mais à igreja. “Encontre seu caminho, meu filho…”, ela aconselhou à época, “só não se desvie do que é certo”. Ele inspirou fundo. Não deixaria que a batalha de sua mãe para criá-lo fosse em vão.

— É ali — cortou a voz de Beatriz, puxando-o de volta ao mundo real.

A chuva havia arrefecido, ao passo que Marco já conseguia avistar a plaqueta por sobre as portas de um pequeno e elegante edifício. Letras escarlates identificavam a construção como sendo “Allibe e Salvatore Advogados Associados”. O jovem girou com o volante e, expelindo o ar com uma canseira de alma, emparelhou-se com o meio-fio.

Ao puxar o freio de mão, Beatriz e Levi saíram correndo pelo chuvisqueiro, mas Marco permaneceu no lugar, olhando com desconfiança para a construção e para as sombras que escapavam dela. Todas as luzes estavam apagadas.

Enchendo-se de coragem, apanhou o taco de bete que trouxera consigo, chamando por Régulo, mas percebendo com surpresa que o gato já seguira junto de Levi. Em silêncio, empurraram as portas de entrada no momento em que Marco alcançou o grupo.

Com um mau pressentimento, o trio encarou o espaço imerso em trevas. Pé ante pé, Marco, Beatriz e Levi prosseguiram sem trocar palavra, seguindo com os ombros em paralelo à parede enquanto buscavam pelo interruptor. Quando Marco alcançou o botão, as luzes não se acenderam de imediato. Ligou e desligou mais algumas vezes até o gerador ganhar vida, lançando uma claridade anêmica sobre os móveis e computadores.

— O que há com as luzes normais? — sibilou Beatriz.

Paaai? — Levi gritou de súbito, fazendo ecoar indefinidamente pelo escritório. A escuridão vacilante transformou o som em algo mais agudo que o habitual.

Num reflexo, Beatriz tapou a boca do irmão, correndo as vistas pela decoração com aspecto de quem se certificava de que não adentrara na toca de uma criatura faminta. Um som rascante atroou em resposta, como se um espigão raspasse contra a parte mais erma do escritório.

Em seguida, ouviu-se um uivo humano e um calafrio atravessou o corpo de Marco. A lamúria soou espectral, morrendo à distância ao se propalar pela penumbra.

— O-o que foi isso? — gaguejou Beatriz. Levi chegara para mais perto da irmã.

Marco aproximou o taco do peito e examinou o entorno. Arriscou, embora a voz dele também vacilasse:

— Talvez… a circulação de ar?

— E se for o nosso pai? — contestou Beatriz, angustiada. — Se ele estiver ferido?

— Não era a voz do papai — disse Levi, ainda agarrado às vestes da garota.

Marco respirou fundo, deixando que o suspiro morresse nas trevas.

— Certo. Vocês dois fiquem aqui. Vou dar uma checada. — Ele fez uma pausa, como se tentasse convencer a si mesmo do que diria em seguida: — Se me ouvirem gritar, quero que saiam correndo sem olhar pra trás. — Marco se voltou para ambos; o tom de voz repentinamente decidido. — Volto logo. Régulo, vá na frente, garoto.

O gato preto miou e, para surpresa de todos, comportou-se como se tivesse compreendido a ordem. Régulo fungou no ar e, fazendo soar um tipo de resmungo, saiu a toda dali. Marco deixou o casal de irmãos para trás e seguiu no encalço do gato, que costurava por entre mesas, cadeiras e caixas abarrotadas de documentos. Prosseguiram até alcançarem uma abertura que terminava num corredor apêndice ao escritório, com paredes feitas de gesso.

Régulo se adiantou até lá e Marco continuou no rastro.

O corredor tinha apenas duas portas, dispostas uma em cada extremidade, e largura suficiente para comportar apenas duas pessoas. Marco se precipitou para o interruptor; as luzes do gerador lançando uma claridade mais intensa sob o espaço reduzido.

Foi o momento em que viu Régulo estacar a seus pés e cravar o olhar sobre a extremidade oposta. O gato bufou mostrando os dentes, ouriçando a pelagem no momento em que Marco depositou as vistas sobre um sujeito próximo à outra porta. O homem vestia trajes sociais.

— S-socorro! — balbuciou ele, esticando a mão aberta na direção de Marco.

Não houve, entretanto, tempo hábil para uma reação maior que um escancarar de boca.

Impotente, Marco assistiu enquanto o homem era elevado em pleno ar, como um projeto de assombração. Repentinamente, os braços do estranho foram esticados além do que era suportável encarar. Marco sentiu uma combinação de horror e fascínio, mas os olhos continuavam implacavelmente cravados na cena.

A situação era grotesca, onírica, e, ainda flutuando, testemunhou quando o homem começou a gemer em vista dos braços cada vez mais espichados, como se quisesse tocar as paredes de cada lado sem sair do lugar. Com assomo de repulsa, Marco compreendeu o que viria depois dos primeiros estalos e do grito enregelante de dor. Desviou o rosto no momento em que um barulho macio e liquefeito preencheu seus ouvidos.

Marco apertou ainda mais o taco, mas não protelou ao entender que, cedo ou tarde, teria de encarar a realidade sórdida ao fim do corredor.

O homem flutuante fora grotescamente rasgado, espalhando entranhas como se não passasse de um mastigado de carne sem valor. O vermelho nauseante agora enfeitava a extremidade do caminho, assemelhando-se a uma pintura expressionista em tons de tripas e músculos humanos. A morte, no entanto, se derramou sobre algo a mais: algo que não parecia estar ali até então.

O sangue se detivera a meio caminho do assoalho, aparado pela forma sugerida de uma cabeça feral e de uma cernelha. Marco sentiu o nojo se misturar ao pânico, borbulhando raivosamente no estômago, mas o choque, bizarramente, forçara as ideias a funcionarem com mais clareza. Então fora assim… no final estava certo. Não tinha sido porcaria de vento nenhum…

Os dedos contra o taco perderam a sensibilidade quando ergueu o porrete e mirou-o na direção dos contornos de sangue que pairavam a quase dois metros do chão. Régulo, no entanto, escafedeu-se dali; a silhueta feral correndo de encontro a Marco, uivando esganiçada e chapinhante ao deixar um rastro avermelhado de pegadas invisíveis para trás de si. Um cheiro podre de enxofre subiu às narinas…

Subitamente, Marco experimentou um estranho arrefecimento da realidade, como se sua percepção do tempo fosse mais depressa que o normal e o tempo, em si, mais vagaroso. Sentia a adrenalina irrigando seus músculos como se queimassem um maço de palha e, embora não pudesse discernir o que vinha em direção a si, sua mente orbitava nas lembranças que tinha da mãe, emprestando-lhe forças.

Marco aguardou, antevendo o inevitável com o taco em riste, mas o tempo voltou a correr no momento em que a explosão encheu seus ouvidos, como se uma caixa de fogos estourasse no corredor. Uma nuvem de estilhaços irrompeu pelos ares.

Tossindo, Marco deu-se conta de que o estrondo fora causado pela entidade que rebentara com o corredor de gesso e escapara antes de alcançá-lo.

Irritado, partiu em perseguição, seguindo o rastro de destruição que surgia pelo trajeto; a coisa invisível quebrando mesas, cadeiras, estantes e tudo mais que encontrasse pela frente.

— Já volto. Fiquem aqui! — gritou Marco ao cortar por Beatriz e Levi, encolhidos a um canto do escritório com os semblantes cheios de medo.

Ele continuou sem perder o ritmo, percebendo que a coisa se dirigia à saída, mas estava sumariamente enganada se supunha que Marco a deixaria escapar. Vingaria sua mãe e, de quebra, a dos dois irmãos também. Ninguém mais precisaria morrer depois que aquilo tudo acabasse.

Marco repassava mentalmente o que devia fazer. Quando o invisível escapasse do escritório, iria se tornar um alvo fácil. Se o sangue fora capaz de revelar parte de sua silhueta, a chuva teria o mesmo efeito. Assim que o enxergasse, enfiaria aquele taco na garganta do bicho.

As portas se escancararam de súbito e Marco, na ânsia de alcançá-lo, também as atravessou, sendo recebido pela noite úmida de Baía das Rocas.

Sem sair do lugar, vasculhou afoito atrás da coisa e de fato a distinguiu contra os pingos de chuva. Pouco mais ao longe, as gotas se deformavam contra seu corpo quadrúpede e invisível. Marco, no entanto, avistou algo que fez seu coração congelar. Por um segundo inteiro, acreditou que o órgão tivesse decidido que pararia de bater contra as costelas, deixando que o taco pendesse ao lado do corpo, seguro frouxamente na mão.

Marco piscou. Um relâmpago cortou os arredores.

A água continuava a cair, indiferente. O clarão, todavia, se mostrara revelador, abrindo as cortinas para o palco nefasto daqueles seres incorpóreos a vaguearem pelas ruas.

Tremendo, tentou se concentrar, contando dezenas de criaturas.

Com um sorriso nervoso, viu-se perante uma legião de silhuetas que moldavam a chuva e a noite contra seus corpos invisíveis.



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