Volume 1

Capítulo 8: Toca dos lobos

Assim que Marco avançou para o interior da delegacia, percebeu que, tal como o escritório do pai de Beatriz e Levi, o lugar estava largado na penumbra, unicamente iluminado pelos fachos de luz que adentravam pelas frestas e janelas. Daquele modo, Marco concluiu que a distribuição de energia da cidade fora de todo comprometida.

Prosseguiu a passo de formiga, atentando-se ao menor dos ruídos, embora Régulo parecesse displicente em seu caminhar.

A delegacia fora revirada, apesar da profunda quietude a que estava mergulhada. Marco bufou com amargor. Era óbvio que outros já tinham tido a mesma ideia, mas se esquecera de algo tão evidente e simples. Suspirou e apertou as pálpebras. Não podia subestimar o ser humano, principalmente em situações que o empurrasse para a beira do abismo.

Singrando como Régulo por entre móveis quebrados, cadeiras faltando pernas e objetos destruídos, Marco cortou ao lado de uma porta fechada. A placa acima indicava que se abria para o almoxarifado num nível inferior e aquilo em muito interessou a Marco, mas um burburinho de vozes atravessando outra porta mais à frente, essa entreaberta, chamou-lhe mais a atenção. O ruído vazava de uma sala adjacente ao saguão de entrada.

Em ponta de pé, aproximou-se do local, ficando bastante próximo da fresta, mas de modo que ninguém pudesse vê-lo. Marco percebeu que uma dupla de homens conversava, cada um manuseando uma pistola e alguns carregadores. Arqueou uma sobrancelha na direção dos sujeitos, pois não era bem a concepção que Marco tinha de policiais — se é que o eram —, com suas jaquetas de couro preto bordadas com o número 88 se destacando contra a pele pálida, além das cabeças raspadas e recobertas de tatuagens.

Ressoando a partir da sala, uma lamúria penetrou nos ouvidos de Marco com tanta força que os pelos da nuca se arrepiaram.

— Vamos, qual é o calibre certo? — perguntou o primeiro homem, suspendendo um par de carregadores à altura dos olhos.

— Eu… eu não sei — murmurou o segundo, a pistola estremecendo na destra. — Que droga, Augusto. Não acho que consigo.

— Então terei de fazer por você?

— Porra, eu nunca matei ninguém!

— É um maldito policial, Plínio. Que falta fará no mundo?

— Vão vir atrás de nós. Só isso! — gritou o outro. — Não quero ir pra cadeia.

— Cadeia é a última coisa com que tem que se preocupar agora. É a porra do fim do mundo, caramba! Se não matá-lo, deixará testemunha e aí sim virão atrás de nós. — O homem chamado Augusto retrucou com frieza, encaixando o respectivo carregador no cabo da pistola. Ele puxou o ferrolho, que deslizou e se encaixou num clique baixo, arrancando a arma que tremia nas mãos de Plínio e entregando a própria para o companheiro, agora municiada. — Acha mesmo que policiais serão mais perigosos que aquelas coisas invisíveis? Se deseja sobreviver, terá que aprender a manusear uma arma, então trate de reconhecer uma maldita ponto quarenta quando vê uma, tá me entendendo? Vira homem de uma vez, seu frouxo! É matar ou morrer agora!

Marco tentou espionar por uma fresta, mas do ângulo em que se encontrava, um balcão o impedia de entrever muita coisa além dos dois homens. O gemido agudo ecoou outra vez, deduzindo que o tal policial do qual falavam devia estar caído pelo assoalho.

— Droga. DROGA! — ouviu Plínio gritar, empunhando flacidamente uma pistola e apontando para algo a seus pés.

Marco ouviu os grunhidos crescerem em volume e preencherem a sala, como se implorassem sufocadamente por misericórdia. Estremeceu, sentindo o coração dar um salto alucinado no peito. Começou a respirar depressa, consciente de que estava prestes a presenciar um assassinato sem fazer nada. Precisava agir, mas sentia medo. Precisava imediatamente saltar da porta e impedir aqueles homens, mas e se fosse morto? Tinha o elemento surpresa a seu favor, então bastaria utilizá-lo com prudência, só precisava ser ágil como Régulo e…

Marco apertou os olhos com força e, junto ao gesto, escutou o disparo.

O barulho trovejou pela delegacia, breve como o clarão que nasceu e morreu no segundo de um puxar de gatilho.

Ele permaneceu paralisado, com a estranha sensação de que as paredes e a porta ainda vibravam sob o eco do tiro, mesmo depois de tudo já ter voltado ao silêncio opressivo da véspera.

Por fim decidiu que o melhor era correr para longe dali. Não fora uma boa ideia afinal, mas ainda podia tentar arranjar armamento em outras delegacias. Conhecia ao menos mais três pela região, embora não fossem tão próximas quanto aquela.

— Solta esse taco e erga as mãos acima da cabeça — imperou uma voz atrás de Marco.

Ele congelou no local em que estava, sentindo o pescoço rígido ao se voltar na direção do som. Amaldiçoou a própria covardia.

Deixando a fresta para trás, distinguiu uma sombra na penumbra, caminhando sem pressa em sua direção com algo firmemente seguro às mãos. O objeto refulgiu prateado contra uma réstia que entrava pelas persianas e Marco reconheceu um revólver. Era um terceiro sujeito daqueles carecas de jaqueta.

Sentindo o coração palpitar, Marco largou o taco, observando impotente enquanto o homem se aproximava com ares hostis, segurando a arma com a esquerda e cerrando o punho com a outra.

— Olha, cara… eu não quero problemas — tentou Marco. — Só estava caçando algo para me defender dos invisíveis e…

— Não vai precisar se defender de nada — interrompeu-o, lançando um punho cheio de anéis contra o rosto de Marco.

Foi como levar uma pedrada no maxilar. Ele cuspiu saliva e desabou para dentro da sala com os dois homens.

De repente se enxergou, antes mesmo de parar de rolar pelo assoalho, como uma ovelha lançada para dentro de uma toca de lobos.



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