Volume 1

Capítulo 9: Debaixo do sol

Marco sentia-se zonzo, mas foi capaz de lutar contra a inconsciência.

Com o coração disparado e os sentidos em turbilhão, arrastou-se às cegas, tateando até encontrar a parede mais próxima. A vista estava duplicada pelas lágrimas que não caíam, mas conseguiu analisar o local, reparando que Régulo se colocara corajosamente à frente dele, com os pelos eriçados e bufando para o trio de jaqueta.

Marco distinguiu algumas gargalhadas de desdém.

— Que é isso, Tommy? — ouviu-se a voz sobressaltada do homem chamado de Augusto.

— Esse merda tava espionando vocês dois — respondeu o agressor de Marco.

Encarando um tanto além dos sujeitos, Marco avistou o contorno do tal policial e o furo que atravessava a testa dele, enfeitando a expressão de pavor eternamente presa à face de uma tez acobreada; o sangue vazando debilmente pelo outro lado da cabeça numa poça do chão.

— Então tá esperando o quê, porra? — irritou-se Augusto. — Comece pelo gato. Bicho desgraçado.

Subitamente, uma troada de passos ecoou pelo piso da sala. Com assomo de pavor, Marco divisou o contorno de Plínio se aproximar velozmente.

— Corre, Régulo!

E Plínio chutou na direção do animal, que agilmente se desviou da pancada. Régulo chiou colérico e saiu desabalado dali, disparando-se para fora da sala. Marco sorriu quando perdeu o gato de vista. Pelo menos algum deles se salvaria.

— E você tá rindo do quê, imbecil? — inquiriu Tommy, aproximando-se com o revólver em punho. — Tá vendo algum palhaço por aqui?

— Vão matá-lo também? — quis saber Plínio, a voz indecisa entre nervosa e divertida.

— No devido tempo. Antes quero testar uma coisa. — A fala de Tommy mudou de timbre, tomando um entretom de malícia. — Aqui, Plínio, fique com meu revólver. Preciso de vocês dois com a mira pra cima desse preto.

— Me deixem ir embora… — murmurou Marco, ainda recostado à parede. O queixo doía. — Prometo que esqueço o que vi aqui.

E o punho de Tommy desceu outra vez contra a face de Marco.

— Do que tá falando, porra? Então havia algo pra ver?

O rosto de Marco tombou com violência, sentindo que um rasgo se abrira na parte interna da bochecha; o sabor metálico do sangue lhe preencheu a boca. Com dificuldade, cuspiu uma gosma grudenta, detendo-se furiosamente sobre cada um daqueles rostos ao divagar sobre mil maneiras de revidar.

Sem entusiasmo, o trio gargalhou de um para outro, observando a situação patética a que haviam diminuído Marco. Tommy então se aproximou, começando a lhe revistar os bolsos.

— Está limpo — disse para Augusto e Plínio ao mesmo tempo que arrancava uma fotografia das calças de Marco e a exibia para os outros dois. — Mas que coisa tocante nós temos aqui.

Riram com ainda mais escárnio.

— Me devolvam isso agora!

Optaram, no entanto, por se fingirem de surdos.

Pouco depois, Augusto deslizou o olhar cruel da fotografia para Marco, e se adiantou na direção de Tommy, puxando-a da mão do companheiro. O homem fitou o retrato com frieza e comentou:

— Parece uma leitoa de vestido.

Plínio e Tommy gargalharam cruelmente.

— Filhos da puta!

— Opa, opa, opa — ralhou Augusto, encostando o cano da arma na cabeça de Marco. — Olha a boca, moleque. Não quer dividir a mamãe com a gente? — achincalhou, estendendo a foto e a rasgando ao meio.

— NÃO!

Mas o grito de Marco se perdeu pela sala, observando impotente enquanto os pedaços da fotografia eram atirados de qualquer jeito para cima. Ele baixou os olhos, a raiva borbulhando tão intensamente que, não fosse pelas armas apontadas para si, partiria ao ataque e esmurraria os sujeitos até os punhos ficarem em carne viva. Pouco se lixava se também apanhasse, só queria fazê-los pagar à vista, sem prestações. Se ao menos ainda tivesse aquele taco de bete… precisava pensar. Precisava urgentemente pensar em algo para escapar daquela situação.

— Vai fazer o que com esse moleque, Tommy? — perguntou Augusto, o tom enfezado. — Estamos perdendo tempo.

— Coloquem-no de costas — decretou Tommy, dando dois passos em direção a Marco enquanto puxava o cinto das próprias calças, dobrando o objeto ao meio. — Tirem a camisa dele também.

Augusto e Plínio se entreolharam, mostrando compreensão mútua através de um sorrisinho ardiloso.

Eles puxaram a blusa de Marco e, com os nervos latejando à superfície, sentiu o nervosismo lhe escorrer liquefeito pelo torso agora nu. Marco respirava depressa, mas até o ar parecia congelado numa quietude de expectativa.

Sem mais nem menos, a dor lhe irrompeu pelas costas.

O barulho ardido da primeira cintada ecoou pela sala e, com ele, veio o grito excruciante de Marco.

— Caramba, eu sempre quis fazer isso — disse Tommy em tom de êxtase, passando a mão livre sobre a careca.

Augusto e Plínio bateram palmas em ovação.

— P-posso tentar também? — Plínio perguntou de chofre, os olhos faiscantes de desejo.

O cinto foi passado de mãos e veio a segunda chicotada, depois a terceira, a quarta, a quinta…

Marco despencou para o lado, arrastando-se para longe de maneira aparvalhada. Numa firmeza excruciante, rangia os dentes para não dar vazão à dor, deixando que ela queimasse em silêncio sobre a pele escura. Tinha o rosto fechado numa máscara de completa agonia; não conseguia respirar, mas estava decidido a não derrubar uma lágrima que fosse — não se elas fossem causadas por aqueles sujeitos.

— Isso daqui é terapia! — disse Plínio, passando a cinta de volta a Tommy com expressão exultante. — Que achou do gostinho da senzala, moleque?

— Ok, concordo que tá tudo muito divertido, mas é melhor a gente terminar com essa porra de vez — disse Augusto. — Quero vazar daqui.

— Só porque eu tinha começado a me divertir? — Plínio retrucou, insatisfeito.

Bruscamente, Marco se voltou para eles, balbuciando qualquer coisa inaudível.

— O que foi?

E murmurou novamente, ainda mais cochichado que antes.

— Ah lá, galera. O filho da leitoa tá tentando dizer alguma coisa — apontou Plínio, apertando a cabeça de Marco de modo a forçá-la a se virar. — Vamos, desembucha de vez.

— Eu mandei… mandei vocês se foderem! SEUS NAZIS DE MERDA!

A expressão do trio se tornou incrédula ante a demonstração absurda de insolência, rapidamente se transformando em ódio quando Augusto ergueu a pistola na direção de Marco; Tommy mirando outra cintada.

Porém, no segundo breve que separava o puxar de um gatilho à resignação de que tudo acabaria ali mesmo, Marco ouviu um ruído ensurdecedor, como se algo tivesse explodido bastante próximo. Assustados, o trio de homens girou na direção da porta ao mesmo tempo em que um chiado agudo e familiar se alastrou pela sala.

Marco distinguiu a silhueta escura de Régulo avançando abruptamente para cima deles e, logo atrás do gato, alguma coisa indistinguível rebentando pela entrada, como se o perseguisse enfurecido.

Tudo aconteceu tão depressa que cobriu parte da sala com poeira de detritos. Ouviu-se um grunhido de penetrar na carne; o cheiro de enxofre se espalhando pelo lugar. Foi naquele momento que Marco, assim como os outros, compreendeu a situação por completo.

Sem perder tempo, Marco apanhou a blusa tropegamente, relanceando a cena do trio de homens descarregando a munição contra algo que não conseguiam enxergar.

Ele contornou pelo outro lado sala, com Régulo já grudado a seus calcanhares, quando a coisa atacou o primeiro com suas presas invisíveis. Plínio gritou, sendo rasgado ao meio como um imenso saco de tinta rubra.

Durou não mais que alguns segundos, mas Marco conseguiu distinguir o sangue de um vermelho-escuro vazando através dos buracos por onde os projéteis haviam penetrado na carne do invisível. Então elas sangram mesmo, pensou ele, correndo para fora da sala.

Os gritos do grupo finalmente pararam junto ao cessar dos disparos. Marco olhou para o gato. Agora só restara os dois, pressentindo que o demônio partiria em seu encalço.

Inesperadamente, Régulo chiou de novo, atraindo a atenção do Oculto por qualquer motivo que fosse.

— Régulo! — protestou Marco.

Mas a criatura já mudara de alvo.

Enquanto cortava pelo saguão de entrada com todas as forças das pernas — as costas protestando de dor —, Marco observou a destruição que surgira através da abertura do almoxarifado, concluindo que a criatura provavelmente viera dali.

Entrementes, estava quase do lado de fora quando a curiosidade o forçou a olhar para trás, encarando o nada correr alucinado mesmo crivado de balas. Pontos de sangue flutuavam em direção a Marco. Estava tão próximo de alcançá-lo…

Num ato de genuíno desespero, atirou-se contra a escadaria de entrada, o clarão do dia forçando-o a espremer as pálpebras por um breve e ofuscante momento. Marco rolou pelos degraus, Régulo ainda colado a ele, entreouvindo algo como um estilhaçar de vidros se prolongar indefinidamente, penetrando fundo nos tímpanos e fazendo o cérebro chacoalhar.

Marco tornou a abrir os olhos, encarando na direção da criatura, apenas para testemunhar a cena dela urrar em agonia; o corpo animalesco parcialmente para fora da delegacia.

À claridade, a pele invisível da criatura se tornara repentinamente distinguível, mas agora queimava como carne prensada sobre um tacho, justamente onde era fustigada pela luz do sol. A criatura rugia de dor, expelindo gases amarelados do interior da bocarra, espalhando um cheiro pútrido de enxofre pelo ar.

Com um esforço hercúleo, ela finalmente conseguiu retornar para a obscuridade do edifício, sumindo outra vez, mas deixando um rastro fétido de vapor para trás de si.

Marco arquejava ruidosamente, segurando o crucifixo com firmeza enquanto tentava processar o significado de tudo que presenciara. Indiferente ao estado de ânimo do dono, Régulo, todavia, empurrou a cabeça gentilmente contra a coxa dele.

— Obrigado, amigo — agradeceu, coçando a cabeça do gato. Inspirava doses violentas de ar. — Pensei que tivesse me abandonado.

O gato miou em resposta e Marco sorriu, colocando a camisa com toda a cautela necessária, pois ainda sentia as costas em brasas.

Voltou a encarar aqueles olhos de cúrcuma. Um misto de gratidão e ternura invadiu seu íntimo, lembrando-se de quando a mãe lhe contou que a Morte cavalgava num cavalo da cor dos olhos de Régulo.

Respirando fundo, Marco pensou que o gato, de alguma forma, havia atraído a criatura até a sala em que o torturavam e depois em direção ao sol, como se soubesse exatamente o que devia ser feito. Era uma teoria insana, sabia que era, mas não conseguia enxergar de outro modo.

Verdade era que Régulo pertencera à sua mãe, mas não diziam por aí que gatos aceitavam apenas um como dono? O restante era apenas questão de tolerar ou se aproveitar. Com apenas cinco anos de idade, Régulo se apegou a Marco desde filhotinho e agora tinha retornado por ele.

Sempre pensou naquele papo de que animais pudessem amar como um tipo de baboseira piegas. Para ele, o faziam simplesmente por estarem sendo alimentados, mas Régulo voltara por vontade própria e acabara de lhe salvar a vida! Ele redobrou os afagos, pensando que gatos eram criaturas realmente misteriosas, talvez a mais misteriosa das criaturas.

Quando finalmente desviou o olhar, retornando a atenção para a entrada escura da delegacia, Marco teve certeza de três coisas naquele momento.

A primeira era que os Ocultos, de fato, sangravam. A segunda, que a luz do sol os feria como ácido jogado sobre a pele. A terceira, que as pessoas podiam ser mais perigosas que qualquer abominação, fosse desse ou de outro mundo.

Mas daquilo, Marco sempre soubera.



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