Volume 1

Capítulo 10: Cheiro podre

O primeiro fato surgido à mente de Marco foi o búnquer em que estavam Beatriz, Levi e o pai da dupla.

Uma constatação daquela gravidade — a de que os Ocultos provavelmente procurariam abrigo durante o dia —, colocava o cenário de cabeça para baixo. Era o tipo de coisa que só poderia guardar para si caso não se importasse que mais mortes acontecessem, mas Marco se importava. Precisava avisá-los com urgência, antes que o prédio de advocacia também fosse tomado.

Deixando que Régulo fosse à frente, Marco decidiu que precisava primeiro retornar ao interior da delegacia.

Supôs que, por mais escuro que se encontrasse o vestíbulo, havia focos de luz o suficiente para perturbar alguém — ou alguma coisa — que não gostasse de sol. Entretanto, teria de arriscar o próprio pescoço para confirmar a teoria.

Pé ante pé, avançou desconfiado, sempre no rastro do gato preto.

Quando cortou pela abertura lateral, sentiu-se menos nervoso, concluindo que o Oculto não tivera alternativa que não retornar para as trevas do almoxarifado. Sabia, no entanto, que não podia vacilar, forçando-se a permanecer em alerta.

Ao chegar à sala adjacente, iniciou uma busca por entre o que sobrara dos homens. Havia sangue por ali, muito sangue, a tal ponto que o estômago de Marco deu um pinote sobre as tripas, abafando o refluxo com a mão.

De repente, avistou uma das metades da fotografia caída num canto limpo do assoalho, enxergando um fiapo de sorte no meio de toda aquela espiral de desgraça. Primeiro Marco sorriu com tristeza, lamentando-se pelo pedaço que sumira, entretanto, forçou-se a visualizar o copo meio cheio ao notar que recuperara justamente a parte em que a mãe aparecia no retrato. Sorrindo para a mulher, recolocou-o carinhosamente no bolso das calças.

Igualmente ali, caídas ao centro de uma poça gosmenta, entreviu uma cintilação sombria contra o avermelhado. Eram duas pistolas Glock modelos 22 e 35. Marco as recolheu com a cautela de alguém que cometia um crime só de tocá-las, limpando a superfície dura num pedaço de tecido próximo.

Apressado, Marco também procurou pelo revólver que vira na mão de Tommy, mas não restara muita coisa depois do ataque do Oculto. Por fim, enfiou meia dúzia de carregadores com munição para .40 numa mochila que encontrou jogada de escanteio, e partiu acelerado dali, com uma pistola fazendo peso na bolsa e outra na parte de trás da cintura, enfiada por dentro das calças.

Assoviou para Régulo.

Novamente enfiado no tornado caótico das ruas da cidade, Marco refez todo o trajeto até o prédio de advocacia, olhando de modo constante, embora furtivo, em direção aos próprios flancos, atento a qualquer sinal de aproximação hostil.

À distância, confirmou que a pilhagem ao supermercado prosseguia a todo vapor, mas não tinha tempo para desviar de foco.

Adentrou ansioso no edifício, agora sabendo aonde ir. Cruzou pelo corredor lateral, evitando olhar para o que sobrara do sócio do Sr. Salvatore e logo estava batendo à porta do búnquer.

Entreouviu uma exaltação pelo lado de dentro, imaginando o susto que a família levou ao perceber alguém à entrada do esconderijo. Resolveu gritar:

— Sou eu! Marco! Abram, por favor!

O ruído da fechadura ecoou pelo corredor vazio, revelando a figura de Ibrahim assim que escancarou a porta.

— Quer nos matar do coração, rapaz? — perguntou ele, encrespando na face um semblante aborrecido. — Esqueceu alguma coisa?

— Não, senhor, não é isso. Vim pra avisar que vocês precisam sair deste lugar. Não estão seguros aqui.

— O que foi, Marco? — indagou Beatriz, olhando por cima do ombro do pai.

— É. O que foi? — imitou Levi em tom de brincadeira.

O homem olhou feio para os filhos antes de retornar a atenção para Marco.

— O que quer dizer, rapaz?

Marco respirou fundo, resumindo os acontecimentos desde o momento em que pusera os pés para fora do edifício, dando ênfase ao episódio da fuga da delegacia e do Oculto sucumbindo à luz do sol, omitindo, propositadamente, a parte em que retornara para apanhar as duas pistolas.

— Sei que parece loucura — completou. — Mas o senhor tem que acreditar em mim. Vi tudo com meus próprios olhos. Esses Ocultos… eles provavelmente buscarão abrigo pra se esconderem durante o dia e este escritório é perfeito, senhor! Vocês não estão protegidos aqui dentro.

De modo paciente, o homem escutou sem fazer comentários, porém, ao final da explicação, um sorrisinho debochado lhe tomou os lábios.

— Certo… está me dizendo que o chicotearam e, na fuga, descobriu que as criaturas não gostam de sol?

Marco concordou devagar, não lhe agradando em nada o tom usado por Ibrahim Salvatore. Pressentiu o que viria a seguir.

— E para onde deveríamos ir, então?

— Eu não sei. — Marco respondeu com franqueza. — Talvez para longe do centro; uma chácara ou algum sítio na parte rural com um búnquer igual a este… O senhor não conhece nenhum lugar nessas condições?

— Está me sacaneando, não é?

Marco deu dois passos para trás, o entendimento fazendo luz à mente ao compreender de súbito que sua palavra sozinha não bastava para aquele sujeito. Sentiu uma mescla desagradável de indignação e desânimo. Não queria, contudo, mostrar os vergões em suas costas para que acreditassem no que dizia. A constatação escapou num sussurro:

— O senhor acha que estou mentindo…

— Sou advogado a tempo suficiente pra reconhecer uma história sem pé nem cabeça! — vociferou, deixando a pose de lado ao transparecer a raiva. — Ninguém agride o outro sem motivo. Nazistas? Faça-me o favor. Até o momento, mostrei gratidão sendo gentil com você, mas entenda que já me encheu a paciência, rapaz. O que você quer de verdade, hein?

— Mas senhor… — Marco queria arrancá-los dali, portanto desistir não era opção, não enquanto Beatriz e Levi estivessem há poucos passos de distância. — E quanto a seus filhos? Realmente tá uma guerra civil do lado de fora, e permanecer abrigado parece a melhor decisão, mas essa insistência em ficar pode custar ainda mais caro. É uma ameaça invisível, então como irá defender os dois? É como o senhor me disse antes: um homem faz o que precisa fazer.

Na mesma hora, Ibrahim inchou como um sapo, ao mesmo tempo em que uma vermelhidão preocupante lhe subiu pelas bochechas. Quando falou, tinha o dedo em riste apontado diretamente para o nariz de Marco e tom de ponto final:

— Não me diga como cuidar dos meus filhos, moleque! Você é muito abusado, sabia? Mas vou explicar de modo que até um analfabeto possa entender. Neste tipo de situação, há um protocolo acionado pelo governo para resgatar o alto escalão da sociedade junto a seus familiares. — Ibrahim apontou para dentro do búnquer. — Os telefones não estão funcionando, mas há uma linha de emergência aqui dentro. Não é numa chácara ou numa porra de sítio. É aqui embaixo, moleque! Entendeu? Tem uma penca de políticos me devendo até a alma. Terão de me ligar ou se darão muito mal.

E Marco compreendeu ali que Ibrahim Salvatore não seria dobrado. Até simulou abrir a boca para argumentar, mas nada lhe veio à cabeça que fosse contundente o bastante para responder. Diante do que vira pelo lado de fora, duvidava muito que a tal linha de emergência fosse mesmo funcionar, mas preferiu guardar a observação para si.

De esguelha, encarou Beatriz, que afagava gentilmente os cabelos do irmão. Ela mirava Marco diretamente por cima dos ombros do pai, com uma expressão de tristeza mesclada à resignação, como se o olhar dissesse que não adiantava argumentar com ele, pois essa era a verdadeira face de Ibrahim Salvatore.

— Que cheiro é esse? — ouviu a voz de Levi reclamar de repente.

E se queixara com razão.

Marco torceu o nariz quando o odor desagradável lhe penetrou pelas ventas, percebendo que fluía a partir do ralo à extremidade do corredor. Uma dúzia de engrenagens se encaixaram na cabeça de Marco, chegando a uma constatação óbvia, como se a resposta estivesse à sua frente o tempo inteiro, esperando apenas que Marco a enxergasse de vez.

Era enxofre. O mesmo cheiro que sentiu todas as vezes que um Oculto lhe surgiu na memória. Então que significado teria o odor? Havia alguma criatura por ali?

Procurou por Régulo, encontrando-o razoavelmente afastado enquanto se ocupava de lamber a pata dianteira sem preocupações, embora acreditasse que a resposta fosse bem menos pacífica que a preocupação do gato.

— Este cheiro, senhor… — recomeçou Marco com aspecto de alarme. — Nós precisamos ir agora! Deixar o abrigo para trás.

— Chega. Chega! Suma da minha frente, moleque!

— Pai, acho que Marco…

— Cale-se, Beatriz. O que está acontecendo com você, hein? Anda me respondendo demais. Sei o que é melhor pra você e seu irmão.

Naquele momento, Marco sentiu a Glock 22 fazer peso atrás da cintura, pensando em quais limites ultrapassaria na contradição de mirá-la na fuça de Ibrahim para levar Beatriz e Levi dali em segurança. Sacudiu a cabeça de um lado para outro, envergonhado por cogitar tal coisa. Os irmãos jamais o perdoariam depois, mas o cheiro de ovo podre aumentava proporcionalmente ao desespero que lhe crescia no peito.

Entrementes, notou que Régulo ainda se mantinha tranquilo, balançando o rabo a esmo embora coçasse o nariz com mais frequência que o habitual. Marco, no entanto, não queria pagar para ver. Beatriz e Levi poderiam odiá-lo mais tarde, mas se não tivesse alternativa…

— Pai, esse cheiro está insuportável — irrompeu Beatriz, cortando-lhe o devaneio. — Eu tô caindo fora com o Levi.

— Você trate de ficar aí que…

Mas a fala de Ibrahim foi cortada pelo acesso repentino de tosse, algo que também acometeu Marco, Beatriz e Levi. Correndo para perto da escada, Régulo começou a sacudir a cabeça incomodado, numa necessidade insana de se manter o mais afastado possível daquele cheiro.

Com dificuldade, Marco tornou a se virar para o ralo, observando que um vapor tênue e amarelado subia a partir da grade.

Porém, antes que qualquer decisão fosse tomada, antes que qualquer comentário fosse feito, a abertura no chão explodiu pelos ares, lançando detritos de concreto e uma chuva de lodo pelo corredor.

Algo havia escapado por ali.



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